Sexta, 14 de fevereiro de 2020




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA PRESSA





Escreva apenas para






especial

Nesta sexta, uma cesta
de Charles Bukowski!




(dedicado ao Paulo Motta)

Não sei quanto às outras pessoas, mas quando me abaixo para colocar os sapatos de manhã, penso, Deus Todo-Poderoso, o que mais agora?







Nunca me senti só. Gosto de estar comigo mesmo. Sou a melhor forma de entretenimento que posso encontrar.



Não, eu não odeio as pessoas. Só prefiro quando elas não estão por perto.





Henry Charles Bukowski Jr, ou Charles Bukowskinasceu em  Andernach (Alemanha), 16 de agosto de 1920 e morreu em Los Angeles, 9 de março de 1994. Romancista e poeta, sua obra  tem um estilo totalmente coloquial, "com descrições de trabalhos braçais, porres e relacionamentos baratos". 
Seu pai era um soldado teuto-americano, Heinrich Bukowski, casado com Katharina. Aos três anos mudou-se para os Estados Unidos com seus pais. Foram inicialmente para Baltimore em 1923, depois para o subúrbio de Los Angeles. Com um pai extremamente autoritário e frustrado e uma mãe submissa, sofria, frequentemente, abusos físicos e psicológicos por parte de seu pai.
Na adolescência, surgiram inflamações que cobriram o rosto e toda a parte superior do corpo, fazendo-o submeter-se a tratamentos médicos no hospital público de sua cidade. Na escola, a situação também não era das melhores, tendo poucos amigos e sendo, sempre, o penúltimo a ser escolhido para o time de beisebol. Por causa do tratamento médico, abandonou temporariamente a escola, voltando somente um ano depois. Neste meio tempo, descobriu duas coisas que o ajudaram a tornar a sua vida suportável: o álcool e os livros.
Em 1939, começa a cursar jornalismo pela Los Angeles City College, ganha uma máquina de escrever de seu pai e logo se põe a escrever. Mas, por causa de seus escritos e contos, seu pai o expulsa de casa. Morando em pensões e sem emprego, desiste da faculdade de jornalismo. Com problemas com o alcoolismo, trabalhou em empregos temporários em várias cidades americanas como faxineiro, frentista e motorista de caminhão. Em 1952, consegue um emprego de carteiro. Com uma vida errante, bebe em excesso e escreve alucinadamente. Enviou seus trabalhos para as mais diversas editoras literárias independentes dos Estados Unidos, mas eles, quase sempre, eram recusados. A editora da revista Harlequin, Barbara Frye, no entanto, estava convencida de que Bukowski era um gênio. Começaram a se corresponder e, em determinado momento, Frye declarou que nenhum homem nunca se casaria com ela. Bukowski respondeu simplesmente: "Eu me casarei". Casaram-se logo depois de se conhecerem pessoalmente. Mas, tão rápido quanto se conheceram, separaram-se.
Depois do divórcio, conhece Frances Smith, com quem teve uma filha, Marina Louise Bukowski. Até este momento, Charles Bukowski era, apenas, um poeta iniciante. Mas, em 1971, surge a imagem de Bukowski que o tornaria famosoː o seu alterego Henry Chinaski, em Cartas na Rua (Post Office). Chinaski o acompanha em todos seus romances e só não é protagonista em Pulp. Sua obra surtiu tanto efeito que alguns de seus contos e romances acabaram sendo adaptados para o cinema por alguns diretores. Inclusive, o próprio Bukowski recebeu diversos convites para escrever argumentos, apesar de assumir que nunca gostou muito de filmes.
Bukowski morreu de pneumonia, decorrente de um tratamento de leucemia aos 73 anos, em 9 de Março de 1994, na cidade de San Pedro, Califórnia, pouco depois de terminar Pulp. Em seu túmulo, se lê "Don't Try", "Não Tente" em português. Com o tempo, apareceram alguns herdeiros seus na literatura, principalmente na questão do estilo violento e despudorado de sua linguagem, e que acabou inclusive tendo desdobramentos no cinema. Mas poucos são aqueles que, como ele, vivenciaram e permaneceram com naturalidade na sarjeta, fazendo dela sua fonte de inspiração. De todo aquele inferno imundo e fedido, Bukowski fez o seu paraíso.



