Sexta, 3 de junho de 2022

 

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especial

Nesta sexta, uma cesta
de Alcides Maya! 


O primeiro gaúcho eleito para a Academia Brasileira de Letras, sendo o segundo ocupante da cadeira 4. Assumiu em 6 de setembro de 1913, na sucessão de Aluísio Azevedo.


A função da Academia é ligar o Brasil de norte a sul, sistematizando e consagrando todas as manifestações da alma coletiva, ao invés de as repelir a pretexto de bom gosto ou de as esquecer em nome da metrópole.


Era justo que o Rio Grande do Sul fosse representado aqui (ABL): o gaúcho defende e mantém nas fronteiras do Sul a obra titânica do bandeirante. Ele é o irmão do sertanejo. Sirva e amparo ao meu áspero e rude regionalismo essa verdade de sangue, de sacrifício e de sentimento comum.








Alcides Maya (Alcides Castilho Maia)  nasceu em São Gabriel, em 15 de setembro de 1878. Faleceu no Rio de Janeiro, em 2 de outubro de 1944. Foi jornalista, político, contista, romancista e ensaísta, 

Seu pai, Henrique Maia de Castilho, era funcionário federal. O vínculo com o pago e o sentimento gaúcho, que marcariam a ficção do futuro escritor, vieram-lhe através da linha materna. Carlinda de Castilho Leal, sua mãe, era filha de Manuel Coelho Leal, dono da estância de Jaguari, no município de Lavras do Sul, e ainda de duas frações de campo em São Gabriel, chamadas Tarumã e Guabiju. Alcides Maya passou a infância na estância de Jaguari, cenário de muitas de suas páginas regionalistas, sobretudo no romance Ruínas Vivas.


 Antes de ter concluído os estudos primários, Alcides foi viver em Porto Alegre, onde fez os estudos de humanidades. Em 1895, com 18 anos, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. A sua verdadeira vocação, porém, eram as letras e o jornalismo, por isso abandonou o Direito. Retornando a Porto Alegre em 1896, edecidiu-se pelo jornalismo militante, atividade que exerceu por toda a vida.


No jornalismo distinguiu-se sempre pela preocupação eminentemente cultural e pelo engajamento político. Iniciou sua atividade em A Reforma, órgão federalista, mas logo foi “lutar ao lado dos batalhadores da República”. 


A partir de 1897 passou a integrar a redação de A República, órgão da dissidência republicana, e chegou a ocupar a direção do jornal. Aos 19 anos estreou em livro com Pelo Futuro. Seus artigos de jornal de 1898 a 1900 foram reunidos em livro sob o título de Através da Imprensa. Além da vivência nas redações de jornais, teve contato, em Porto Alegre, com o celebrado polígrafo Apolinário Porto Alegre, cujo retiro da Casa Branca era “a verdadeira sede da atividade espiritual do Rio Grande”.

Em 1903, Alcides Maya fez sua primeira viagem ao Rio de Janeiro, onde seu nome já era bem conhecido. A partir de então, passou a viver e a desenvolver atividades, alternadamente, ora no Rio de Janeiro, ora em Porto Alegre. Homem de caráter, era o tipo de intelectual talhado para sentir-se à vontade na capital do país. Seu gauchismo sem jaça era a expressão da autenticidade do seu nacionalismo atuante. Suas ideias antisseparatistas estão contidas no livro O Rio Grande Independente. No Rio, residia numa “república de intelectuais”, situada na rua das Laranjeiras, onde recebeu um dia a visita de Machado de Assis. Desde então, foi levado a entrar na intimidade do mundo machadiano.


