GRANDES VIAGENS
O início
Viajei muito nesta vida.
Muito.
Consta que uma das minhas
primeiras palavras racionais – fora aquelas mã-mã-mã, pá-pá-pá – foram ditas
num Costellation da Pluna – Primeras Líneas Uruguayas de Navegación Aérea.
Balbuciei “papas fritas”. Me encheram o saco com isso muitos anos, mesmo sendo
um bebê mais para raquítico.
Mais crescido lembro que
vínhamos do Rio para Porto Alegre no mesmo tipo de avião, só que da Varig.
Gostava daquela função de fazer mala, aeroporto, vomitar no saquinho, aquele
que fica nas costas do banco da frente, tudo. Uma vez fui a Belo Horizonte de
trem. Também gostei, porque fui com a minha mãe em uma cabine e só acordei
quando chegamos à estação. Também, não tinha o saquinho.
No início dos anos 60,
inventaram um inferno para mim. As longuíssimas viagens de ônibus, do Rio para
Porto Alegre. Lembro da primeira, pela única empresa que a oferecia, a Penha.
Não tínhamos ainda entrado na Dutra e eu já estava enjoado. Senti o que seria a
empreitada. Era tão pequeno, que à noite minha mãe fez uma cama, com muitos
cobertores, na frente do nosso banco e ela se acomodou na parte de cima. Mesmo
criança não conseguia dormir, porque a BR-116 estava ainda sendo concluída e
eram muitos os trechos completamente esburacados e mesmo sem uma estrada, de
fato.
As viagens de ônibus eram uma
constante nas férias. Eu não tinha opção. Uma exceção foi um vôo onde estavam
também o meu pai e meu irmão e viemos para Porto Alegre com um Electra da
Varig. Mas de POA a Caxias do Sul? Ônibus. POA a Jaguarão? Ônibus. Já tinha
feito vestibular e encarava o Penha. De Porto Alegre para São Paulo tinha o
Minuano, horrível também.
Algumas vezes vínhamos do Rio
para o Sul de carro, apelidado por nós de “A Diligência”, um Oldsmobile 1957.
Enorme, vidros elétricos, hidramático, uma beleza de carro. Eu vinha deitado no
colo da minha vó. Só tinha um problema: como era um carro para americano foi
feito para estradas decentes. De Porto Alegre a Jaguarão a estrada inexistia. E
entrava pó por todos os lados – tanto que se decidiu viajar de vidro aberto.
Imaginem.
Era um inferno mas era
divertido.
Assim conhecemos uma grande
parte do país, fora idas a Montevidéu e mesmo a Argentina, de Diligência.
Detalhe: Não me lembro do meu
pai sentado num ônibus da Penha ou da Minuano. O velho não era bobo e tinha
mais o que fazer.
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Aventuras “dimaior”
Quando
criança e adolescente conheci boa parte do Brasil e todo o Uruguai. Minha mãe
era uruguaia e se orgulhava muito de sua terra. Vários verões passamos em Punta
del Este. Lá vi grandes filmes, além de argentinas muito bonitas. Teorema, de
Pasolini, Candy, não lembro de quem, Isadora Duncan, a bailarina que morreu
porque sua echarpe enrolou-se na roda de uma Bugatti, são las películas que
mais me marcaram.
Depois dos 18 comecei a me aventurar, mas optava sempre em embarcar num Penha e encarar 26 horas até o Rio. Ficava na casa de parentes, no início. Nas férias seguintes decidi procurar um lugar para ficar três mesesem Copacabana. Me
indicaram uma pensão metida a besta, no Posto 4. A dona me disse de saída
que ali era a cobertura do embaixador de Cuba no Brasil, e que ele havia fugido
quando da revolução do comandante Fidel.
Era um apartamento muito grande, enorme, com vários quartos – homens de um lado e mulheres do outro, não havia como se encontrar. Tudo muito arrumado, limpo, mas um calor insuportável. Passava as noites na esbórnia, porque o dinheiro era farto – ao ponto de abrir uma conta no Banco Nacional. Cheques e mais cheques.
Dormia até o meio da tarde e aí me preparava para definir o que faria a noite, depois de jantar. Uma rotina “sufocante” que durou até março, quando tive que retornar à base porto-alegrense para cursar o terceiro ano do científico, hoje segundo grau – já tem outro nome, não?