Romances
Post Office (1971)
Factotum (1975)
Women (1978)
Ham on Rye (1982)
Hollywood (1989)
Pulp (1994)

Coletâneas de poesia
Flower, Fist, and Bestial Wail (1960)
It Catches My Heart in Its Hands (1963)
Crucifix in a Deathhand (1965)
At Terror Street and Agony Way (1968)
Poems Written Before Jumping Out of an 8 story Window (1968)
A Bukowski Sampler (1969)
The Days Run Away Like Wild Horses Over the Hills (1969)
Fire Station (1970)
Mockingbird Wish Me Luck (1972)
Burning in Water, Drowning in Flame (1974)
Scarlet (1976)
Maybe Tomorrow (1977)
Love Is a Dog from Hell (1977)
Play the Piano Drunk Like a Percussion Instrument Until the Fingers Begin to Bleed a Bit (1979)
Dangling in the Tournefortia (1981)
Hot Water Music (1983)
War All the Time (book)|War All the Time (1984)
You Get So Alone at Times That It Just Makes Sense (1986)
The Roominghouse Madrigals (1988), 978-0876857335
Septuagenarian Stew: Stories & Poems (1990)
People Poems (1991)
The Last Night of the Earth Poems (1992)
Betting on the Muse: Poems and Stories (1996)
Bone Palace Ballet (book)|Bone Palace Ballet (1998)
What Matters Most Is How Well You Walk Through the Fire. (1999)
Open All Night (book)|Open All Night (2000)
The Night Torn Mad with Footsteps (2001)
Sifting Through the Madness for the Word, the Line, the Way (2003)
The Flash of the Lightning Behind the Mountain (2004)
Slouching Toward Nirvana (2005)
Come on In! (2006)
The People Look Like Flowers at Last (2007)
The Pleasures of the Damned (2007)
The Continual Condition (2009)

Livros e coletâneas de poesia
Confessions of a Man Insane Enough to Live with Beasts (1965)
All the Assholes in the World and Mine (1966)
Notes of a Dirty Old Man (1969)
Erections, Ejaculations, Exhibitions, and General Tales of Ordinary Madness (1972)
South of No North (1973)
Hot Water Music (1983)
Tales of Ordinary Madness (1983)
The Most Beautiful Woman in Town (1983)
Prying (com Jack Micheline e Catfish McDaris) (1997)
Portions from a Wine-stained Notebook: Short Stories and Essays (2008)
Absence of the Hero (2010)
More Notes of a Dirty Old Man (2011)
The Bell Tolls For No One (CityLights, edição de 2015)

Livros de não ficção
Shakespeare Never Did This (1979); expanded (1995)
The Bukowski/Purdy Letters (1983)
Screams from the Balcony: Selected Letters (1993)
Living on Luck: Selected Letters, vol. 2 (1995)
The Captain Is Out to Lunch and the Sailors Have Taken Over the Ship (1998)
Reach for the Sun: Selected Letters, vol. 3 (1999)
Beerspit Night and Cursing: The Correspondense of Charles Bukowski and Sheri Martinelli (2001)
Sunlight here I am: Interviews and encounters, 1963-1993 (2003)

Filmes 
Bukowski at Bellevue 1970 (1995)  – Poetry Reading
Bukowski 1973 – Californian KCET Documentário de TV
Supervan 1977 – Feature Film (Not based on Bukowski's work but Bukowski had cameo appearance as Wet T-shirt Contest Water Boy)
There's Gonna Be a God Damn Riot in Here – Filmed: 1979; DVD Release: 2008 – Poetry Reading
The Last Straw  – Filmed: 1980; DVD Release: 2008 – Poetry Reading
Tales of Ordinary Madness – Feature Film
Poetry In Motion 1982 – Documentário de Poesia
Barfly 1987 – Feature Film
Crazy Love 1987 – Feature Film (Bélgica)
The Ordinary Madness of Charles Bukowski (1995), Documentário da BBC.
Bukowski: Born Into This 2002 – Documentário Biográfico
Factotum 2005 – Feature Film
The Suicide 2006 – Short film
One Tough Mother 2010 Released on DVD – Leitura de Poesia
Mermaid of Venice 2011 – Filme curto
"Charles Bukowski's Nirvana" 2013 – Short film
"Sitting on a Fire Escape Eating Eggs" 2015 – Short film

Livros publicados no Brasil
Romances
Cartas na Rua. São Paulo: L&PM Editores, 2011 (edição original 1971)
Factotum. São Paulo: L&PM Editores, 2007 (ed. original 1975)
Mulheres. São Paulo: L&;PM Editores, 2011 (ed. original 1978)
Misto Quente. São Paulo: L&PM Editores, 2005 (ed. original 1982)
Hollywood. Porto Alegre: L&PM Editores, 1990. (ed. original 1989)
Pulp. Porto Alegre: L&PM Editores, 1995. (ed. original 1995)