A partir de 1905, passou a militar na imprensa carioca, profissionalmente, colaborando em O País, O Imparcial, Correio da Manhã e Jornal do Comércio. Assinava artigos também com o pseudônimo Guys. Em 1908, voltou para Porto Alegre, levado por uma motivação bastante ambiciosa: a fundação de um matutino, o Jornal da Manhã. Durou apenas um ano, mas ficou na sua coleção uma parte valiosa do acervo jornalístico de Alcides Maya. De volta ao Rio, viveu os melhores anos de sua carreira jornalística e literária. Em 1910, publicou seu único romance, Ruínas Vivas, que irá compor, com os livros de contos Tapera (1911) e Alma Bárbara (1922), a sua trilogia regionalista, que reflete a poesia dos pampas, buscando no passado as raízes do seu povo.

Outros grandes momentos de sua carreira se deram em 1912, com a publicação do ensaio Machado de Assis e, no ano seguinte, com a sua entrada na Academia Brasileira de Letras, como o primeiro rio-grandense a ter ingresso na Casa de Machado de Assis. Por essa época, era o bibliotecário do Pedagogium.


Representou o Rio Grande do Sul na Câmara dos Deputados, no período legislativo de 1918 a 1921. Embora integrado na representação do Partido Republicano, a sua atividade parlamentar se fez sentir pela preocupação com os problemas da educação e cultura. De 1925 a 1938, residiu em Porto Alegre, com breve incursão ao Rio, decorrente de sua participação no movimento revolucionário de 1930. Dirigiu o Museu Júlio de Castilhos, até se aposentar, e colaborou no Correio do Povo.

Levado por uma inquietação de toda a vida, retornou ao Rio, onde viveu os últimos anos de sua vida (1938-1944), escrevendo para o Correio do Povo e frequentando a Academia Brasileira de Letras quando podia. Mas sempre sentindo saudades do Rio Grande. Voltou cinco anos após a sua morte, quando seus restos mortais foram trasladados para o Panteon Rio-grandense, em Porto Alegre.

Segundo ocupante da cadeira 4, foi eleito em 6 de setembro de 1913, na sucessão de Aluísio Azevedo e recebido em 21 de julho de 1914 pelo acadêmico Rodrigo Otávio. Recebeu o Acadêmico Gregório da Fonseca.


Busto de Alcides Maya, na praça 
General Daltro Filho,
em Porto Alegre


O artista não se limita a ver e revelar essa realidade: retoca-a, embeleza-a, representa-a à sua própria imagem, sonha-a melhor e mais bela e não a sonha ao acaso da fantasia. A imaginação e o sentimento estão sujeitos a leis: a representação estética do mundo depende do desenvolvimento do cérebro, das doutrinas, das idéias dominantes.


Estaqueado

Conto de Alcides Maya


Espertando as brasas ao borralho, entre churrasco e mate, narrava Florentino aos companheiros um dos últimos lances dos seus amores quando os cães, de ronda à noite, romperam a ladrar furiosamente.

De golpe, ariscos, os três homens ergueram-se e, trocando olhares interrogativos, no sobressalto que à época, de guerra sem tréguas, provocavam os rumores da estrada, saíram cautos ao terreiro.

Seguido pelo João Crioulo, que, em farejando perigo lhe não abandonava a sombra, limitou-se o capataz a perscrutar a treva nos arredores; mas o índio Afonso, lidador amestrado nas guerrilhas farrapas, quis mostrar outros como se procedia antigamente e, afastando-se, deitou-se na macega e colou o ouvido à terra. Durante um minuto, compassado bateu contra o solo duro o coração do guasca...

Nenhum longínquo repercurso indiciava tropel do exército em marcha; e como os quero-queros, adormecidos, não anunciassem gente, concluiu o gaúcho, levantando-se, não se tratar de forças.

Incapaz, por anciania, de bater-se, e despeitado ante uma revolução de que o alheava a idade, ao antigo farroupilha aprouve negar qualquer aproximação de colunas e simulou desdém pelo receio dos outros.

Cavalhada nenhuma, comentou reunindo-se-lhes. Que tropa haverá de ser? Pela certa, esses diachos tão vendo alguma coisa lá em riba... É da lua...

E os seus olhares subiram, fixaram-se na altura, onde, como uma adaga alfanjada, o crescente, por entre nuvens, ensanguentado, surgia.

