Sexta, 10 de fevereiro de 2023 - 2

 

NÃO LEVE A SÉRIO
QUEM NÃO SORRI!

 


RESISTA À TENTAÇÃO
DE SER IGUAL AOS OUTROS




Escreva apenas para






FORA LULA!!
FORA DILMO!!




especial

Nesta sexta, uma cesta
de Laurentino Gomes!




O contador da nossa História
(Vencedor de oito Prêmios Jabuti)


Um país que não estuda história é incapaz de entender a si mesmo.




Acho que as manifestações são um sinal de vitalidade da nossa democracia, mas levantam algumas questões complicadas: democracia não se faz no grito, e sim nas práticas diárias nas escolas, nas empresas, nas ONGs, nos partidos políticos, nos sindicatos, nas urnas... Esse aspecto ainda não foi percebido pelo brasileiro, que vai bonitão pra rua como cara-pintada.


A construção do Brasil dos nossos sonhos vai demorar mais do que a gente imagina, porque envolve mudanças de natureza cultural.


Eu diria que hoje estudar história é talvez a coisa mais importante que a gente possa fazer, para entender quem somos. O Brasil acostumou-se a ser um país de salvadores da pátria, de soluções milagrosas, isso é típico de uma monarquia. Mas numa democracia republicana quem resolve nossos problemas somos nós.



Laurentino Gomes


José Laurentino Gomes nasceu em Maringá, Paraná, no dia 17 de fevereiro de 1956 (na foto ele é o do meio, com irmãos). Formou-se em Jornalismo na Universidade Federal do Paraná, com pós-graduação em Administração pela Universidade de São Paulo. Trabalhou com repórter e editor no jornal Estado de S. Paulo. Foi diretor-superintendente da Editora Abril. Além dos Prêmios Jabuti, ganhou dois Prêmios Esso de Jornalismo e sete Prêmios Abril de Jornalismo, estes pela revista Veja.

Laurentino é casado com a também jornalista Carmen Gomes, tem quatro filhos e a netinha Olivia, nascida em Berlim. Atualmente vive em Itu, interior de São Paulo.

No casamento da filha, em Berlim, em 2018:
Marcelo, Luisa, Laurentino, Camila, Carmen e Bruno.


Com a primeira neta, no ano passado em Berlin


Tem ascendência italiana:

Uma das lembranças mais antigas e carinhosas da minha infância eram as reuniões dos avós, tios e primos nas festas de Páscoa, Natal e Ano Novo. Era uma multidão alegre, barulhenta e festiva, como sempre acontece nos encontros de famílias italianas. Comíamos macarronada com frango assado, acompanhados de pão caseiro com calda de açúcar cristalizado espalhado sobre a casca depois de retirado do forno à lenha. Tudo regado a vinho tinto de garrafão. As crianças tinham direito a sangria, mistura de vinho com água açucarada, canela, cravo e rodelas de frutas. As festas sempre acabam tarde da noite com uma cantoria de músicas italianas. Até hoje sinto saudades ao meu lembrar do meu avô cantando a Tarantela e Santa Lucia em dialeto italiano típico da região de onde vieram seus pais.

Da insieme.com.br:

Os nonnos Dileta e Ambrosio

- Com sobrenome português, você é bisneto de imigrantes italianos. Quem, quando, como e de onde vieram?

LG - Sou o resultado de um encontro improvável ocorrido em Mandaguari durante a grande expansão da fronteira agrícola do Norte do Paraná em meados do século passado. A família do meu pai, os Gomes, vinha de Brasópolis, sul de Minas Gerais. Um dos meus bisavós paternos tinha sido republicano e abolicionista. Outro, monarquista e senhor de escravos. Já a família de minha mãe, os Fagnani, vinha de Presidente Prudente, onde uma colônia italiana se formara por volta de 1930, reunindo numerosa parentela de imigrantes da região Lombardia. Tinham todos chegado ao Brasil no final do século 19 para substituir a mão de obra escrava na colheita do café no interior de São Paulo. Meu bisavô, Ângelo Fagnani, nasceu em Berlinzago Lombardo, hoje a meia hora de trem de Milão. Minha bisavó, Bambina Mesti Palma, era de Gressago, uma comune vizinha. Em Mandaguari, meus pais, João e Maria, se encontravam todos os domingos na missa da igreja matriz, onde ele era Congregado Mariano e ela, Filha de Maria, duas importantes irmandades católicas na época. Escolheram cuidadosamente a data do casamento, 5 de maio de 1955, ou seja, 5/5/55. Nove meses depois eu nasci, na casa do meu avô, que morava na vizinha cidade de Maringá.