Contos, poesia, não ficção
Crônica de um amor louco. Porto Alegre: L&PM Editores, 1984
Notas de um velho safado. Porto Alegre: L&PM Editores, 1985.
Fabulário Geral do Delírio Cotidiano. Porto Alegre: L&PM Editores, 1986.
Numa Fria. Porto Alegre: L&PM Editores, 1993.
A mulher mais linda da cidade. Porto Alegre: L&PM Editores, 1997. (coletânea)
O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio. Porto Alegre: L&PM Editores, 1999.
Hino da Tormenta. Florianópolis: Spectro, 2003.
Os 25 Melhores Poemas de Charles Bukowski. Rio de Janeiro: Bertrand, 2003.
Tempo de voo para lugar algum. Florianópolis: Spectro, 2004.
Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2005.
Vida desalmada. Florianópolis: Spectro, 2006.
O Amor é um Cão dos Diabos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007.
Ao Sul de Lugar Nenhum - Histórias da Vida Subterrânea. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.
Bukowski - Textos Autobiográficos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009
Pedaços de um caderno manchado de vinho. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010
Amor é tudo que nós dissemos que não era. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012
As Pessoas Parecem Flores Finalmente. Porto Alegre: L&PM Editores, 2015
Maldito deus arrancando esses poemas da minha cabeça: 7Letras, 2015. (Coletânea organizada por Fernando Koproski)

Revista em quadrinhos
N.York, 95 cents ao dia. Porto Alegre: L&PM Editores, 1984.
Delírios Cotidianos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008.



Quanto mais o tempo passa, menos eu significo pras pessoas e menos elas significam pra mim.