Os cães, no entanto, não houve chamá-los: toda a noite investiram à campanha, furiosos, na sua contínua ronda selvagem.

— Danados! invectivou-os Florentino com simpatia de retorno ao fogão. Boa raça! Estes, são para o que vier: enxergam no escuro e morrem ao lado do dono... Também não se pede outra cousa, que eles é que nos põem no rastro das carniças...

— Se desta feita não engoram... — foi o comentário sarcástico do índio.

E a sua cólera rebentou contra o "modo de se guer­rear hoje em dia".

— Não se respeitava ninguém e era só roubo c mais roubo, degola e mais degola. Antigamente, não: em combate, ninguém tinha pena, quem podia matar, ma­tava; mas, depois, no acampamento, os prisioneiros.eram tratados que nem ermãos. Que ermãos nóis semos... Lembre-se, amigos, do que lê contei de quando peguemos aquele bombero de Chico Pedro. O homem tinha vindo pela calada inté a nossa guarda avançada. Degolou-se? Que esperança! Ameaçado de morrer ali ansim, não. disse nada, nem abriu a boca e ia ser fuzilado sem testavilhar quando o general se meteu no meio. — Que um gaúcho guapo, disse, só se mata no campo e de arma na mão... Pois era por este conseguinte nos meus tempos e não se saqueava... Hoje em dia! Haraganos!

E no galpão deserto, longamente ressoou a linda romanceria heroica da campanha antiga...

***

Na manhã seguinte, verificou-se a suspeita da vés­pera: numerosos contingentes militares acampavam além do Salso.

Aos habitantes da estância impressionou-os primeiro, no horizonte, o negrume dos corvos, acompanhando os exércitos na expectativa do dia seguinte das batalhas e cevados nos cadáveres que a pressa das guerrilhas inse­pultos espalha no pampa; depois, o gado a correr em alvoroço ao fundo do campo; e, afinal, signo infalível, dois ou três cavalos feridos, que, longe das querenças, e não desejando talvez morrer no abandono de estranhas terras, seguiam a distância os regimentos onde os com­panheiros estavam. Mais tarde, um grande pontilha-mento de fogões, em linhas múltiplas, anunciando bivaque; e, ao outro dia, unia vasta e renhida batalha próxima.

De posto em posto, breve, circulou pelos fogões a nova do recontro; fora completamente batida a coluna rebelde e dali à fronteira, numa extensão de quatro a c inço léguas, a. cavalaria vitoriosa perseguira a ponta de lança os vencidos.

***

Voltando, à tarde, de percorrer a estância, trouxe o João Crioulo a nova de uma carniça no cerro dos Paus-a-pique, em frente à planície onde se peleara o último  entrevero.

Descobrira-a à volta pelo revoar dos corvos e não tivera tempo de ir courear a rês morta.

Na madrugada seguinte, saindo a rodeio, Florentino, em trânsito por aquele rincão, convidou o índio para nina chegada ao cerro.

Alcançaram-no com o sol ainda baixo no horizonte.

Soprava uma aragem fresca; o gado, tranquilo, espalhava-se nos pastiçais rociados; e dos ramos rebrilhantes de aljôfar, pássaros, perto dos ninhos, chilreavam, des­pertos à luz tíbia. Dentre as ervas e espaços, perdizes voavam assustadas; havia sobre superfícies mansas de água adejos lentos de garças brancas; e avestruzes aos bandos iniciavam pelas várzeas e coxilhas o seu giro vagamundo, arrepiando a plumagem cor de cinza, distendendo as asas mangras. Como sempre, à vista de ginetes quero-queros cantavam, em rebate, e longamente repercutia por vezes nas campinas o mugir da tourada, ou, alegres à aurora que raiara, ecoavam amorosos nitridos de pastores conclamando a eguada. Todo o campo, rórido, fulgia e de rútilos revérberos diamantinos, toucavam-se a perder de vista, às espadanas oblíquas do sol nascente, os musgos, as relvas, as macegas, as folhas altas do arvo­redo, as próprias rugosidades pétreas, escalavradas, verdoengas de líquen, venadas de hera, com insetos indecisos em aturdido voejo, evitando arestas, sobre os verdes reves­timentos caprichosos, irregulares das paredes ásperas. Borboletas, abelhas e colibris, passarinhos, dourados escaravelhos, voláteis formas multicores, agitavam-se, esvoa­çavam sobre galhos, rochas, plantas, enquanto nos pri­meiros surtos da manhã, voluptuosos de espreguiçamento ao espalmar das asas, caranchos sulcavam fortes o ar, em transvoos tardos. E havia para as nuvens vibrantes ascen­sões de guias e principiava nas flores do campo a colheita de mel para as colmeias. Puro anilava-se o céu, toda a campanha verdejava suavemente.

