Quinta. 12 de dezembro de 2013

GRANDES VIAGENS

O início
Viajei muito nesta vida. Muito.
Consta que uma das minhas primeiras palavras racionais – fora aquelas mã-mã-mã, pá-pá-pá – foram ditas num Costellation da Pluna – Primeras Líneas Uruguayas de Navegación Aérea. Balbuciei “papas fritas”. Me encheram o saco com isso muitos anos, mesmo sendo um bebê mais para raquítico.
Mais crescido lembro que vínhamos do Rio para Porto Alegre no mesmo tipo de avião, só que da Varig. Gostava daquela função de fazer mala, aeroporto, vomitar no saquinho, aquele que fica nas costas do banco da frente, tudo. Uma vez fui a Belo Horizonte de trem. Também gostei, porque fui com a minha mãe em uma cabine e só acordei quando chegamos à estação. Também, não tinha o saquinho.
No início dos anos 60, inventaram um inferno para mim. As longuíssimas viagens de ônibus, do Rio para Porto Alegre. Lembro da primeira, pela única empresa que a oferecia, a Penha. Não tínhamos ainda entrado na Dutra e eu já estava enjoado. Senti o que seria a empreitada. Era tão pequeno, que à noite minha mãe fez uma cama, com muitos cobertores, na frente do nosso banco e ela se acomodou na parte de cima. Mesmo criança não conseguia dormir, porque a BR-116 estava ainda sendo concluída e eram muitos os trechos completamente esburacados e mesmo sem uma estrada, de fato.
As viagens de ônibus eram uma constante nas férias. Eu não tinha opção. Uma exceção foi um vôo onde estavam também o meu pai e meu irmão e viemos para Porto Alegre com um Electra da Varig. Mas de POA a Caxias do Sul? Ônibus. POA a Jaguarão? Ônibus. Já tinha feito vestibular e encarava o Penha. De Porto Alegre para São Paulo tinha o Minuano, horrível também.
Algumas vezes vínhamos do Rio para o Sul de carro, apelidado por nós de “A Diligência”, um Oldsmobile 1957. Enorme, vidros elétricos, hidramático, uma beleza de carro. Eu vinha deitado no colo da minha vó. Só tinha um problema: como era um carro para americano foi feito para estradas decentes. De Porto Alegre a Jaguarão a estrada inexistia. E entrava pó por todos os lados – tanto que se decidiu viajar de vidro aberto.
Imaginem.
Era um inferno mas era divertido.
Assim conhecemos uma grande parte do país, fora idas a Montevidéu e mesmo a Argentina, de Diligência.
Detalhe: Não me lembro do meu pai sentado num ônibus da Penha ou da Minuano. O velho não era bobo e tinha mais o que fazer.

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Aventuras “dimaior”
Quando criança e adolescente conheci boa parte do Brasil e todo o Uruguai. Minha mãe era uruguaia e se orgulhava muito de sua terra. Vários verões passamos em Punta del Este. Lá vi grandes filmes, além de argentinas muito bonitas. Teorema, de Pasolini, Candy, não lembro de quem, Isadora Duncan, a bailarina que morreu porque sua echarpe enrolou-se na roda de uma Bugatti, são las películas que mais me marcaram.
Depois dos 18 comecei a me aventurar, mas optava sempre em embarcar num Penha e encarar 26 horas até o Rio. Ficava na casa de parentes, no início. Nas férias seguintes decidi procurar um lugar para ficar três meses em Copacabana. Me indicaram uma pensão metida a besta, no Posto 4. A dona me disse de saída que ali era a cobertura do embaixador de Cuba no Brasil, e que ele havia fugido quando da revolução do comandante Fidel.
Era um apartamento muito grande, enorme, com vários quartos – homens de um lado e mulheres do outro, não havia como se encontrar. Tudo muito arrumado, limpo, mas um calor insuportável. Passava as noites na esbórnia, porque o dinheiro era farto – ao ponto de abrir uma conta no Banco Nacional. Cheques e mais cheques.
Dormia até o meio da tarde e aí me preparava para definir o que faria a noite, depois de jantar. Uma rotina “sufocante” que durou até março, quando tive que retornar à base porto-alegrense para cursar o terceiro ano do científico, hoje segundo grau – já tem outro nome, não?
Como só tinha malandro na tal pensão, e eu mal sabia o que era malandragem, na véspera do carnaval me dei mal. Tinha retirado uma grana para as sacanagens de Momo e a colocado embaixo da pilha de cuecas. Chegando no quarto, à noite, fui pegar uma parte para sair e... tinha sumido tudo, só restando um saco plástico de moedas.
Dei um esporro na dona, em todo mundo que aparecia, chamei todos de ladrões, mas não adiantou. No dia seguinte fui obrigado a dar um telefonema para a coitada da minha mãe, que providenciou novamente um sorriso na minha vida.
Aprendi uma importante lição de viagem: Não se deixa dinheiro longe do nosso corpo. Não se pode confiar em ninguém. Jamais.