A MULHER MAIS LINDA DA CIDADE





"Das 5 irmãs, Cass era a mais moça e a mais bela. E a mais linda mulher da cidade. Mestiça de índia, de corpo flexível, estranho, sinuoso que nem cobra e fogoso como os olhos: um fogaréu vivo ambulante. Espírito impaciente para romper o molde incapaz de rete-lo. Os cabelos pretos, longos e sedosos, ondulavam e balançavam ao andar. Sempre muito animada ou então deprimida, com Cass não havia esse negócio de meio-termo. Segundo alguns, era louca. Opiniões de apáticos. Que jamais poderiam compreendê- la . Para os homens, parecia apenas uma máquina de fazer sexo e poucos estavam ligando para a possibilidade de que fosse maluca. E passava a vida a dançar, a namorar e beijar. Mas, salvo raras exceções , na hora agá sempre encontrava forma de sumir e deixar todo mundo na mão. As irmãs a acusavam de desperdiçar sua beleza, de falta de tino; só que Cass não era boba e sabia muito bem o que queria : pintava, dançava, cantava, dedicava-se a trabalhos de argila e, quando alguém se feria , na carne ou no espírito, a pena que sentia era uma coisa vinda do fundo da alma. A mentalidade é que simplesmente destoava das demais: nada tinha de prática. Quando seus namorado ficavam atraídos por ela, as irmãs se enciumavam e se enfureciam, achando que não sabia aproveita- los como mereciam. Costumava mostrar-se boazinha com os feios e revoltava-se contra os considerados bonitos- "uns frouxos", dizia, " sem graça nenhuma. Pensam que basta ter orelhinhas perfeitas e nariz bem modelado..... Tudo por fora e nada por dentro.... " Quando perdia a paciência, chegava as raias da loucura; tinha um gênio que alguns qualificavam de insanidade mental. O pai havia morrido alcoólatra e a mãe fugira de casa, abandonando as filhas. As meninas procuraram um parente, que resolveu interná- las num convento. Experiência nada interessante, sobretudo para Cass. As colegas eram muito ciumentas e teve que brigar com a maioria. Trazia marcas de lâmina de gilete por todo o braço esquerdo, de tanto se defender durante suas brigas. Guardava, inclusive, uma cicatriz indelével na face esquerda, que em vez de empanar-lhe a beleza só servia para realça- la. Conheci Cass uma noite no West End Bar. Fazia vários dias que tinha saído do convento. Por ser a caçula entre as irmãs , fora a ultima a sair. Simplesmente entrou e sentou-se do meu lado. Eu era provavelmente o homem mais feio da cidade- o que bem pode ter contribuído.
- Quer um drinque?- perguntei.
-Claro por que não?
Não creio que houvesse nada de especial na conversa que tivemos essa noite. Foi mais a impressão que causava. Tinha me escolhido e ponto final. Sem a menor coação . Gostou da bebida e tomou várias doses. Não parecia ser de maior idade, mas, não sei como, ninguém se recusava a servi- la. Talvez tivesse carteira de identidade falsa , sei lá. O certo é que toda vez que voltava do toalete para sentar do meu lado, me dava uma pontada de orgulho. Não só era a mulher mais linda da cidade como também das mais belas que vi em toda minha vida. Passei- lhe o braço pela cintura e dei- lhe um beijo.
- Me acha bonita?- perguntou.
- Lógico que acho, mas não é só isso.... é mais que uma simples questão de beleza...
- As pessoas sempre me acusam de ser bonita. Acha mesmo que sou?
- Bonita não é bem o termo, e nem te faz justiça.
Cass meteu a mão na bolsa. Julguei que estivesse procurando um lenço. Mas tirou um longo grampo de chapéu. Antes que pudesse impedir, já tinha espetado o tal grampo, de lado, na ponta do nariz. Senti asco e horror. Ela me olhou e riu.
- E agora, ainda me acha bonita? O que é que você acha agora, cara?
Puxei o grampo, estancando o sangue com o lenço que trazia no bolso. Diversas pessoas, inclusive o sujeito que atendia no balcão, tinha assistido a cena. Ele veio até a mesa:
- Olha - disse para Cass,- se fizer isso de novo, vai ter que dar o fora. Aqui ninguém gosta de drama.
- Ah vai te foder, cara!
- É melhor não dar mais bebida pra ela- aconselhou o sujeito.
- Não tem perigo- prometi.
O nariz é meu - protestou Cass, - faço dele o que bem entendo.
- Não faz, não - retruquei, - porque isso me dói.
- Quer dizer que eu cravo o grampo no nariz e você é que sente dor?
- Sinto , sim. Palavra.
- Está bem, pode deixar que eu não cravo mais. Fica sossegado.
Me beijou ainda sorrindo e com o lenço encostado no nariz. Na hora de fechar o bar, fomos para onde eu morava. Tinha um pouco de cerveja na geladeira e ficamos lá sentados, conversando. E só então percebi que estava diante de uma criatura cheia de delicadeza e carinho. Que se traía sem se dar conta. Ao mesmo tempo que se encolhia numa mistura de insensatez e incoerência. Uma verdadeira preciosidade. Uma joia, linda e espiritual. Talvez algum homem, uma coisa qualquer, um dia a destruísse para sempre. Fiquei torcendo para que não fosse eu.