***

No tranco, observando as pontas de gado que mar­chavam rumo do rodeio, os dois gaúchos rejubilavam ante a criação nova.

Fora-se o inverno: flora renascera e à alma rude dos campeiros agradava o espetáculo da terneirada tro­tando ao lado das vacas ou dos potrilhos retouçando sob um raio bom de sol. E, certo, o prazer, que sentiam aumentava-o a memória dos últimos massacres, de par com a esperança do fim da guerra.

Derrotados, extraviavam-se agora os revolucionários pelas veredas e encruzilhadas da linha. Oxalá não volvessem!

No íntimo, espicaçava-lhes ainda o orgulho a neu­tralidade que lhes fora imposta, a um pelo seu posto de capataz, obrigando-o a agradar a ambos os partidos, pelos anos ao outro. Mas a luta cessara e com os prejuízos, aliás de pouca monta, ia-se também o constrangimento que os dominava de estarem a matear nos fogões, conver­sando, enquanto nas coxilhas, desfraldadas, as bandeiras convocavam à pugna.

Seria aquela a última carniça deixada na estância pela revolução? Quem sabia! Dissolvidas as tropas, formavam-se malocas de bandoleiros e mais do que nunca se impunha a vigilância do campo.

— Tinham de dormir de freio na macega por muito tempo... — acentuou Florentino. Acabara a guerra dos políticos, ia principiar a guerra dos ladrões...

— Que esta rês morta hi nos Pau-a-Pique, eu lê juro, che! é obra no mais dessa plevia do Salso. Vivem sem trabalho e serviram-se do combate pra que se pense terem sido soldados... Foram eles... Inda um dia!

Mas aproximavam-se e, galgado o cerro, aos olhos pávidos dos gaúchos um painel trágico recortou-se, de surpresa.

Quatro estacas ensanguentadas erguiam-se palmos acima do chão e, entre elas, ainda preso a duas pelos artelhos, que um maneador ligava aos tocos cravados no solo, uni cadáver jazia ressupino, entregue aos abutres, carcaça à mostra, órbitas vazias, ventre rasgado, restos de carne em sânie sobre os ossos nus. Um fétido insupor­tável exalava-se do corpo em decomposição. Fugitivos diante dos homens, corvos olhavam de longe, gulosos, o arcabouço pútrido.

Era aquela a carniça: defrontavam evidentemente um prisioneiro de guerra.

Haviam-no deixado ali, por vingança decerto, após a batalha; e ali agonizara muitas horas, bem esticado, cabeça caída para trás, rosto congestionado, olhos desesperadamente voltados para o firmamento. Vira talvez baixar do azul o primeiro urubu esfaimado, sentindo no peito e nos olhos a dor terebrante das primeiras bicadas.

Quem, a vítima? quem, os assassinos?

Ante o mistério do crime, de improviso descoberto na sinistra molduragem daquele estaqueamento, sombrios e perplexos por algum tempo quedaram os gaúchos; porém o silêncio, interrompeu-o índio Afonso, entre agoniados e raivoso:

— Bandidos !