É o autor do livro 1808 - Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil.
Foi lançado em setembro de 2007 e relata a fuga da família real portuguesa para o Brasil, um verdadeiro manual de viagem por todos os acontecimentos que envolvem esse episódio da história nacional. A obra recebeu o Prêmio Jabuti de Literatura e foi eleito o Melhor Ensaio de 2008, pela Academia Brasileira de Letras.


Em 2010, Laurentino publicou seu segundo livro: 1822 – Como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. O assunto, como deixa claro no título do livro, é a independência do país. O livro foi eleito o "Livro do Ano" na categoria de Não Ficção da 53º Edição do Prêmio Jabuti de Literatura.


Laurentino Gomes foi eleito pela revista Época como uma das 100 pessoas mais influentes no ano de 2008. Seu mérito foi o de conseguir destaque em assuntos históricos, além de ter seus livros sempre na lista dos best-sellers.


Em 2013, publicou o livro 1889 – Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República do Brasil. O livro é o terceiro e último volume da trilogia.


Em maio de 2015 anunciou uma nova trilogia intitulada Escravidão. O primeiro volume foi lançado em 2019, o segundo em 2021 e o terceiro em 2022.


Laurentino Gomes é membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Paranaense de Letras. 

Já deve ter vendido algo em torno de 5 milhões de livros.




TRILOGIA ESCRAVIDÃO
ENTREVISTA AO EL PAÍS

"A escravidão é o assunto mais importante da história do país".

Você aprendeu mais com a trilogia feita anteriormente ou com esse livro?

Com essa trilogia. A trilogia anterior me ajudou a entender o Brasil do ponto de vista burocrático, institucional, legal, ou seja, como foi a construção do estado brasileiro durante o século XIX depois do rompimento dos vínculos com Portugal. São três datas ícones: 1808, que é a chegada da corte fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte e o início o processo de independência do Brasil. O resultado é 1822, com a independência de fato. O Brasil se mantém como monarquia durante 67 anos, o que os historiadores chamam de uma "flor exótica da América", já que estávamos cercados de repúblicas. E a terceira data é 1889. Essa três datas ajudam muito a entender o que nós temos em Brasília hoje, essa promiscuidade entre interesses públicos e privados. Mas, se você quiser entender o Brasil em uma dimensão mais profunda, precisa estudar a escravidão, que é o assunto mais importante da história do país.

De que forma?

Tudo que fomos no passado, o que somos hoje e que nós gostaríamos de ser no futuro tem a ver com a escravidão. Primeiro por uma razão estatística: o Brasil foi o maior território escravista da América, com quase 5 milhões de cativos africanos. Isso dá 40% do total de africanos escravizados que embarcaram para o Novo Mundo, estimado em 12,5 milhões. Foi o país que mais tempo demorou para acabar com o tráfico negreiro, com a Lei Eusébio de Queirós, em 1850, e o último a acabar com a própria escravidão, em 1888. O Brasil foi construído por escravos, em todos os ciclos econômicos, passando pelo açúcar, ouro, diamante, café. A escravidão não é um assunto acabado, tema de museu ou livro de história. Ela está presente na realidade brasileira. Os abolicionistas do século XIX, como Joaquim Nabuco, Luiz Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, defendiam que o Brasil precisava fazer duas abolições. A primeira era parar de comercializar gente como mercado, algo ocorrido com a Lei Áurea. A segunda era incorporar os ex-escravos na sociedade brasileira como cidadãos, dando terra, emprego, educação, e isso o Brasil jamais fez. O país abandonou sua população afrodescedente à própria sorte.