Deitamos na cama e , depois apaguei a luz, Cass perguntou:
- Quando é que você quer transar? Agora ou amanhã de manhã?
- Amanhã de manhã- respondi virando de costas para ela.
No dia seguinte me levantei e fiz dois cafés. Levei o dela na cama. Deu uma risada.
- Você é o primeiro homem que conheço que não quis transar de noite.
- Deixa pra lá - retruquei, - a gente nem precisa disso.
- Não, pera aí , agora me deu vontade. Espera um pouco que não demoro.
Foi até o banheiro e voltou em seguida, com uma aparência simplesmente sensacional- os longos cabelos pretos brilhando, os olhos e a boca brilhando, aquilo brilhando.... Mostrava o corpo com calma, como a coisa boa que era. Meteu- se em baixo do lençol.
- Vem de uma vez, gostosão.
Deitei na cama. Beijava com entrega, mas sem se afobar. Passei- lhe as mãos pelo corpo todo, por entre os cabelos. Fui por cima. Era quente, apertada. Comecei a meter devagar, compassivamente, não querendo acabar logo. Os olhos dela encaravam, fixos os meus.
- Qual é teu nome? - perguntei.
- Porra, que diferença faz? - replicou.
Ri e continuei metendo. Mais tarde se vestiu e levei-a de carro de novo para o bar. Mas não foi nada fácil esquecê-la. Eu não andava trabalhando e dormi até as 2 da tarde. Depois levantei e li o jornal. Estava sentado na banheira quando ela entrou com uma folhagem grande na mão - uma folha de inhame.
- Sabia que ia te encontrar no banho- disse, - por isso trouxe isto aqui pra cobrir esse seu troço aí, seu nuclista. E atirou a folha de inhame dentro da banheira.
- Como adivinhou que eu estava aqui?
- Adivinhando, ora.
Chegava quase sempre quando eu estava tomando banho. O horário podia variar, mas Cass raramente se enganava. E tinha todos os dias a folha de inhame. Depois a gente trepava. Houve uma ou duas noites em que telefonou e tive que ir pagar a fiança para livrá- la da detenção embriaguez ou desordem.
- Esses filhos da puta- disse ela, - só porque pagam umas biritas pensam que são donos da gente. - Quem topa o convite já esta comprando barulho.
- Imaginei que estivessem interessados em mim e não apenas no meu corpo.
- Eu estou interessado em você e também no teu corpo. Mas duvido muito que a maioria não se contente com o corpo.
Me ausentei seis meses da cidade, vagabundei um pouco e acabei voltando. Não esqueci Cass, mas a gente havia discutido por algum motivo qualquer e me deu vontade de zanzar por aí. Quando cheguei, supus que tivesse sumido, mas nem fazia meia hora que estava sentado no West End Bar quando entrou e veio sentar no meu lado.
- Como é, seu sacana, pelo que vejo você já voltou.
Pedi bebida pra ela. Depois olhei. Estava com um vestido de gola fechada. Cass jamais tinha andando com um traje desses. E logo abaixo de cada olheira, espetados, havia dois grampos com ponta de vidro. Só dava para ver as pontas, mas os grampos, virados para baixo, estavam enterrados na carne do rosto.
- Porra, ainda não desistiu de estragar tua beleza?
- Que nada seu bobo, agora é moda.
- Pirou de vez.
- Sabe que senti saudade? - comentou.
- Não tem mais ninguém no pedaço?
- Não , só você. Mas agora resolvi dar uma de puta. Cobro dez pratas. Pra você , porém é de graça.
- Tira esses grampos daí.
- Negativo. É moda.
- Estão me deixando chateado.
- Tem certeza?
- Claro que tenho. Cass tirou os grampos devagar e guardou na bolsa.
- Por que é que faz tanta questão de esculhambar o teu rosto? - perguntei.
- Quando vai se conformar com a ideia de ser bonita?
- Quando as pessoas pararem de pensar que é a única coisa que eu sou. Beleza não vale nada e depois não dura. Você nem sabe a sorte que tem de ser feio. Assim quando alguém simpatiza contigo, já sabe que é por outra razão.
- Então ta. Sorte minha né?
- Não que você seja feio. Os outros é que acham. Até que a tua cara é bacana.
- Muito obrigado. Tomamos outro drinque.
- O que anda fazendo? - perguntou.
- Nada. Não há jeito de me interessar por coisa alguma. Falta de animo.
- Eu também. Se você fosse mulher, podia ser puta.
- Acho que não ia gostar de um contato tão íntimo com tantos cara desconhecidos. Acaba enchendo.
- Puro fato, acaba enchendo mesmo. Tudo acaba enchendo.