Estendera, reteso à cólera, o braço; eram-lhe áscuas vivas as pupilas, e, da cima isolada e pedregulhenta do cerro, o seu gesto de maldição recortou-se enérgico e austero sobre a amplitude melancólica dos campos...


Em arte, o teatro de ação valo pelos efeitos de ação, pelo desenho ideal do sentimento e das paixões, pelo símbolo de vida que o anima, releva e eterniza. Sem o dom de amar no sonho, o artista não alcançará jamais a perfeição, quaisquer que sejam o estilo, a forma e os visos naturais impressos à matéria em lavra.



O Legado Cultural de Alcides Maya

Cyro Martins  

Graças à generosidade de Augusto Meyer, estive inúmeras vezes com Alcides Maya e guardo a mais viva lembrança da sua presença fascinante. Não era um homem de acesso difícil. Pelo contrário, tenho a impressão de que ele apreciava as visitas, principalmente aquelas que lhe podiam servir de auditório diante das quais, conforme as circunstâncias e o momento, tanto enquadrava um fato na perspectiva histórica do Rio Grande ou reanimava o seu lendário, como abordava temas da literatura universal ou esmiuçava problemas do seu tempo. Mas não nos adiantemos. Prefiro imprimir uma certa ordem cronológica a este depoimento.

O meu primeiro contato com a obra de Alcides Maya aconteceu em janeiro de 1924, na minha terra natal, Quaraí. Fazia dois meses apenas que fora firmado o Pacto de Pedras Altas, dando por encerradas as atividades revolucionárias que, durante nove meses, revivendo velhas façanhas guerrilheiras, alvoroçaram as coxilhas do Rio Grande do Sul. Meu pai que, à semelhança de centenas de moradores da campanha, se instalara com a família na cidade, à guisa de maior segurança, ainda não se decidira a voltar para os pagos.

Os escassos trinta anos decorridos da sangrenta guerra maragata não haviam sido suficientes para apagar da memória os episódios de ódio e vingança daquele fratricídio. Estudante em férias, se por um lado gostava dos passeios à tardinha ao redor da praça, da velha praça de Quaraí, arrodeada de avenidas de eucaliptos gigantescos, namorando as gurias de minha idade, por outro, acompanhava com exaltação o desenrolar dos acontecimentos políticos e vibrava com a chegada dos heróis revolucionários retomando gloriosos das coxilhas, palavra que simbolizava a guerrilha gaúcha.

E além disso, lia e começava a ensaiar os primeiros escritos. Estava, portanto, de ânimo predisposto para receber, como recebi, certo dia, das mãos de um tio paterno, que estimo muito, um livro de contos gauchescos intitulado Alma Bárbara, da autoria de Alcides Maya, aparecido um ano e pouco antes em 1922. Nunca mais eu largaria de mão esse livro, embora às vezes ele fique, como sói acontecer mesmo com os livros mais amados, imobilizado na estante, curtindo o seu destino de livro. Revejo-me, com os meus quinze anos, sentado numa cadeirinha baixa no pátio lajeado da casa de aluguel que ocupávamos, à sombra dum umbu do quintal do vizinho, folheando aquelas páginas largas, cuja finura literária eu iria descobrindo aos poucos, à medida que amadurecia e voltava a elas. E ainda agora, quando as releio, descubro novidades na abordagem dos temas crioulos, sugestões fecundas, volteios de estilo, e sobretudo ouço os ecos das campereadas, me afundo no silêncio das noites do pampa e vibro de novo com a poesia dispersa do ermo. Férias bem aproveitadas foram aquelas!

E tanto mais que, dias depois, o recém-conhecido Waldemar Ripoll, jovem talento impregnado duma filosofia heróica de vida e tragicamente destinado ao sacrifício precoce, quando lhe falei de Alma Bárbara, com aquele entusiasmo que estonteia os quinze anos, me veio logo com a Tapera, já obra antiga de Alcides Maya, surgida em 1910. Estava todo sublinhado o seu exemplar, como aliás quase todos os jovens o fazem, quando tocados pela admiração. Já então era obra esgotada. E até hoje só conheceu uma segunda edição, quarenta e dois anos depois de seu lançamento, e isso mesmo graças ao empenho amigo de Augusto Meyer. Mas deixem-me folhear ainda por instantes, na saudade, junto com Waldemar Ripoll, aquelas páginas mordidas de riscos e exclamações nervosas.