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Uma alergia portenha
No verão de 1975, o peso argentino não valia nada em relação ao cruzeiro. Me disseram que tudo estava baratíssimo. Como já era um homenzinho, com 20 anos, consegui uma grana com minha mãe e me fui. Na Varig comprei ida e volta, no carnê.
Como era muito esperto e malandro não reservei hotel. Ao passar pela alfândega fui para a fila do táxi. Me dei conta da fria quando o motorista me pergunta “la direcion”. Pensei rápido e não me veio nada além de um “centro de la ciudad”. Já era noite.
Quando o movimento começou a aumentar, mandei o cara parar na primeira grande avenida, bem iluminada. Avenida de Mayo. De mala na mão fui entrando em todos os hotéis e nada de apartamento. Até que vi no outro lado da rua o Gran Hotel Vedra. Hoje uma diária lá passa dos 100 dólares, mas na época era uma barbada. Muito barato.
Me instalei e saí para comer e beber alguma coisa. Pude constatar que os dias que ficaria lá seriam muito legais, porque o meu jantar, regado a um bom vinho, foi praticamente de graça, comparando com os preços de Porto Alegre. Quando fui dormir me dei conta que o quarto não tinha ar-condicionado e tampouco um simples ventilador. E estava um calor terrível.
Como em todas as minhas viagens tem sempre um drama, estava com uma alergia, até então sem saber a razão, que fazia me coçar o corpo todo. Irritante, mesmo. De noite, quando estava pronto para o sono, a desgraça começava. Tentava amenizar, tomando um banho e me tapando de talco. Melhorava até o meio da madrugada e aí a coceira me infernizava até o clarear, quando voltava a dormir.
Passava os dias nas lojas e livrarias. Comprei tudo que via, ao melhor estilo “dame dos”. Até casaco de couro, o que era moda na época. À noite, depois do banho e de me tapar de talco descia para o saguão, mandava um aperitivo e conferia o movimento de las muchachas. Fui a todos os shows de tango e inclusive encarei a uma “excursão” a La Boca. No restaurante, aquela alegria forçada e a música mais tocada foi Cidade Maravilhosa.
No hotel conheci três peruanas. Claro, tinham aquelas caras meio de índias, mas eram agradáveis e uma, em particular, queria jogo comigo. Numa noite me convidou para ver “Inferno da Torre”, um filme-tragédia muito chato, que já tinha visto. Encarei, e valeu a pena o carinho da peruana. Nos dias seguinte, ela sempre me acordou. Bom, muito bom.
Fiquei uns dez dias por lá até que me enchi, inclusive da peruana. Marquei a passagem, no dia da viagem a companheira latino-americano se debulhou em lágrimas e entrei no táxi. Tudo perfeito, exceção para a minha alergia que continuava me infernizando.
Saímos de Ezeisa no final da tarde e chovia bastante. O temporal persistiu até Porto Alegre e as aeromoças não se levantaram das poltronas. Aliás, ninguém podia se levantar, nem para ir ao banheiro. Sacudiu muito o avião.
Foi o primeiro grande cagaço aéreo. Pelo menos que me lembre.