Como só tinha malandro na tal pensão, e eu mal sabia o que era malandragem, na véspera do carnaval me dei mal. Tinha retirado uma grana para as sacanagens de Momo e a colocado embaixo da pilha de cuecas. Chegando no quarto, à noite, fui pegar uma parte para sair e... tinha sumido tudo, só restando um saco plástico de moedas.
Dei um esporro na dona, em todo mundo que aparecia, chamei todos de ladrões, mas não adiantou. No dia seguinte fui obrigado a dar um telefonema para a coitada da minha mãe, que providenciou novamente um sorriso na minha vida.
Aprendi uma importante lição de viagem: Não se deixa dinheiro longe do nosso corpo. Não se pode confiarem
ninguém. Jamais.
Depois dos 18 comecei a me aventurar, mas optava sempre em embarcar num Penha e encarar 26 horas até o Rio. Ficava na casa de parentes, no início. Nas férias seguintes decidi procurar um lugar para ficar três meses
Era um apartamento muito grande, enorme, com vários quartos – homens de um lado e mulheres do outro, não havia como se encontrar. Tudo muito arrumado, limpo, mas um calor insuportável. Passava as noites na esbórnia, porque o dinheiro era farto – ao ponto de abrir uma conta no Banco Nacional. Cheques e mais cheques.
Dormia até o meio da tarde e aí me preparava para definir o que faria a noite, depois de jantar. Uma rotina “sufocante” que durou até março, quando tive que retornar à base porto-alegrense para cursar o terceiro ano do científico, hoje segundo grau – já tem outro nome, não?
Como só tinha malandro na tal pensão, e eu mal sabia o que era malandragem, na véspera do carnaval me dei mal. Tinha retirado uma grana para as sacanagens de Momo e a colocado embaixo da pilha de cuecas. Chegando no quarto, à noite, fui pegar uma parte para sair e... tinha sumido tudo, só restando um saco plástico de moedas.
Dei um esporro na dona, em todo mundo que aparecia, chamei todos de ladrões, mas não adiantou. No dia seguinte fui obrigado a dar um telefonema para a coitada da minha mãe, que providenciou novamente um sorriso na minha vida.
Aprendi uma importante lição de viagem: Não se deixa dinheiro longe do nosso corpo. Não se pode confiar
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Uma alergia portenha
No verão de 1975, o peso
argentino não valia nada em relação ao cruzeiro. Me disseram que tudo estava
baratíssimo. Como já era um homenzinho, com 20 anos, consegui uma grana com
minha mãe e me fui. Na Varig comprei ida e volta, no carnê.
Como era muito esperto e
malandro não reservei hotel. Ao passar pela alfândega fui para a fila do táxi.
Me dei conta da fria quando o motorista me pergunta “la direcion”. Pensei
rápido e não me veio nada além de um “centro de la ciudad”. Já era noite.
Quando o movimento começou a
aumentar, mandei o cara parar na primeira grande avenida, bem iluminada.
Avenida de Mayo. De mala na mão fui entrando em todos os hotéis e nada de
apartamento. Até que vi no outro lado da rua o Gran Hotel Vedra. Hoje uma
diária lá passa dos 100 dólares, mas na época era uma barbada. Muito barato.
Me instalei e saí para comer
e beber alguma coisa. Pude constatar que os dias que ficaria lá seriam muito
legais, porque o meu jantar, regado a um bom vinho, foi praticamente de graça,
comparando com os preços de Porto Alegre. Quando fui dormir me dei conta que o
quarto não tinha ar-condicionado e tampouco um simples ventilador. E estava um
calor terrível.
Como em todas as minhas
viagens tem sempre um drama, estava com uma alergia, até então sem saber a razão,
que fazia me coçar o corpo todo. Irritante, mesmo. De noite, quando estava
pronto para o sono, a desgraça começava. Tentava amenizar, tomando um banho e
me tapando de talco. Melhorava até o meio da madrugada e aí a coceira me
infernizava até o clarear, quando voltava a dormir.
Passava os dias nas lojas e
livrarias. Comprei tudo que via, ao melhor estilo “dame dos”. Até casaco de
couro, o que era moda na época. À noite, depois do banho e de me tapar de talco
descia para o saguão, mandava um aperitivo e conferia o movimento de las
muchachas. Fui a todos os shows de tango e inclusive encarei a uma “excursão” a
La Boca. No
restaurante, aquela alegria forçada e a música mais tocada foi Cidade
Maravilhosa.