Por que o Brasil os abandonou?

Quando você olha a história da abolição no Brasil, há uma história branca. O Brasil, no final do século XIX, tornou-se um pária no cenário internacional, como foi a África do Sul na época do Apartheid. A elite brasileira se deu conta de que a escravidão comprometia a imagem do país perante o mundo supostamente desenvolvido. Havia uma nobreza aqui, como se fosse Versailles ou a Corte Espanhola, de um país que se julgava europeu, monárquico, com uma imagem imperial. Mas a realidade nas ruas era de escravidão, pobreza e anafalbetismo. A Lei Áurea procura livrar o país dessa nódoa, mas o Brasil nunca fez nenhum esforço para incorporar sua população, porque isso significava abrir mão dos privilégios, riquezas, redirecionar os recursos do Estado para pessoas que não tinham oportunidade. O resultado disso é que hoje nós somos um dos países mais segregados do mundo, embora não tenhamos leis de segregação racial como houve nos EUA até a luta pelos direitos civis. Mas somos um país segregado na geografia, basta ir ao Rio de Janeiro e ver quem mora nos bairros violentos e dominados pelo crime organizado e quem vive em Copacabana ou no Leblon, na zona sul. Também é um país segregado nos números, indicadores sociais. Por qualquer critério que você queira medir o Brasil, seja renda, emprego, segurança pública, existe um abismo entre oportunidades para a população branca e negra. Um homem negro aqui tem oito vezes mais chances de morrer em um homicídio do que um homem branco. Nós somos um país profundamente preconceituoso. No passado, desenvolvemos alguns mitos de que seríamos uma grande democracia racial, de que a convivência era cordial e amigável. Se você entrar numa rede social agora vai ver as manifestações de racismo explícitas, cruas, inclusive no discurso do presidente da República.

Qual a maior diferença da escravidão ocorrida nas Américas para a escravidão na história?

É como se a escravidão fizesse parte do código genético humano. Houve no Egito Antigo, na Babilônia, na Grécia Antiga e na África antes da chegada dos europeus. A própria etimologia da palavra escravo, slave em inglês, vem de "slavo", do povo branco que era escravizado no leste da Europa pelo Império Romano. A africana tem duas novidades: a primeira é a escala industrial, com 12,5 milhões de pessoas embarcadas em cerca de 35 mil viagens de navios negreiros para trabalhar em atividades no Novo Mundo que podem ser consideradas pré-industriais. A divisão dos trabalhos, os turnos, a hierarquia, a maneira de funcionamento de um engenho de açúcar no Nordeste brasileiro, ou de uma mina de diamante, se assemelhavam muito às futuras fábricas da revolução industrial na Inglaterra. A segunda característica está no nascimento do racismo: é a primeira vez na história da humanidade que há a associação entre a escravidão e a cor negra da pele. Há toda uma ideologia construída, inclusive de fundo religioso, para dizer que os africanos eram selvagens, bárbaros, pagãos, praticantes de religiões demoníacas, e que portanto a melhor coisa que poderia acontecer com o africano era ser escravizado para se incorporar a suposta civilização europeia que se instalava nos trópicos. Era muito comum nas discussões do parlamento brasileiro a ideia de que a escravidão era a redenção dos escravos. O Padre Antônio Vieira, no final do século 17, defendia a ideia de que era uma graça divina que os escravos tivessem tido a oportunidade de serem escravizados para se incorporar a Igreja Católica.

A Igreja Católica fez uma distinção entre índios e africanos, certo?