Mais velho que eu, mais lido e mais experiente, Waldemar me ajudou a penetrar no mundo gauchesco da ficção alcidiana. E me emprestou o seu precioso exemplar com muitas recomendações, entre as quais esta: não perdesse de vista que se tratava de obra esgotada! A expressão obra esgotada ficou ressoando na minha fantasia e me acompanhou, enquanto eu caminhava vagarosamente em direção a minha casa, com o volume bem seguro na mão. Ia devagar porque, àquela hora, ao declinar da tardinha, não me adiantaria mais sentar no pátio para ler e a luz da cidade ainda tardaria uma hora para vir. Entretanto, mesmo no lusco- fusco, não resisti à tentação e parei mais de uma vez para dar uma espiada no prefácio de Coelho Netto. Recordo ainda hoje que me impressionaram, talvez definitivamente, duas passagens do prefaciante, que procurei agora e felizmente encontrei.

“A nossa literatura -escreveu Coelho Netto -em vez de iluminar, encobre: é nuvem, quando deveria ser luz. Feita com as densas fumaradas que nos trazem os ventos de longe, abruma-nos.” Essa chamada incisiva do famoso escritor para a necessidade dos intelectuais da época olharem com interesse criativo para os motivos nacionais, a nossa natureza e a nossa gente, me ficou gravada. Não era matutice literária, pois escrever sobre como se vivia na campanha não representava pobreza de imaginação, nem juntar os gravetos da nossa humilde experiência e tentar construir uma estória, Animado, olhei para dentro de mim e, inspirado nas vivências de infância na campanha: escrevi o meu primeiro conto, pelo menos a minha primeira página que eu atrevia a batizar assim.

Para quem possui um lastro de imagens campeiras na sua bagagem de experiências existenciais é fácil sentir no ritmo do estilo de Alcides Maya a autenticidade da sua produção como ficcionista, em que pese o vocabulário por vezes rebuscado, impróprio mesmo à natureza dos seus temas.

Esta é a restrição mais grave de alguns setores da crítica à obra alcidiana. Realmente, não se pode ocultar que existe essa defasagem, enfeando a estrutura da sua frase, em muitos trechos, em especial na primeira parte de Ruínas Vivas. É difícil de conceber que um escritor do nível de Alcides Maya, senhor do amplo universo da cultura, frequentador assíduo, desde mui jovem, dos mais significativos autores da filosofia, do ensaio e da ficção do século XIX, escrevendo em português depois de Eça de Queirós e Machado Assis, caísse na armadilha coelhonetana de atulhar certas páginas de seus textos de termos arrevesados, já em desuso na época, a ponto da leitura desses textos ser apenas possível com o dicionário na mão.

Não se trata duma complexida estilística excedendo os limites do regionalismo, à maneira de Guimarães Rosa, que choca também, mas o impacto que produz é pela novidade da invenção, pelo inédito da palavra recém-criada, ainda úmida das águas da fonte original, num esforço agoniado para expressar o primitivismo anímico de suas criaturas. Alcides não. Foi buscar nos arcanos da língua palavras anacrônicas, palavras que, talvez, correspondessem ao sentido expressivo das suas emoções, mas que, aos leitores, soam como maneirismos autistas, destoantes da realidade humana circunjacente. Sinto muito ter que me incorporar aos que o criticam por esses deslizes de escrita.