No hotel conheci três
peruanas. Claro, tinham aquelas caras meio de índias, mas eram agradáveis e
uma, em particular, queria jogo comigo. Numa noite me convidou para ver
“Inferno da Torre”, um filme-tragédia muito chato, que já tinha visto. Encarei,
e valeu a pena o carinho da peruana. Nos dias seguinte, ela sempre me acordou.
Bom, muito bom.
Fiquei uns dez dias por lá
até que me enchi, inclusive da peruana. Marquei a passagem, no dia da viagem a
companheira latino-americano se debulhou em lágrimas e entrei no táxi. Tudo
perfeito, exceção para a minha alergia que continuava me infernizando.
Saímos de Ezeisa no final da
tarde e chovia bastante. O temporal persistiu até Porto Alegre e as aeromoças
não se levantaram das poltronas. Aliás, ninguém podia se levantar, nem para ir
ao banheiro. Sacudiu muito o avião.
Foi o primeiro grande cagaço
aéreo. Pelo menos que me lembre.
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Montevidéu de índio
1990. Faceiro da vida, curtia
os dois filhos. O Guilherme, mais velho, beirava os cinco anos e já estava numa
escolinha; o Gustavo ainda ensaiava os primeiros passos e sugava o leite que
podia da mãe. Tínhamos um Fusca 76 que resistia bravamente. O máximo que me
aventurava com o possante era percorrer direto 25 quilômetros , de
casa até a Branquinha, em Viamão, onde brincamos até hoje de sitiantes.
Num sábado, depois de lavar o
poderoso, sentei-me numa cadeira de balanço e comecei a imaginar uma viagem.
Nós quatro e o Fusca. A primeira cidade que me lembrei foi Montevidéu. Velha
paixão. Não dormi direito, porque pensava em como iria convencer a patroa a
encarar a empreitada. Além disso, na Branquinha, área rural, os cachorros e
galos me dão a certeza de que não dormem.
No domingo fiquei namorando o
Fusca, medindo os espaços, conferindo os pneus, essas coisas. Chamei um
cunhado, que sabe tudo de mecânica e ele, sem saber do que se tratava, deu o
empurrão final: “Bah, esse teu Fusca dá a volta no mundo!”.
Passei toda a semana
angustiado, sem coragem de falar sobre o assunto em casa.
No final da semana seguinte,
com o planejamento da viagem definido, pedi que me escutassem até o final.
Mostrei como iríamos, os gastos, tudo. No Fusca caberia até o carrinho do
Gustavo e um isopor com refrigerantes, iogurtes e sanduíches.
Não acreditei quando recebi o
sinal verde para tocar o projeto.
Na semana seguinte havia um
feriadão. Era a única chance.
Deixamos tudo pronto na noite
anterior à partida. Aquela quinta-feira estava imperfeita. Oito horas da manhã
e chovia muito. Tinha deixado o Fusca na rua e ao abrí-lo uma triste cena:
havia quase um palmo de água no assoalho. Tirei o excesso com as mãos e
coloquei muito jornal. Arrumei as bagagens como tinha planejado, chamei o
pessoal e finalmente partimos. Só não tínhamos cumprido o horário de partida.
Mal saímos da nossa rua e o
Gustavo já tinha começado a sugar a pobre mãe. O Guilherme dormia no banco de
trás. Eu, firme no volante, conduzia o bravo, limpando o vidro que insistia em
embaciar.
Chuva, chuva, chuva e mais
chuva até poucos quilômetros antes de Pelotas. Sem trégua. Quando entramos a
estrada do Chuí o dia tornou-se lindo. Parei num posto para dar uma esfriada no
motor. Um cara, num outro Fusca, mais novo, veio conversar. Perguntou para onde
ia. “Te cuida, lá adiante tem um posto da polícia rodoviária que enchem o saco.
Se um pisca não funciona não deixam passar”, me orientou o viajante.
Ainda bem que num dia antes
da viagem, dois cunhados, provavelmente com pena dos aventureiros, deram uma
geral no possante e trocaram até lâmpadas. Tudo funcionava.
Tiro e queda.
Ao me aproximar do posto
rodoviário, um guardinha fez sinal para parar. Tinha um sorriso no canto da
boca, como que pensando: peguei o otário. Depois de conferir os documentos, fiz
todos os testes que ma mandava fazer. Foi perdendo o sorrisinho aos poucos, até
que ao ligar o carro lasquei com um sorriso no canto da boca: “Tá bom esse
Fusca, hein?”.