Há uma discussão filosófica e teológica sobre a conveniência ou não de escravizar índios. Mas a realidade é que os índios foram massacrados. Portugueses e espanhóis, quando chegaram à América, tentaram de todas as formas escravizar os índios. A primeira carga de escravos que cruza o oceano atlântico não foi da África para o Brasil, mas foi daqui para Portugal, em 1511. Uma nau chamada "Bretoa", de um senhor chamado Fernando de Noronha, que hoje dá o nome ao nosso arquipélago no nordeste, levando uma carga de pau-brasil, peles de onça pintada, papagaios e 35 indígenas que seriam leiloados em Portugal. Nos três séculos seguintes o Brasil matou um milhão de indígenas a cada 100 anos de diversas maneiras: expulsão de terras, guerras, extermínio e, principalmente, pelas doenças, como gripe, sarampo e varíola. A inviabilidade prática da escravidão, todo esse massacre indígena, coincide com a discussão filosófica dos jesuítas que afirmavam que eles não deveriam ser escravizados. Mas o fato é que os portugueses e espanhóis não conseguiram realizar seu projeto inicial que era escravizar os índios. Se eles tivessem conseguido, talvez não tivéssemos a escravidão africana, porque tínhamos 5 milhões de índios aqui, que foi o número aproximado de africanos trazidos para o Brasil. Há também uma justificativa bíblica para se voltar à África. No livro do Gênesis, Noé, após dilúvio, se torna produtor de vinho. Em uma determinada ocasião, ele bebe demais, se embriaga e dorme completamente nu dentro de casa. Os três filhos chegam e um deles, ao ver o pai daquele jeito, ridiculariza-o. É o Cam. Ao acordar, Noé teria lançado a "Maldição de Cam", dizendo que os descendentes dele seriam escravos. Os padres jesuítas diziam que os descendentes de Cam seriam os negros africanos e, portanto, candidatos naturais a escravidão. Isso era repetido de forma exaustiva.

Alguns pensadores do século XVIII e XIX, defensores da liberdade, eram a favor da escravidão?

Sim, David Hume [filósofo e escritor britânico] por exemplo. Ele era acionista de uma companhia de tráfico de escravos. Thomas Jefferson, que escreveu a declaração de independência dos EUA dizendo que todo ser humano nasce com direitos iguais, era dono de um plantel enorme de escravos. Tiradentes, herói da Inconfidência Mineira, era dono de meia dúzia de escravos no ano que foi morto, no Rio de Janeiro.

Os países precisam pedir perdão pela escravidão?

Creio que sim. É uma questão de honestidade, algo simbólico, porque foi um massacre, uma tragédia humanitária de grandes proporções. Agora, tenho dúvida se seria possível pagar essa dívida. Hoje, na África, há uma elite que é herdeira militar beneficiada pelo tráfico de escravos, aliado aos europeus. O rei Ashanti, em Gana, era fornecedor de cativos para ingleses e holandeses. Quem vai indenizar quem? É difícil. Acho que uma atitude política de pedir perdão é importante. O Papa João Paulo II fez isso ao visitar a ilha de Goreia, em Senegal. Não foi pela Igreja como um todo, mas pelos católicos que se envolveram no tráfico de escravos. É algo importante para ir diminuindo essa ferida. As cotas preferenciais para afrodescentes em escolas e postos da administração pública. Mas o simbólico também ajuda. Há uma dívida histórica que precisa ser enfrentada por palavras e gestos concretos.

O livro diz que para cada 100 habitantes do Brasil durante a escravidão, 86 eram escravos e 14 colonos brancos. Por que não houve uma rebelião, por exemplo? O que sustentava essa sociedade?

Havia manuais que aconselhavam fazendeiros a não manter plantéis de mesma origem, cultura, língua ou região geográfica. Isso impedia que eles se rebelassem. Existia, também, um sistema de premiação e punição. Se o escravizado fosse rebelde, era chicoteado. Se fosse cooperativo, ganhava folga semanal, o direito de cultivar uma horta, de ir à missa e de ganhar sua própria alforria. O Brasil teve um altíssimo número de alforrias. Um historiador norte-americano, Donald Ramos, afirma que a alforria foi um dos sistemas de controle mais eficientes do sistema escravista, porque ele oferecia ao cativo uma oportunidade de conquistar a liberdade e de escapar da escravidão. Há um estudo do historiador Manolo Florentino que diz que apenas 5% dos escravos brasileiros se rebelaram, fugiram e formaram quilombos. A principal forma de resistência era tentar ocupar os espaços que a sociedade escravista dava para o escravo se aproximar do universo dos brancos. Participar das irmandades religiosas, como a Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia, dava um "status social" para o escravo, com um papel simbólico. Existia um branqueamento cultural: quanto mais rápido ele se distanciasse da cultura africana, mais "vantajoso" seria.