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Montevidéu de índio
1990. Faceiro da vida, curtia os dois filhos. O Guilherme, mais velho, beirava os cinco anos e já estava numa escolinha; o Gustavo ainda ensaiava os primeiros passos e sugava o leite que podia da mãe. Tínhamos um Fusca 76 que resistia bravamente. O máximo que me aventurava com o possante era percorrer direto 25 quilômetros, de casa até a Branquinha, em Viamão, onde brincamos até hoje de sitiantes.
Num sábado, depois de lavar o poderoso, sentei-me numa cadeira de balanço e comecei a imaginar uma viagem. Nós quatro e o Fusca. A primeira cidade que me lembrei foi Montevidéu. Velha paixão. Não dormi direito, porque pensava em como iria convencer a patroa a encarar a empreitada. Além disso, na Branquinha, área rural, os cachorros e galos me dão a certeza de que não dormem.
No domingo fiquei namorando o Fusca, medindo os espaços, conferindo os pneus, essas coisas. Chamei um cunhado, que sabe tudo de mecânica e ele, sem saber do que se tratava, deu o empurrão final: “Bah, esse teu Fusca dá a volta no mundo!”.
Passei toda a semana angustiado, sem coragem de falar sobre o assunto em casa.
No final da semana seguinte, com o planejamento da viagem definido, pedi que me escutassem até o final. Mostrei como iríamos, os gastos, tudo. No Fusca caberia até o carrinho do Gustavo e um isopor com refrigerantes, iogurtes e sanduíches.
Não acreditei quando recebi o sinal verde para tocar o projeto.
Na semana seguinte havia um feriadão. Era a única chance.
Deixamos tudo pronto na noite anterior à partida. Aquela quinta-feira estava imperfeita. Oito horas da manhã e chovia muito. Tinha deixado o Fusca na rua e ao abrí-lo uma triste cena: havia quase um palmo de água no assoalho. Tirei o excesso com as mãos e coloquei muito jornal. Arrumei as bagagens como tinha planejado, chamei o pessoal e finalmente partimos. Só não tínhamos cumprido o horário de partida.
Mal saímos da nossa rua e o Gustavo já tinha começado a sugar a pobre mãe. O Guilherme dormia no banco de trás. Eu, firme no volante, conduzia o bravo, limpando o vidro que insistia em embaciar.
Chuva, chuva, chuva e mais chuva até poucos quilômetros antes de Pelotas. Sem trégua. Quando entramos a estrada do Chuí o dia tornou-se lindo. Parei num posto para dar uma esfriada no motor. Um cara, num outro Fusca, mais novo, veio conversar. Perguntou para onde ia. “Te cuida, lá adiante tem um posto da polícia rodoviária que enchem o saco. Se um pisca não funciona não deixam passar”, me orientou o viajante.
Ainda bem que num dia antes da viagem, dois cunhados, provavelmente com pena dos aventureiros, deram uma geral no possante e trocaram até lâmpadas. Tudo funcionava.
Tiro e queda.
Ao me aproximar do posto rodoviário, um guardinha fez sinal para parar. Tinha um sorriso no canto da boca, como que pensando: peguei o otário. Depois de conferir os documentos, fiz todos os testes que ma mandava fazer. Foi perdendo o sorrisinho aos poucos, até que ao ligar o carro lasquei com um sorriso no canto da boca: “Tá bom esse Fusca, hein?”.
“Vai, vai. Boa viagem”, disse o desmoralizado.
A estrada que vai ao Chuí é chatíssima, infindável e, pior ainda, não tem postos de gasolina. E eu não havia colocado combustível em Pelotas. E o ponteiro baixava. Reduzi a velocidade e fomos apreciando a paisagem. De tão devagar, comemos sanduíches e tomamos Coca, geladíssima do meu isopor. Quando já estava na reserva, avistamos um posto de gasolina. Foi o nosso primeiro piquenique. Os garotos adoraram a improvisação.