Não obstante, seus três livros de ficçao -Ruínas Vivas, Tapera e Alma Bárbara - se impuseram à crítica e aos leitores. É que há na ficção gauchesca de Alcides Maya uma comovente identificação com os seus motivos, identificação, essa, que ele transfunde ao leitor, envolvendo-o, tornando-o íntimo, pelo sentimento de cenas e costumes da vida pampiana que descreve, embora às vezes sobrevenham arrancadas um tanto artificiais, frutos de uma forçada de mão para caracterizar maneiras de viver idealizadas. Como explicarmos essas falhas? Pelo temperamento romântico não se explicam.

Talvez pelo detalhismo naturalista, como nas primeiras páginas de Ruínas Vivas. O fato é, porém, que a ficção alcidiana possui um sentido gauchesco tão pleno, abrange aspectos tão extensos da vida da nossa campanha na transição do século passado para este, abre sobre o Rio Grande uma ramagem tão dourada ao sol do seu talento, que vem sobrepondo-se aos tropeços de estilo e às conseqiientes ventanias da crítica. Crítica bem intencionada e respeitosa, acentuemos. Mas, sem dúvida , soprepujam largamente as qualidades de linguagem sobre os senões.

Quero ainda ressaltar sua rara capacidade estética de não só retratar a paisagem da campanha rio-grandense, principalmente os descampados da fronteira, como também captar-lhe o que as suas nuances de cor e linha insinuam na alma da gente, tais como a imponência monótona e tristonha das vastas planuras, os ocasos apoteóticos, as manhãs cintilando no triunfo da luz, as invernias brabas e ventosas.

Ele é, pois, sobretudo, um paisagista, embora não se possa dizer que não traçou perfis caracterológicos notáveis, como o do Miguelito, Neco alves, Jango Souza, Tio Moysés, Anilho, Aires, Ritoca e outros. E há ainda a ressaltar o ppensamento-guia, profundo e pungente, voltado para o destino das glebas miseráveis do interior do país. Esse pensamento foi a base ideológica sobre a qual se estruturou o enredo de Ruínas Vivas , a ponto de Augusto Mayer considerá-lo o primeiro romance social do Brasil.

Excerto do ensaio “O legado cultural de Alcides Maya”.
MARTINS, Cyro. Escritores Gaúchos. Porto Alegre, Movimento, 1981, p. 20-23.



Alcides Maya médium?

O que pouca gente sabe é que Alcides Maya foi bastante exaltado entre os espíritas, quando tomaram conhecimento de alguns fenômenos por ele manifestados. Sabe-se que foi excelente médium de efeitos físicos, o que muitas vezes o deixou em situações desagradáveis junto de amigos.

Alguns dos fatos vividos por Alcides Maya chegavam a ser cômicos.

Atendendo um pedido de Alcides Maya, o poeta Leal de Souza mudou-se da rua Senador Vergueiro, onde morava,  para a pensão da rua Buarque de Macedo, 52, endereço do escritor gabrielense. Maya queixava-se de crises nervosas e dizia n

Logo que ocupou seu quarto na pensão, Leal de Souza sentiu que os seus cabelos ficaram de pé e ele todo arrepiado. Eram aproximadamente 10 horas da noite, quando ouviu alguém bater com força na porta de seu quarto. E despreocupado, Leal disse, cordialmente: "Entre!"

E ninguém entrou, pelo menos, aparentemente. Mas, atento, ouviu certos passos se dirigirem da porta até o ponto em que se encontrava. Como nada visse pensou: “São passadas no aposento ao lado”.

Mas não demorou para ouvir novas pancadas, dessa feita na porta que dava comunicação ao quarto vizinho, onde estava instalado o então presidente da Assembléia Legislativa, do Rio de Janeiro, Francisco Marcondes.

Leal de Souza não era assustado e nem acreditava em fantasmas. E não pensou duas vezes, saiu do quarto e foi procurar o incômodo vizinho, a fim de pedir silêncio. Mas Francisco Marcondes não se encontrava na pensão. Isso não incomodou Leal que voltou ao seu aposento, deitando-se sem mais delongas.