Você escreve que existia uma briga entre negros nascidos no Brasil e os crioulos. Como era isso?

O crioulo era o escravo de primeira geração nascido no Brasil. O negro boçal era o recém-chegado, também chamado de "preto novo". O sujeito nascido no Brasil se julgava superior, porque ele havia migrado para o universo dos brancos. Ele já tinha constituído família, falava a língua portuguesa, participava das irmandades religiosas e possuía o código da sociedade colonial portuguesa. O escravo chegado da África, não. As rebeliões aconteceram justamente nesse universos dos escravos recém-chegados. Palmares, por exemplo, era formado por negros Jagas de Angola, que se rebelaram no final do século 16, e fugiram para a Serra da Barriga, em Alagoas. A Revolta do Malês, de 1835, foi feita por negros muçulmanos, na Bahia, oriundos da Nigéria. As revoltas, fugas e quilombos ocorreram quase sempre por duas razões principais: crise na sociedade branca, como no caso de Palmares, ocorrida durante guerra contra os holandeses, ou em decorrência da homogeneidade étnica e a concentração de africanos que falavam a mesma língua e possuíam afinidade cultural.

Você consultou fontes de testemunhos de escravos para fazer o livro?

Pouco. Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas. Capitães de navios negreiros, viajantes europeus que visitaram o Brasil ou a África no período. Existem alguns depoimentos e biografias relativamente raras. Outra fonte preciosa para ouvir os escravos são inquéritos policiais quando eles eram acusados de crimes. Tem inquéritos da Inquisição Católica que relatam escravos presos e levados para Portugal acusadas de feitiçaria e de contrariar a doutrina da Igreja. O principal quilombo do Brasil, Palmares, não tem nenhuma fonte a partir dos quilombolas. Tudo que se sabe de Palmares são de relatórios e de expedições militares enviadas ao local.

Sobre esse tema, você questiona a figura de Zumbi e sua luta contra a escravidão. Não é uma contradição refutar a história do principal líder negro usando relatórios utilizados pelo Exército, que era majoritariamente branco?

De certa forma, sim. A história da escravidão é um assunto sensível, porque há uma guerra de narrativas. E não é por acaso que abro este capítulo falando do calendário cívico brasileiro, com o 13 de maio e a Lei Áurea, e o 20 de novembro, da Consciência Negra, com a morte de Zumbi. É uma guerra em andamento pela memória da escravidão. Não tomo partido se o Zumbi era abolicionista ou um grande general comparado a Napoleão Bonaparte ou Alexandre o Grande, como alguns historiadores negros tentaram fazer. O que eu mostro é a construção do Zumbi como herói nacional. Chego a conclusão que o verdadeiro Zumbi não está nos documentos e que há pouquíssima coisa. O que se sabe é a partir da história branca. O verdade Zumbi está na cabeça das pessoas, é um herói mítico. Agora, sem dúvida, se trata de um herói negro brasileiro, que se contrapõe à Princesa Isabel. Coloco no livro coisas curiosas que dificultam a construção desse herói, como a história do Luiz Mott [antropólogo], que levantou a hipótese de que Zumbi fosse gay. Ninguém incorporou esse herói gay, porque vivemos em um país homofóbico, misógino. Claro que tive muito cuidado para construir esse capítulo, porque ele mexe com um personagem muito importante para a identidade negra, mas eu não poderia fugir da raia e comprar uma história que não existe nos documentos. Quis mostrar diferentes narrativas e versões para que o leitor entenda que a história não se faz apenas de personagens reais e concretos, mas também de projeção mitológica.