Saímos juntos do bar. Na rua as pessoas ainda espantavam com Cass. Continuava linda talvez mais do que antes. Fomos para o meu endereço. Abri uma garrafa de vinho e ficamos batendo papo. Entre nós dois a conversa sempre fluía espontânea. Ela falava um pouco, eu prestava atenção, e depois chegava a minha vez. Nosso diálogo era assim, simples, sem esforço nenhum. Parecia que tínhamos segredos em comum. Quando se descobria um que valesse a pena, Cass dava aquela risada- da maneira que só ela sabia dar. Era como a alegria provocada por uma fogueira. Enquanto conversávamos, fomos nos beijando e aproximando cada vez mais. Ficamos com tesão e resolvemos ir para a cama. Foi então que Cass tirou o vestido de gola fechada e vi a horrenda cicatriz irregular no pescoço - grande e saliente.
- Puta que pariu, criatura- exclamei, já deitado.- Puta que pariu. Como é que você foi me fazer uma coisa dessas?
- Experimentei uma noite, com um caco de garrafa. Não gosta mais de mim? Deixei de ser bonita?
Puxei- a para a cama e dei- lhe um beijo na boca. Me empurrou pra trás e riu.
- Tem homens que me pagam as dez pratas, aí tiro a roupa e desistem de transar. E eu guardo o dinheiro para mim. É engraçadíssimo .
- Se é - retruquei, - estou quase morrendo de tanto rir... Cass , sua cretina eu amo você... mas para com esse negócio de querer se destruir, você é a mulher mais cheia de vida que já encontrei. Beijamos de novo. Começou a chorar baixinho. Sentia - lhe as lágrimas no rosto. Aqueles longos cabelos pretos me cobriam as costas feito mortalha. Colamos os corpos e começamos a trepar, lenta, sombria e maravilhosamente bem. Na manha seguinte acordei com Cass já em pé, preparando o café. Dava a impressão de estar perfeitamente calma e feliz. Até cantarolava. Fiquei ali deitado, contente com a felicidade dela. Por fim veio até a cama e me sacudiu.
- Levanta cafajeste! Joga um pouco de água fria nessa cara e nessa pica e venha participar da festa!
Naquela dia convidei-a para ir á praia de carro. Como estávamos na metade da semana e o verão ainda não havia chegado, encontramos tudo maravilhosamente deserto. Ratos de praia, com a roupa em farrapos, dormiam espalhados pelo gramado longe da areia. Outros, sentados em bancos de pedra, dividiam uma garrafa de bebidas da tristonha. Gaivotas esvoaçavam no ar, descuidadas e no entanto aturdidas. Velhinhas de seus 70 ou 80 anos, lado a lado nos bancos, comentavam a venda de imóveis herdados de maridos mortos há muito tempo, vitimados pelo ritmo e estupidez da sobrevivência . Por causa de tudo isso, respirava- se uma atmosfera de paz e ficamos andando, para cima e para baixo, deitando e espreguiçando-nos na relva, sem falar quase nada. Com aquela sensação simplesmente gostosa de estar juntos. Comprei sanduiches, batatas frita e uns copos de bebida e nos deixamos ficar sentados, comendo na areia. Depois me abracei a Cass e dormimos encostados um no outro durante durante quase uma hora. Não sei por que , mas foi melhor do que se tivéssemos transado. Quando acordamos, voltamos de carro para onde eu morava e fiz o jantar. Jantamos e sugeri que fossemos para a cama. Cass hesitou um bocado de tempo, me olhando, e ai então respondeu, pensativa:
- Não. Levei- a outra vez até o bar, paguei-lhe um drinque e vim- me embora . no dia seguinte encontrei serviço como empacotador numa fabrica e passei o resto da semana trabalhando. Andava cansado demais para cogitar de sair á noite, mas naquela sexta- feira acabei indo ao West End Bar. Sentei e esperei por Cass. Passaram- se horas. Depois que já estava bastante bêbado, o sujeito que atendia no balcão me disse:
- Uma pena o que houve com sua amiga.
- Pena por que?
- Desculpe . Pensei que soubesse.
- Não.
- Se suicidou. Foi enterrada ontem.
- Enterrada? - repeti Estava com a sensação de que ela ia entrar a qualquer momento pela porta da rua . Como poderia estar morta?
- Sim, pelas irmãs
- Se suicidou? Pode- se saber de que modo?
- Cortou a garganta.
- Ah! Me dá outra dose.
Bebi até a hora de fechar. Cass a mais bela das 5 irmãs, a mais linda mulher da cidade. Consegui ir dirigindo até onde morava. Não parava de pensar. Deveria ter insistido para que ficasse comigo em vez de aceitar aquele "não". Todo o seu jeito era de quem gostava de mim. Eu é que simplesmente tinha bancado o durão, decerto por preguiça por ser desligado demais. Merecia a minha morte e a dela. Era um cão. Não, para que por a culpa nos cães? Levantei, encontrei uma garrafa de vinho e bebi quase inteira. Cass, a garota mais linda da cidade, morta aos vinte anos. Lá fora, na rua, alguém buzinou dentro de um carro. Uma buzina fortíssima, insistente. Bati a garrafa com força e gritei:
- MERDA! PÁRA COM ISSO, SEU FILHO DA PUTA!
A noite foi ficando cada vez mais escura e eu não podia mais fazer nada."




