Sexta, 8 de junho de 2018




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu







Atualizado diariamente
até o meio-dia











especial

NESTA SEXTA, UMA CESTA DE
PAULO MOTTA









DEMÊNCIO VENTANA, A SAGA 

Acho que a primeira lembrança do meu tio, Demêncio Ventana, foi quando ele me balançava como se fosse uma melancia, no quarto do Hospital São Francisco de Borja, em São Borja.
Era uma tarde morna de maio do ano de 1959.
Não lembro do Beltrão, meu pai, nem da Norma Motta, minha mãe.
Lembro do Demêncio Ventana, da boina tapeada sobre a melena preta e do bigodão que bailava sobre um raro sorriso.
As coisas que eu via eram azuladas, meio nebulosas, mas inesquecível a gargalhada do meu tio, dizendo:
- Norma, este teu piá vai ser faceiro que nem ganso novo em taipa de açude! Não tem nem dente e ri que que nem padre na frente de um prato de linguiça campeira! Chega a se mijar de tão feliz!
Tio Demêncio ainda não tinha ingressado na Faculdade de Agronomia e Veterinária, na UFRGS, e nem era casado com sua futura viúva, a Tia Chininha.
Cresci com ele nos rodeando; passava alguns dias num aposento nos fundos lá de casa, outros namorando Tia Chininha e muitos outros invernado num ranchinho em Nhu-Porã*, onde uma velhota correntina criava umas filhas lindas, que emprestava pros que tivessem algum dinheiro.
Certa feita eu estava saindo pra rua com um caminhãozinho de madeira, pendurado num barbante, e minha mãe não deixava por causa da garoa.
Tio Demêncio interrompeu, com o palheiro no canto da boca:
- Norma, deixa o piá ir lá pra fora pegar chuva! Lugar de mulher, gato e guardanapo é na cozinha. Homem, cachorro e carroça é na rua!

* Nhu-Porã - Povoado a 30 km de São Borja.



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CONSELHOS DO TIO MOTTA

Se estás desabalado na balada e o melhor que aconteceu até três da manhã foi o garçom te passar a mão na bunda, é hora de partir pra ignorância!
  Mas, cuidado, muito cuidado, nessa hora da madrugada corres o risco com as maioneses de quermesse - ou melancia no sol - que surgirão das entranhas do inferno querendo te fazer mal, pequeno borracho.
Unhas vermelhas, voz rouca, perfume da Coty, um Dunhill babado e um pedido de kipikúler é o cartão de visitas desses temíveis seres que gravitam nas madrugadas bêbadas de tarados em fim de carreira que nem você, ó desatinado incauto!
Se for inevitável e aquele urubu lhe parecer a Daryl Hannah vestida de Mortícia, peça mais uma dose de qualquer coisa enriquecida com urânio e abra seu coração, deixe a poesia fluir e se derramar por entre os seios dela e espere pra vomitar quando o táxi parar na frente do hotelzinho da Comendador Coruja.
No sábado pela manhã o pior já terá acontecido e isso nada, mas nada mesmo, poderá te arrancar dali e te jogar embaixo do teu chuveiro, no aconchego do teu sacro e santo lar.
Foi jurar amor eterno e dar vazão aos teus instintos mais baixos e rasteiros, mesmo sabendo o preço a pagar, azar é teu; aguenta o bafo de cinzeiro e reza pra não encontrar ninguém conhecido às onze da manhã, com o Ferreira Gullar abraçado em ti em plena Cristóvão Colombo! Mas ontem essa coisa até parecia matável!
 Bá, deixa pra lá!
Enfim, desejo-lhes suerte! Meu pessoal está on-line para aconselhamentos e sugestões eventuais 24h.
Vou jantar e jogar um pouco de xadrez com minha mãe, a Norma.
Até mais tarde.


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MÃES 

Sempre imagino as mães como diretoras e produtoras dos filmes das nossas vidas. Trabalham sempre num quase anonimato, nos fazendo seguir o roteiro e exigindo mais envolvimento na trama, seja ela boa ou ruim. Se o resultado é bom, os méritos ficam com os atores e a diretora sorri, tímida, observando de longe os aplausos. Se for ruim, a responsabilidade será dela.
Podem ser, também, dedicadas operárias que dobram nossos paraquedas emocionais e comportamentais, que usaremos ao saltar das asas protetoras de nossas casas para o azul infinito da vida. Só saberemos se foram bem dobrados e envelopados quando puxarmos a cordinha na hora certa. Geralmente o são.
Elas trabalham sem espalhafatos nem pirotecnias; trabalham por amor, para que sejamos melhores e repetirão, sempre, as mesmas coisas. Quem nunca ouviu a célebre frase: "Leva um casaquinho que vai esfriar!" ou "Não corre, meu filho!", quem nunca?
Mães, avós, tias são nossa equipe de retaguarda, muitas vezes de resgate que raramente valorizamos por nos acharmos os donos do mundo.
Por ser filho da Dona Norma Motta, sou um filho normal e lembro dos aniversários com bolos decorados pela doceira mais querida de São Borja: Dona Glaci Sarmanho e o nome dela já lembrava glacê e seus derivados inigualáveis.
Quando fiz sete anos o bolo era um navio com marinheiros de cera e bandeirinhas coloridas, estendidas no convés, uma obra prima e eu incendiei as bandeirinhas ao brincar de bombardeio com o barco de merengue. Adivinhem quem salvou o belo bolo do pequeno incendiário? Dona Norma, claro. Se perguntassem a ela por que estava com os dedos chamuscados, responderia: "Nada, apenas apagando um incêndio num navio". Quando ela descobriu que eu tinha comido os marinheiros de cera teve outro incêndio na minha casa!
Beijão a todas vocês, minhas queridas mães, vocês são tudo nesse mundo.


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HUMANO

"Odeio ser humano" disse Adão pra Eva, quando foram expulsos do Paraíso e foram morar nuns blocos invadidos da Cohab, ali pertinho do Inferno.
"Odeio a classe média" disse Eva pro Adão quando descobriu que o Audi do Patrão Celestial estava quitado e nem ela, nem Adão tinham, sequer, um velocípede.
De tanto azucrinar o Adão pra comprar um automóvel e dois cachorrinhos schnauzer, ele abriu uma linha de crédito com aquela cobra da maçã. A long play, longo prazo.
Ser humano estava dando um trabalhão infernal, melhor ficar como protozoários, no seio da Mãe Terra, seria melhor.
Mas não dava pra recuar, não mesmo!
Olhavam pros lados e viam os capetas se divertindo com futebol e - oh, maravilha! - a televisão com o BBB, The Voice e o Programa do Faustão!
Alguns iam pra Magistério ou Floripa fazer pesca submarina e surfar num mar em chamas, uma delícia!
E eles ali, esperando um sinal divino para começarem a se divertir. Adão se maldizia à toa pois ainda não sabia o que era sogra, claro!
Mas sem grana não dá, né?
Então, o Patrão Celestial criou a Petrobras, o Congresso, a Odebrecht e Adão e Eva se locupletaram e viveram felizes para sempre entre fadas, fogos de artifício contribuintes trouxas e a Graça Foster na capa da Playboy, não é lindo?
Eu achei, não sei vocês, pulguentos pecadores.



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