O guardinha da polícia rodoviária encheu mais o nosso saco do que os uruguaios na fronteira. Sem problemas. Passamos pelo segundo posto da fronteira e, mais ou menos dez quilômetros depois, paramos para o segundo piquenique. Festa total, sentados no asfalto e o Gustavo engatinhando, se sujando de iogurte. Uma farofada muito legal.
Estrada e estrada, com asfalto perfeito, mas sem nenhum movimento. Monótono, mas estávamos em território uruguaio. Uau!! Com o Fusca!!
O Gustavo não parava de mamar e já era noite. Tivemos a idéia de parar num posto e comprar uma mamadeira de leite para saciar o moleque.
Bem, o leite era aquele de máquina, sabe? Ele não tinha ainda tomado e gostou. Comprei outra, de reserva. Largou o peito da mãe e brincava que saciava a fome com o leite da mamadeira.
Aí começou um pesadelo.
Errei a estrada. Peguei uma que estava em construção, sem asfalto. Teimoso, fui indo. E não se via nada, nem uma luzinha, nada. Como viu que estávamos apavorados, o Guilherme que estava numa escolinha de umas freiras, começou a cantar. “Maria de Nazaré / Maria me cativou / Tornou mais forte a minha fé/ Por filho me adotou!!”. Depois: “As vezes eu paro e fico a rezar / E sem perceber começo a cantar / Oh! Virgem de Nazaré!!”.
Repetiu tantas vezes e o pavor era tanto que não cantávamos. Gritávamos. Decorei a música na marra.
Depois de uma curva, na nossa frente, um caminhão. Emparelhei com o bruto e comecei a buzinar, sem parar, até que fechei a sua frente. O cara parou e deveria estar mais assustado do que eu. Estava mais do que completamente errado, mas tinha uma solução. E o motorista me ensinou.
Demorou mais uns 40 minutos e chegamos ao asfalto.
Mais um tanto e chegamos a Grande Montevidéu. Olhei a hora e já eram 9 e meia da noite. A nossa reserva expirava as 10. Comecei a imaginar a cena: “José Prévidi? No hay mas reserva”.
Decidi: se isso acontecesse iria me dar um ataque de fúria e começaria a quebrar a recepção do Gran Hotel America. Estava pensando essas bobagens, além de continuar a cantoria, quando já estávamos no subúrbio da capital, e o trânsito já era intenso.
Na nossa frente um trólebus.
O Gustavo agarrado na mamadeira e o Guilherme de olhos bem abertos conferindo tudo. Não faltava mais nada: os dois cabos aéreos se soltaram dos fios e começa uma faisqueira danada, inclusive labaredas.
O Gui se apavorou: “Já conheço Montevidéu. Agora vamos voltar!”. Dei um gentil esporro nele e o guri voltou a cantoria da Nossa Senhora.
Sabia onde era o America e chegamos na frente exatamente as 10 e 35.
Desci do possante, todo dolorido, mas muito macho. Pronto para quebrar tudo.
“José Prévidi? Si, como no? Don José, onde están los chicos?”.
Nos instalamos no apartamento e os camareiros não entenderam o isopor, que eu mesmo fiz questão de transportá-lo. Demos uma ajeitada nas coisas e saímos para jantar. O Gustavo no meu colo – o carrinho ainda estava no Fusca.
No primeiro restaurante, com mesas na rua, nos instalamos. Pedimos os pratos e uma Norteña. Estava dando os primeiros goles, quando o Gu, sentado no meu colo, começa a fazer uma disfarçada força. Estava com o rosto vermelho. Dei uma olhada e um líquido marrom quase transbordava da fralda descartável. O cheiro, acreditem, era similar ao leite da máquina, que tínhamos comprado na estrada.
Imaginem o que foram os outros dias.

Uma viagem inesquecível.

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