Quando você terminou o livro, alguém negro leu?

Não. Passei para dois africanistas: o embaixador Alberto da Costa Silva e Irene Vida Gala. Eles me deram contribuições muito importantes. A Irene me chamou a atenção para algo que tento deixar evidente: os diferentes olhares sobre a escravidão. Existe o olhar negro, o olhar branco e olhar atento, que é onde me enquadro. Mas não tentei preencher cotas. Seria hipocrisia da minha parte tomar esse tipo de atitude, porque não fiz isso nos meus outros livros. Seria apenas relações públicas. Ao falar da proclamação da República, não chamei um republicanista e um monarquista para dar diferentes opiniões.

O que poderia ser uma segunda abolição no Brasil?

Acho que é o nosso principal desafio no século XXI. Se você imaginar que a riqueza das nações não está mais nos recursos naturais, mas no capital humano, o Brasil nunca será um país decente, digno dos nossos sonhos, enquanto a imensa maioria da população não tiver educação, saúde e empregos decentes. Enfrentar a desigualdade social no Brasil é sinônimo de uma segunda abolição, porque a maioria dos pobres são negros. Por isso digo que não é só uma reparação histórica, mas um investimento no futuro. Essa é a principal agenda política daqui para frente, ainda que tenhamos um governo hostil. Isso é um tema represado do século XIX. Qualquer governo, partido político ou campanha eleitoral vai se defrontar com esse legado.




DOIS CAVALOS QUE MUDARAM
A HISTÓRIA DO BRASIL

Laurentino Gomes (El País - 09/01/2014)

A história do Brasil é repleta de personagens pitorescos e controvertidos, nos quais mitos e realidades se misturam para desafiar a compreensão de pesquisadores, estudantes e leitores da atualidade. Curiosamente, dois deles pertencem ao reino animal. São cavalos que participaram de momentos decisivos na construção do país – a Independência, em 1822, e a Proclamação da República, em 1889.
A mais conhecida cena da Independência é o quadro “O Brado do Ipiranga”, do pintor paraibano Pedro Américo. Nele, o então príncipe regente D. Pedro, futuro imperador Pedro I, aparece no alto de uma colina, de espada em punho e montado em fogoso alazão. Na imagem oficial, seria dessa maneira que o herdeiro da coroa portuguesa teria pronunciado a célebre frase “Independência ou Morte”, marca do rompimento definitivo entre a colônia e sua antiga metrópole encenada no final da tarde de Sete de Setembro de 1822.
Depoimentos da época, no entanto, desmentem essa visão épica. Nas suas memórias, escritas anos mais tarde, o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo, subcomandante da guarda de honra e futuro Barão de Pindamonhangaba, se refere ao animal como uma “baia gateada”. Outra testemunha, o padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira, cita uma “bela besta baia”. Ou seja, uma égua ou mula de carga sem nenhum charme, porém forte e confiável. Era esta a forma correta e segura de subir a Serra do Mar naquela época de caminhos íngremes, enlameados e esburacados.
O mesmo coronel Marcondes também confirma que, na hora do famoso Grito do Ipiranga, D. Pedro enfrentava um constrangedor problema intestinal. Em outras palavras, estava com dor de barriga. A causa dos distúrbios é desconhecida. Acredita-se que tenha sido algum alimento mal conservado ingerido no dia anterior em Santos, no litoral paulista, ou a água contaminada das bicas e chafarizes que abasteciam as tropas de mula na Serra do Mar. Em suas memórias, Marcondes usou um eufemismo para descrever a situação do príncipe. Segundo ele, a intervalos regulares D. Pedro se via obrigado a apear do animal que o transportava para “prover-se” no denso matagal que cobria as margens da estrada.



