Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
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especial
Nesta sexta, uma cesta de
AUBER LOPES DE ALMEIDA
O jornalista e escritor Auber Lopes de Almeida é um excelente contador de histórias.
Demorou muito para estar neste espaço das sextas.
FLOPINHO
Tenho nome de pseudônimo. Auber não combina com apelido algum. Sempre foi uma grande frustração na minha infância e adolescência não ter apelido. Por isso, fiquei muito feliz quando uma amiga com benefícios com quem estava saindo começou a me chamar de Flopinho. Achei meigo, carinhoso, bonitinho. Não sabia o que significava ou de onde tinha surgido, mas não importava. Até descobrir o porquê.
Nos conhecemos em uma festa. Era uma época em que eu tinha um bom salário e, por não ter namorada ou dívidas, gastava um percentual significativo em cerveja. Tomava uns tragos seguidos, que me tornavam o mais sociável dos homens. Conversava com estranhos, fazia amizade fácil.
E então, ela e eu nos cruzamos.
Já na primeira noite, um sábado, veio dormir na minha casa. E, em todos os finais de semana subsequentes, por três meses, a situação se repetiu. Não éramos namorados. Nunca chegamos a falar seriamente sobre compromisso. Não parecia fazer diferença para ela. Queria curtir a juventude, as festas, as bebedeiras e minha companhia. A ponto de criar um apelido para mim.
Mas sou jornalista. E jornalista é bicho curioso. Uma noite, não resisti e perguntei o que significava Flopinho. E então, entre risos, ela me contou: “Sabe aqueles discos antigos de gravação de dados de computador? Os floppy disks? Pois é. Na primeira noite que a gente dormiu juntos, eu me lembrei deles...”.
Continuava não entendendo. Ela prosseguiu: “meu amor, tu, como, de resto, todos os caras que conheci, quando bebem, ficam com o pinto molenga. Até dá pra brincar um pouco, mas não chega a endurecer, realmente. Os floppy disks são molenguinhas também. Daí, de floppy, inventei Flopinho”.
Não curti meu primeiro e único apelido.
EXAME DE SANGUE
O dia em que completei 48 anos, 26 de novembro de 2014, começou da maneira mais inusitada que se pode imaginar: tive que fazer um exame de tolerância à lactose, que havia sido pedido pelo médico – geriatra, diga-se –com o qual estava fazendo o check up anual.
Não fazia a menor ideia de como era o tal exame. Para quem não sabe, é assim: me deram um copo com uma espécie de gel, puro açúcar, com cerca de 300 ml, para beber. E, durante duas horas, coletariam meu sangue. Cinco vezes, ao todo.
A enfermeira me preveniu de que, durante esse tempo, eu poderia sentir algumas cólicas intestinais. Mas era normal; eu não deveria me preocupar.Com cólicas intestinais, descobri uns minutos depois, entenda-se uma vontade absurda e incontrolável de peidar.
Entre uma coleta e outra, eu precisei ficar em uma sala de espera. Onde, óbvio, havia outras pessoas.Não é difícil imaginar o tremendo mal-estar que eu causei, peidando sem parar por duas horas. Aquele peido surdo e prolongado que fede na proporção inversa ao som que faz. Ou seja, muito!
Pois é. Uma moça que estava verificando a taxa de glicose chegou a perguntar a uma enfermeira se a porta do banheiro estava aberta, tamanha a catinga que infestou a sala. O ambiente só não ficou totalmente insuportável porque, por ser muito cedo, eu estava com sono e, por vários minutos, adormeci. Creio que, durante o sono, não peidei.
Quando eu achava que o pior já tinha passado, veio o segundo efeito colateral: uma diarreia súbita, tão logo saí do laboratório, para onde voltei correndo. Mais dois minutos e uma tragédia teria se consumado.
Segui peidando adoidado até a noite. Tanto que decidi nem comemorar meu aniversário, como estava combinado com algumas parcerias. Iriam me botar a correr, certamente.