“Vai, vai. Boa viagem”, disse
o desmoralizado.
A estrada que vai ao Chuí é
chatíssima, infindável e, pior ainda, não tem postos de gasolina. E eu não
havia colocado combustível em
Pelotas. E o ponteiro baixava. Reduzi a velocidade e fomos
apreciando a paisagem. De tão devagar, comemos sanduíches e tomamos Coca,
geladíssima do meu isopor. Quando já estava na reserva, avistamos um posto de
gasolina. Foi o nosso primeiro piquenique. Os garotos adoraram a improvisação.
O guardinha da polícia
rodoviária encheu mais o nosso saco do que os uruguaios na fronteira. Sem
problemas. Passamos pelo segundo posto da fronteira e, mais ou menos dez
quilômetros depois, paramos para o segundo piquenique. Festa total, sentados no
asfalto e o Gustavo engatinhando, se sujando de iogurte. Uma farofada muito
legal.
Estrada e estrada, com
asfalto perfeito, mas sem nenhum movimento. Monótono, mas estávamos em
território uruguaio. Uau!! Com o Fusca!!
O Gustavo não parava de mamar
e já era noite. Tivemos a idéia de parar num posto e comprar uma mamadeira de
leite para saciar o moleque.
Bem, o leite era aquele de
máquina, sabe? Ele não tinha ainda tomado e gostou. Comprei outra, de reserva.
Largou o peito da mãe e brincava que saciava a fome com o leite da mamadeira.
Aí começou um pesadelo.
Errei a estrada. Peguei uma
que estava em construção, sem asfalto. Teimoso, fui indo. E não se via nada,
nem uma luzinha, nada. Como viu que estávamos apavorados, o Guilherme que
estava numa escolinha de umas freiras, começou a cantar. “Maria de Nazaré /
Maria me cativou / Tornou mais forte a minha fé/ Por filho me adotou!!”.
Depois: “As vezes eu paro e fico a rezar / E sem perceber começo a cantar / Oh!
Virgem de Nazaré!!”.
Repetiu tantas vezes e o
pavor era tanto que não cantávamos. Gritávamos. Decorei a música na marra.
Depois de uma curva, na nossa
frente, um caminhão. Emparelhei com o bruto e comecei a buzinar, sem parar, até
que fechei a sua frente. O cara parou e deveria estar mais assustado do que eu.
Estava mais do que completamente errado, mas tinha uma solução. E o motorista
me ensinou.
Demorou mais uns 40 minutos e
chegamos ao asfalto.
Mais um tanto e chegamos a
Grande Montevidéu. Olhei a hora e já eram 9 e meia da noite. A nossa reserva
expirava as 10. Comecei a imaginar a cena: “José Prévidi? No hay mas reserva”.
Decidi: se isso acontecesse
iria me dar um ataque de fúria e começaria a quebrar a recepção do Gran Hotel
America. Estava pensando essas bobagens, além de continuar a cantoria, quando
já estávamos no subúrbio da capital, e o trânsito já era intenso.
Na nossa frente um trólebus.
O Gustavo agarrado na
mamadeira e o Guilherme de olhos bem abertos conferindo tudo. Não faltava mais
nada: os dois cabos aéreos se soltaram dos fios e começa uma faisqueira danada,
inclusive labaredas.
O Gui se apavorou: “Já
conheço Montevidéu. Agora vamos voltar!”. Dei um gentil esporro nele e o guri
voltou a cantoria da Nossa Senhora.
Sabia onde era o America e
chegamos na frente exatamente as 10 e 35.
Desci do possante, todo
dolorido, mas muito macho. Pronto para quebrar tudo.
“José Prévidi? Si, como no?
Don José, onde están los chicos?”.
Nos instalamos no apartamento
e os camareiros não entenderam o isopor, que eu mesmo fiz questão de
transportá-lo. Demos uma ajeitada nas coisas e saímos para jantar. O Gustavo no
meu colo – o carrinho ainda estava no Fusca.
No primeiro restaurante, com
mesas na rua, nos instalamos. Pedimos os pratos e uma Norteña. Estava dando os
primeiros goles, quando o Gu, sentado no meu colo, começa a fazer uma disfarçada
força. Estava com o rosto vermelho. Dei uma olhada e um líquido marrom quase
transbordava da fralda descartável. O cheiro, acreditem, era similar ao leite
da máquina, que tínhamos comprado na estrada.
Imaginem o que foram os
outros dias.
Uma viagem inesquecível.
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