Foi quando o incrível e inesperado ocorreu. Sua cama levantou-se sozinha do chão. Rápido, deu um pulo. E o leito, que era de ferro, desceu, então, suave ao assoalho. Tornou a deitar-se e, de novo repetiu-se o fenômeno.

Sem abater-se pensou que estava sofrendo dos nervos. E se dirigiu ao quarto de Alcides Maya e contou-lhe o que havia acontecido.

Mas Alcides Maya o sossegou, confessando que nos quatro cômodos daquele segundo andar eram comuns tais fenômenos. E completou: “Chamei você aqui por causa deles, pois queria saber se você, sem ser avisado, os constataria”.

No outro dia, com a saída de um hospede, veio para a pensão ocupar aquele quarto um cidadão de nacionalidade inglesa. Mas não durou muito por lá. No outro dia, pela manhã, com os olhos arregalados, o inglês fez as malas, pagou a conta e foi embora sem nem ao menos olhar para trás.

O outro hospede, Francisco Marcondes achou por bem regressar à sua fazenda, ficando no segundo andar, apenas, Alcides Maya e Leal de Souza, cujos quartos eram separados por dois aposentos.

Mais ou menos às nove horas da noite, Leal de Souza estava recostado na cama, lendo um livro, quando sentiu uma desagradável sensação de frio nos pés. Ao esticar o braço para pegar uma coberta, viu, estupefato, uma coluna de luar leitoso a alvejar sobre a cama.

Aos poucos o “luar” foi tornando-se consistente e tomou a forma de uma figura humana. E, não sabendo como agir, Leal de Souza, trêmulo, abandonou o quarto.

Interessante é que esses fenômenos ocorriam, quase sempre, ás duas horas da tarde e geralmente iam até a madrugada. E eram atestados por pessoas estranhas que, curiosas, iam à pensão, mas nada sabiam explicar.

Outra ocasião estavam no quarto de Alcides Maya, ele, Leal Souza e um pastor protestante, saboreando um chimarrão e conversando sobre o Rio Grande do Sul, quando o sofá em que estavam sentados começou a subir, devagarinho.

Alcides rapidamente pulou ao chão, com o sofá ficando parado no ar, desafiando a lei da gravidade. Então, todos se puseram a discutir o fenômeno.

"Isto é o efeito de um abalo sísmico", disse o pastor. E Alcides Maya discordou: "Não pode ser abalo, pois um tremor de terra sacudiria os outros móveis e abalaria as paredes!"

Depois que o sofá pousou sobre o assoalho sem provocar ruídos, o pastor protestante saiu-se com esta: "Meus amigos, só há uma explicação para o caso. Este sofá não se levantou. Nós tivemos um momento de alucinação!" E, assim, o ingênuo pastor explicou, definitivamente, a ação dos espíritos no plano físico.

A partir dai ficou claro que era Alcides Maya o responsável por tudo aquilo. Depois que ele e Leal de Souza desocuparam os quartos, novos inquilinos vieram e mais nada de anormal se verificou. Mas passados dois meses, Alcides regressou à pensão e, nessa mesma noite, foi um desastre, para os inquilinos incautos.

Pelos quartos os objetos tremiam, luzes brilhavam dentro da escuridão, pancadas sacudiam as portas. E o resultado foi cômico. Alucinados com o que viam e ouviam, os inquilinos, em trajes menores, se puseram a descer a escadaria, procurando a porta da rua.

Alcides Maya, talvez por temer sua reputação literária (era da Academia Brasileira de Letras) nada falou sobre outros casos que serviriam de instrumento aos espíritos. Quer dizer: preferiu a hipotética e frágil imortalidade acadêmica à imortalidade contundente dos espíritos.

E Leal de Souza, depois dessas experiências, passou a estudar as obras de Allan Kardec, tornando-se espírita dedicado.


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Um comentário:

  1. Previdi, meu amigo querido, esperpero que estejas bem. Tenho alguns livros do Alcides Maya. Assim como ele, sou de São Gabriel. Escrevia como poucos. Abração

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