PILANTRAGEM
Fazia muito tempo que nós flertávamos. Tínhamos vários amigos em comum, mas nunca houve uma oportunidade de nos aproximarmos. Ficávamos de longe, nos lugares que frequentávamos, nos olhando, sorrindo, ruborizando. Minha timidez excessiva me impedia de chegar nela. Temia dar-me um branco e não saber o que falar na hora, pondo tudo a perder. Esperava que o momento certo surgisse naturalmente.
E esse momento surgiu em uma festa. Ela bebera muito e tomou a iniciativa de vir até a mesa onde eu estava com minha turma. Não disse nada, apenas pegou minha mão e me puxou. Levantei-me e a segui em meio ao povo que lotava a pista de dança. O caminho até onde nem imaginava estava complicado. Muito empurra-empurra, pisões nos pés, cabeçadas. Mas ela me segurava tão firme que não nos perdíamos.
No meio do percurso, ela parou, tentando desvencilhar-se de um grupo que impedia a passagem. Foi justamente nesse momento que, do nada, apareceu uma guria que eu nunca vira antes. Pendurou-se em meu pescoço e me lascou um beijo de língua de ruborescer a Madonna. Fiquei atônito, mas acabei retribuindo.
Quando a outra conseguiu abrir um espaço para avançar, eu estava lá, empacado, preso pela menina que não me largava. A guria que me puxava, então, retornou. E me pegou em flagrante. Indignada, me disse coisas que, imaginei, eram xingamentos (não entendi porque a música estava muito alta), e saiu, indignada. A outra, então, se afastou um pouco, deu um sorriso malicioso, virou-se e se misturou na multidão.
Perdi a chance que tanto aguardava e que não fazia a menor ideia de até onde poderíamos ter ido. E a infeliz que me beijou sequer ficou comigo, depois disso. E ainda ria debochadamente sempre que nos cruzávamos na rua.
SACANAGEM
Logo nos primeiros dias de aula, naquele terceiro semestre da faculdade de Jornalismo, notei que o sujeito pingava colírio a cada cinco minutos. Imaginava que fosse usuário de maconha e que, à falta de óculos escuros, como cantava Raul Seixas, usava aquele lubrificante para disfarçar a vermelhidão dos olhos.
No final de um par de semanas, quando fomos escolhidos pelo professor para fazermos um trabalho em grupo, descobri do que se tratava: as pálpebras dele eram curtas; não cobriam integralmente os olhos. Assim, precisava umedecê-los com frequência. Acabamos nos tornando amigos.
Na primeira bebedeira de que participamos, ele, assim como os demais colegas, acabou indo parar em minha casa. Já era quase uma tradição, no final da noite de sexta-feira, irem dormir no meu apartamento para, na manhã seguinte, irmos todos juntos para a aula do sábado.
O amigo novo, sem cerimônia, deitou em um dos sofás e apagou. Notei, entretanto, que ele não fechava os olhos totalmente. Ficavam semiabertos. Tive uma ideia. Daquelas!Peguei minha câmera fotográfica, abaixei minhas calças, endureci o pinto e o aproximei de seu rosto. Tirei meia dúzia de fotos.
Na segunda-feira, cheguei mais cedo à aula de laboratório fotográfico, revelei o filme e copiei, no ampliador, a melhor das fotos tiradas. Na hora do recreio, fui até a papelaria da PUC e pedi que fossem feitas dez fotocópias.
Na terça, aproveitando-me que os alunos começavam a chegar por volta das 18h30, cheguei novamente mais cedo e prendi, com fita adesiva, as cópias pelo prédio da faculdade: nos banheiros masculinos e femininos, no centro acadêmico, no saguão, nos murais das escadas...
Ele passou todo o resto do semestre jurando que não era gay.
IRRESISTÍVEL
Meu amigo precisou frear bruscamente o carro, ao ser fechado por outro, e o que vinha atrás não parou a tempo. Resultado: destruiu o para-choque do Subaru Impreza dele. O sujeito, sabendo-se culpado, deu ré e fugiu do local. Não foi possível anotar a placa. Meu amigo teve que arcar com todo o prejuízo.