Dez filmes para quem
quer conhecer Bukowski


10º – Uma Espécie em Extinção (Art Linson, 1980)Seguindo os passos do excêntrico jornalista Hunter S. Thompson, a trama procurará transpor ao espectador toda a aura de incongruência que rege o comportamento daquele homem, sempre se utilizando de cenas cômicas exacerbadas. ‘Uma Espécie em Extinção’, apesar de se fazer, de fato, um filme com uma qualidade bastante duvidosa, é a oportunidade de vermos Bill Murray ainda em começo de carreira, entregando uma atuação positiva.

9º – Factotum – Sem Destino (Bent Hamer, 2005)Seguiremos a vida de Hank Chinaski, um escritor sem sucesso que tem que trabalhar em empregos pequenos para poder continuar a escrever. O filme ganha a sua substância exatamente ao explorar o dia a dia do homem, com seu modelo desajustado de lidar com tudo que permeia o mundo. ‘Factotum’ é regular em seu compêndio geral, valendo a pena por se basear nos romances de Charles Bukowski e trazer um personagem que foge àquele senso comum insosso.

8º – Barfly (Barbet Schroeder, 1987)Baseado na vida do escritor Charles Bukowski, o filme traz vários fragmentos da vida do autor durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, sempre prezando por expor o modelo exacerbado do homem lidar com as instâncias da vida. ‘Barfly’ entrega uma atmosfera rústica ao seu espectador, contando a história de seu personagem central de uma forma crua e sem fazer concessões. Um bom filme, trazendo, ainda, a presença de Mickey Rourke como protagonista.

7º – Sem Destino (Dennis Hopper, 1969)Dois motociclistas desajustados embarcam em uma jornada através dos Estados Unidos, simplesmente aproveitando as coisas que cada lugar tem a oferecer. O filme não é assertivo ao traçar seus objetivos finais, trazendo ao espectador uma trama que se estabiliza sempre no mesmo ritmo. Aqui, Jack Nicholson possui um personagens secundário, não sendo importante para o desenrolar da história, mas, mesmo assim, conseguindo deixar sua presença gravada na cabeça de quem assiste ao filme.

6º – Contos Proibidos do Marquês de Sade (Philip Kaufman, 2000)Baseado na peça de Doug Wright, a trama segue o dia a dia conturbado de um asilo para loucos que tem como paciente ilustre a figura do Marquês de Sade. Drama envolvente e dinâmico, ‘Contos Proibidos do Marquês de Sade’ opta por não atenuar os eventos mais marcantes de sua história, entregando ao espectador um filme rústico. Aqui, Joaquin Phoenix assume um personagem secundário, dando campo para as atuações impecáveis de Geoffrey Rush e Kate Winslet.

5º – Anti-Herói Americano (Shari Springer Berman, 2003)Baseado na vida do escritor de histórias em quadrinhos Harvey Pekar, a história passeará por toda sua vida, mostrando os eventuais percalços de sua jornada, assim como seu comportamento estranho e desajustado. Atuação impecável de Paul Giamatti à frente do protagonista, um roteiro conciso e uma direção criativa tornam este filme imperdível.

4º – Testa de Ferro Por Acaso (Martin Ritt, 1976)A história trazida ao público é a de Howard Prince, no começo da década de 1950, um homem que ganha a vida como caixa de um bar e fazendo apostas para determinados indivíduos. A trama ganha força quando seu amigo, Phil Sussman, um famoso roteirista de Hollywood, o procura querendo ajuda. Inserido há pouco tempo na lista negra de Hollywood, Sussman pede para Prince que este comece a assinar seus roteiros, como se eles fossem escritos pelo próprio Prince, em troca de uma pequena porcentagem da comissão de venda. Prince aceita a missão e logo se dá conta que aquilo era muito mais prazeroso e rentável do que aparentava a priori.

3º – Os Idiotas (Lars von Trier, 1998)Um grupo de pessoas rompe com os laços morais e éticos da sociedade local, desenvolvendo uma nova forma de reger seus passos sobre a terra, pautados no lado instintivo de suas personalidades. Polêmico, ‘Os Idiotas’ é um filme com uma qualidade medíocre, filmado de uma forma meio primitiva, sem um cuidado estético na execução das cenas, e com um roteiro um pouco presunçoso. No entanto, os conceitos abordados e a ideia central da obra fazem com que a experiência de assistir ao filme seja positiva e necessária para entender a evolução do cinema dinamarquês e do cineasta Lars Von Trier (diretor do filme).

2º – A Insustentável Leveza do Ser (Philip Kaufman, 1988)Alocado em meio à década de 1960, o filme conta a história de um triângulo amoroso, explorando as aventuras de seus integrantes, sempre tendo como pano de fundo o cenário político turbulento de Praga à época. ‘A Insustentável Leveza do Ser’, filme baseado no romance de Milan Kundera, trabalha sobre as várias nuances de uma vida, elevando a figura do acaso em cada fragmento de cena e em seus personagens centrais.

1º – Medo e Delírio (Terry Gilliam, 1998)Baseado no livro de Hunter S. Thompson, o filme apresenta uma história permeada por exageros e um psicodelismo latente. Um filme que, por vezes, pode confundir e causar desconforto no espectador, mas que se notabiliza como uma ótima opção.






O pássaro azul

há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito
que quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí,
quer acabar comigo?
(…) há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo: sei que você está aí,
então não fique triste.
depois, o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
como nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar,
mas eu não choro,
e você?



