Sexta, 25 de outubro de 2013 - parte 3

REVISANDO COM VINÍCIUS

Antônio Goulart*

Na semana em que se comemora o centenário de nascimento de Vinicius de Moraes (19 de outubro), lembro do encontro que tive com o poeta. Foi um encontro, digamos, profissional, mas de significado marcante. Sentados, frente a frente, fizemos juntos a revisão das provas de um de seus livros, ilustrado com fotografias do então jovem Pedro Moraes, filho do poeta.
Isso aconteceu no distante ano de 1965. Recém-formado, estagiei por alguns meses no atelier de artes gráficas e editora de meu irmão Marcelino, no Rio de Janeiro. Ficava no bairro Jardim Botânico, Rua Lopes Quintas, quase nos fundos da TV Globo, há pouco inaugurada.
Certo dia, no final de uma manhã, lá apareceu Vinicius, acompanhado do amigo e parceiro Tom Jobim. Uma das marcas do poeta: não gostava de andar sozinho, como deixou registrado nos versos de uma de suas canções: “Mesmo o amor que não compensa / é melhor que a solidão”.
Espalhafatosos, os dois logo tomaram conta do ambiente. Vinicius, comentando que tinha uma ligação sentimental muito grande com aquela rua, pois fora ali que nascera. Tom, querendo saber se Tônia Carrero, moradora ao lado, estaria em casa. Ao que o companheiro retrucou: “A esta hora, ela deve estar dormindo. Não vamos perturbá-la”. Vinicius tinha ido para conferir a impressão de seus poemas. Foi aqui eu que entrei de parceiro.
Sentados, frente a frente. Ele com as provas tipográficas nas mãos e eu com os textos originais. Sem copo de uísque no meio. A tarefa exigia concentração. Tudo corria na normalidade, até o momento em que lhe chamei a atenção para uma vírgula mal colocada, do ponto de vista gramatical. Vinicius não concordou, levantando a voz, mas de forma amistosa:
- Olha aqui, meu querido. Esta é uma das liberdades a que eu ainda me permito, já que outras... (estávamos em pleno regime de 64). É a liberdade poética de poder colocar uma vírgula onde eu achar melhor.
E, voltando-se para o companheiro que conversava outras pessoas, gritou:
- Oh, Tom, você não concorda comigo?
- Concordar com o quê? – quis saber o maestro.
- Que eu posso jogar com as vírgulas sem a rigidez das regras?
- Claro que pode, Vinicius. Você é poeta. Eu também faço isso muitas vezes com as notas musicais.
Quem era eu para discordar. Assim, os sonetos de Vinicius de Moraes saíram, pelo menos, poeticamente corretos e perfeitos, no livro “O Mergulhador”. Só lamento não ter podido pegar o autógrafo do autor, mais tarde, no exemplar numerado que guardo comigo há quase 50 anos.

* Diretor Cultural da ARI – angoulart@via-rs.net


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