Levou o carro para sua loja de som automotivo, na Cidade Baixa, onde, casualmente, eu estava à sua espera. Era um programa que fazia com frequência. Quase todo final da tarde, eu ia para lá tomar chimarrão e jogar conversa fora. Natural de Caxias do Sul, ele tinha um papo frouxo, sempre cheio de novidades, como todo bom descendente de italiano.
Examinei a situação e sugeri que removêssemos o que não foi danificado pela batida, para não se correr o risco de aumentar o dano. Ele concordou. Me dispus a fazer o trabalho. Removi as sinaleiras e o emblema no centro da tampa do porta-malas. Uma trabalheira só. O nome desse carro não está em uma plaquinha única, como é o normal, mas separado letra a letra. Tive que tomar muito cuidado para não arranhar a pintura.
Passados 15 dias, o carro voltou, recuperado. Não ficou 100%, mas como ele mandou realizar o serviço na oficina cujo orçamento foi o mais baixo, não se poderia esperar melhor resultado. Eu estava na loja quando ele chegou. Novamente, para não lhe tirar do serviço, me pus a recolocar as peças que havia retirado.
Quando ia repor o emblema com a marca do carro, percebi que as letras que formavam a palavra Subaru eram as mesmas de uma outra. Não pensei duas vezes e troquei a ordem de colar o emblema. Durante vários dias, o flamante Impreza vermelho exibiu, na traseira, um vistoso S U R U B A na tampa.
Na segunda-feira, voltei à loja e ele comentou algo estranho que lhe estava ocorrendo: todos os carros que passavam por ele buzinavam e os motoristas e passageiros riam desbragadamente, fazendo sinais obscenos. Matei a charada na hora, mas fiquei quieto. Percebi que ele não notara minha brincadeira.
Foi somente na quarta que sua esposa, ao usar o carro para ir ao supermercado, observou o detalhe e chamou sua atenção. Nunca ouvi tantos desaforos de uma só vez quanto naquela noite, ao telefone. Foi apenas quando desfiz a nhaca, uns três dias depois, que ele parou de me xingar. Mas, nesse período, teve que ficar rodando com o carro daquele jeito.
BOCA SANTA
Trabalhei em uma empresa cujo quadro de funcionários era, essencialmente, feminino. Creio que uns 70% de mulheres. A sede ficava em uma cidade, mas tinha setores em outras duas. Assim, para que o grupo interagisse e o ambiente de trabalho fosse o melhor possível, nós, do departamento de comunicação, éramos encarregados de organizar eventos frequentes. Como o trabalho que a empresa prestava era um serviço público, não podia parar, então, não era possível reunir todo mundo.
Logo que fui contratado, fiz amizade com um sujeito que era muito irreverente e comunicativo. Ele já foi logo me avisando: “na primeira festa que vocês organizarem, eu vou te apresentar para a ‘Boca Santa’”. Perguntei de quem se tratava e ele me disse: “na hora certa tu vai saber”. Fiquei semanas pensando na tal da guria, sem conhece-la, exceto por fotografia. Lógico, tão logo ele me disse aquilo, fui ao RH consultar sua ficha. Pela foto, era bonita. Loirinha, magrinha, pequena.
Não demorou um mês até meu caminho cruzar com o da menina. Assim que a vi, me aproximei, me apresentei como o novo jornalista e já engrenamos um papo atrás do outro. Ela era gente boa, de conversa fácil. Nos demos muito bem. Mas não havia nada de incomum nela, que eu pudesse perceber, que justificasse a denominação. Seguindo o conselho dos colegas, trocamos telefones e, na primeira oportunidade, a convidei para sair.
Saímos, jantamos, bebemos bastante e, tarde da noite, propus que ela dormisse comigo.Já na minha casa, ela, muito determinada, abaixou a minha calça e foi direto “naquela” parte. Não sem, antes, tirar a dentadura. Sim! A dentadura! Na hora, tomei um baita susto ao ver aquela porteira escancarada, as gengivas muito lisas e brilhantes e aquela dúzia de dentes repousada sobre a mesa da sala, como que sorrindo para mim.
Desnecessário dizer que, diante daquela imagem de filme de terror, dei uma soberba broxada e a noite terminou por ali, mesmo...