Um poema de amor

todas as mulheres
todos os beijos delas as
formas variadas como amam e
falam e carecem.

suas orelhas elas todas têm
orelhas e
gargantas e vestidos
e sapatos e
automóveis e ex-
maridos.

principalmente
as mulheres são muito
quentes elas me lembram a
torrada amanteigada com a manteiga
derretida
nela.

há uma aparência
no olho: elas foram
tomadas, foram
enganadas. não sei mesmo o que
fazer por
elas.

sou
um bom cozinheiro, um bom
ouvinte
mas nunca aprendi a
dançar — eu estava ocupado
com coisas maiores.

mas gostei das camas variadas
lá delas
fumar um cigarro
olhando pro teto. não fui nocivo nem
desonesto. só um
aprendiz.

sei que todas têm pés e cruzam
descalças pelo assoalho
enquanto observo suas tímidas bundas na
penumbra. sei que gostam de mim algumas até
me amam
mas eu amo só umas
poucas.

algumas me dão laranjas e pílulas de vitaminas;
outras falam mansamente da
infância e pais e paisagens;
algumas são quase
malucas mas nenhuma delas é
desprovida de sentido; algumas amam
bem, outras nem
tanto; as melhores no sexo nem sempre
são as melhores em
outras coisas; todas têm limites como eu tenho
limites e nos aprendemos
rapidamente.

todas as mulheres todas as
mulheres todos os
quartos de dormir
os tapetes as
fotos as
cortinas, tudo mais ou menos
como uma igreja só
raramente se ouve
uma risada.

essas orelhas esses
braços esses
cotovelos esses olhos
olhando, o afeto e a
carência me
sustentaram, me
sustentaram.


E minhas próprias coisas eram tão más e tristes, como o dia em que nasci. A única diferença era que agora eu podia beber de vez em quando, apesar de nunca ser o suficiente. A bebida era a única coisa que não deixava o homem ficar se sentindo atordoado e inútil o tempo todo. Tudo mais te pinicando, te ferindo, despedaçando. E nada era interessante, nada. As pessoas eram limitadas e cuidadosas, todas iguais. E eu teria que viver com esses putos pelo resto de minha vida, pensava. Deus, eles todos tinham cus, e órgãos sexuais e suas bocas e seus sovacos. Eles cagavam e tagarelavam e eram tão inertes quanto bosta de cavalo. As garotas pareciam boas à distancia, o sol provocando transparências em seus vestidos, refletido em seus cabelos. Mas chegue perto e escute o que elas tem na cabeça sendo vomitado pelas suas bocas. Você ficava com vontade de cavar um buraco sobre um morro e ficar escondido com uma metralhadora. Certamente eu nunca seria capaz de ser feliz, de me casar, nunca poderia ter filhos. Mas que diabo, eu nem conseguia um emprego de lavador de pratos.
Talvez eu pudesse ser um ladrão de bancos. Alguma porra. Alguma coisa flamejante, com fogo. Você só tinha direito a uma tentativa. Por que ser um limpador de vidraças?




Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim.
Há o mundo continuando a fazer o que faz.
E eu não estou lá. Muito estranho. Penso
no caminhão do lixo passando e levando o lixo
e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim
e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível.
E pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser
verdadeiramente descoberto. E todos aqueles
que tinham medo de mim ou me odiavam
vão subitamente me aceitar. Minhas palavras
vão estar em todos os lugares. Vão se formar
clubes e sociedades. Será nojento.
Será feito um filme sobre a minha vida.
Me farão muito mais corajoso e talentoso do que
sou. Muito mais. Será suficiente para fazer
os deuses vomitarem. A raça humana exagera
em tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.






Nunca fui elegante. Minhas camisas eram todas desbotadas, encolhidas, surradas, e já tinham cinco ou seis anos. Minhas calças, a mesma coisa. Detestava as grandes lojas, detestava os vendedores, eles se faziam de superiores, pareciam conhecer o sentido da vida, tinham uma segurança que me faltava. Meus sapatos eram sempre velhos e estropiados, e eu detestava lojas de sapatos também. Nunca comprava nada de novo, a menos que as minhas coisas já estivessem completamente inutilizadas - automóveis inclusive. Não era questão de economia; é que eu não era tolerava ser um comprador na dependência dos vendedores, aqueles caras tão altivos e superiores. Além disso, eu perdia tempo, um tempo em que eu podia muito bem estar de papo pro ar, bebendo.








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