Terça, 28 de novembro de 2017



Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu





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BAIRRO


Um maravilhoso texto da Ligia Savio, professora e escritora






Eu já não gostava de ir no armazém do Seu Leandro porque ele tinha um olhar malicioso e trocista. Aí a mãe contou, furiosa, que quando a Dona Otalina foi lá escolher laranjas, ele disse:
- Pra que apalpar as frutas? Só china que se apalpa.
Aí mesmo que não fui mais lá. Depois do almoço, ficava sentada com a Tânia no meio-fio, pegando uns pedaços de tijolos de uma obra ali do lado, brincando de fazer pozinho, esfregando os pedaços uns contra os outros ou raspando com uma pedra. Cada uma queria fazer um monte maior que o da outra, umas elevaçõezinhas cor de laranja, pequenas pirâmides que nos encantavam. Já tinha passado o tempo em que a gente podia andar só de calcinha no verão, até na frente de casa. Mas os pés continuavam sempre descalços, mesmo no calçamento da rua que fervia ao sol, a gente se acostumava. Quem é que ia botar sapatos pra ir no seu Diomar ou pra buscar água na Fonte da Saúde? E lembro que o pai, de manhã bem cedo, ia de pijama e chinelos no armazém buscar pão. O pijama meio folgado, o pai era tão magro naquele tempo!
À tarde, passava o picoleiro, que era esperado ansiosamente, embora não nos deixassem comprar dizendo que aqueles picolés “eram feitos de água da sarjeta”. Alíás, quando chovia forte, pelas sarjetas da Domício da Gama, rolavam rios caudalosos e barrentos. Por que os fabricantes de picolés iam escolher logo aquela água? eu pensava. Mas nos faziam comer os picolés caseiros, feitos nas formas de gelo e com um palito no meio e que a gente nunca deixava endurecer completamente.

Festa mesmo era quando o pai trazia uma lata de leite condensado e a mãe botava na panela de pressão! Nosso sonho de consumo era o “ leite condensado fervido”! Que maravilha quando a mãe abria a lata (tinha que cuidar pra não espirrar em nós !...) e desenformava aquela maravilha marrom que queríamos comer quente mesmo! Lembro que a mãe tinha uma compoteira de vidro pintado em forma de ânfora que uma tia nos trazia cheia de ambrosia. Ela era especialista neste doce, ninguém fazia melhor do que ela. Era o que a mãe dizia. Aconteciam coisas tristes também: um vizinho militar começou a atirar nos gatos que namoravam no seu quintal, disseram que era com rifle 22. Acertou num dos nossos ( acho que no Emir) que chegou se arrastando em casa e felizmente a gente conseguiu salvar. Engraçado que aos domingos ele estava sempre na missa, manejando o terço em vez da espingarda. Influenciado talvez pelo cio dos gatos, fugiu com a filha de criação, que meses mais tarde, o devolveu doente à velha esposa. Agora isso me parece uma história do Dalton Trevisan...Mas a gente presenciou tudo aquilo!... Nossos gatos e cachorros tinham nomes especiais que eu e a mãe colocávamos : o Emir (sheique árabe). O Ben-Hur, o Tora-tora, o Noivo (prometido da Baby), o Pequim e a Neneza, primeiro gato trans que, como mãe, reconheci e estimulei. Agia como fêmea, tinha um corpo feminino, era a minha paixão! Eu lhe punha os vestidos das minhas bonecas e ela gostava.
Bem antes, houve um outro quintal quando morávamos com minha avó, meu tio e minha prima Nina, que era minha grande companheira. Me lembro direitinho que a vó plantava violetas e morangos. Não sei se eles estavam meio misturados ou em canteiros diferentes, só sei que eu gostava de mexer nas folhagenzinhas rasteiras e me maravilhar com uma flor ou uma frutinha vermelha.
Algumas lembranças se misturam. Corre-se o risco de ficcionalizar- ou fantasiar – tudo que ficou muito longe no tempo. Assim como a menina Arla, de cabelos lisos e louros de um tom queimado. Sei que ela vivia com o pai, parece que ajudava em casa. Nunca me esqueci dela! E eu tinha só três anos...Mais uma coisa bonita: o leiteiro Gabriel, de olhos azuis e cabelo claro e crespinho, que vinha de carroça e despejava o leite num recipiente (leiteira? sei que tinha alça) que a vó deixava na porta de casa e que não tinha perigo de alguém levar... Às vezes, eu o esperava à porta junto com a vó, bem cedinho. Será que Arla e Gabriel estão ainda por aqui ? Não sei por que ficam determinadas pessoas, certas situações e recordações. Algumas estão aqui.


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