Foi, portanto, como um simples tropeiro, coberto pela lama e a poeira do caminho, às voltas com as dificuldades naturais do corpo e de seu tempo, que D. Pedro proclamou a Independência do Brasil. A cena real é bucólica e prosaica, mais brasileira e menos épica do que a retratada no quadro de Pedro Américo. E, ainda assim, importantíssima. Ela marca o início da história do Brasil como nação independente.
O segundo cavalo importante da história brasileira também é personagem de um quadro famoso, de autoria do pintor Henrique Bernardelli, que celebra a Proclamação da República em Quinze de Novembro de 1889. E também nesse caso há controvérsia em torno do personagem equino.
Nas horas que antecederam a queda da monarquia brasileira, o marechal alagoano Manoel Deodoro da Fonseca estava gravemente enfermo. Passava o tempo todo na cama. Ao visitá-lo, o advogado Francisco Glicério, de Campinas, interior de São Paulo, ficou impressionado com seu aspecto ao vê-lo às voltas com uma crise de dispneia, falta crônica de ar produzida por arteriosclerose. Atirado sobre o sofá, envolto em um roupão, o marechal sequer reunia condições para vestir a farda. O peito arfava e ele mal conseguia falar.
O estado de saúde de Deodoro espalhou o pânico entre as lideranças republicanas. Temia-se que morresse a qualquer momento. Sem o marechal, revolução não teria qualquer chance de sucesso. Naquele momento, era ele o único chefe militar com autoridade suficiente para erguer a espada contra o Império.
O dia Quinze de Novembro estava amanhecendo quando Deodoro recebeu a notícia de que, mesmo sem ele, as tropas do exército haviam se rebelado contra o governo e marchavam do bairro de São Cristóvão para o centro do Rio de Janeiro. Eram comandadas pelo tenente-coronel João da Silva Telles, tendo ao lado o tenente coronel e ídolo da mocidade militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães.



Fraco e cambaleante, Deodoro vestiu a farda, pediu que colocassem o selim de sua montaria dentro de um saco e tomou uma charrete em companhia do alferes Augusto Cincinato de Araújo, seu primo, para ir se encontrar com as tropas do exército. Na Rua Senador Eusébio, altura do Gasômetro, viu as forças sublevadas que vinham na direção contrária. Como ainda se sentia muito debilitado, continuou de charrete o restante da jornada.
Ao chegar próximo do Campo de Santana (atual Praça da República, em frente à estação da Central do Brasil), o marechal pediu para montar a cavalo, apesar dos protestos dos oficiais, temerosos de que o velho comandante não tivesse forças para se manter sobre o animal. Por precaução, o alferes Eduardo Barbosa cedeu-lhe o cavalo baio número 6, considerado o menos fogoso na tropa do Primeiro Regimento de Cavalaria. E foi com esse cavalo que Deodoro depôs o imperador Pedro II.
Herói involuntário de uma escolha casual, o pacato animal seria também o primeiro beneficiário da república brasileira. Aposentado do serviço militar por serviços relevantes prestados ao novo regime, passaria o resto dos seus dias sem fazer nada, vivendo confortavelmente no estábulo do seu quartel no Rio de Janeiro. Anos mais tarde, ao recordar o episódio enquanto posava para o quadro de Henrique Bernardelli em que aparece sobre o animal, de quepe na mão, proclamando a República, Deodoro diria:
– Vejam os senhores, quem lucrou no meio de tudo aquilo foi o cavalo!



7 comentários:

  1. Li todos esses seis livros, aliás, o sexto estou no finalzinho.
    Temos bons pesquisadores e historiadores por aqui, mas o Laurentino colocou-se num patamar tal que será muito difícil alguém chegar próximo dele. Superar, nem pensar!

    ResponderExcluir
  2. O Laurentino, esquerdista raiz, gosta de ir no Canal Livre e Roda Viva para dizer seu bordão - "nós temos uma dívida eterna com os negros por causa da escravidão". Eu não, nunca tive escravo. O trabalho dele pode ser ótimo, mas ele é mais um que joga para a torcida e deve estar orgulhoso do "estado democrático de direito" a que chegamos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não esqueça de que ele é jornalista. Isso explica muitos dos seus posicionamentos.

      Excluir
  3. O Laurentino, esquerdista raiz, gosta de ir no Canal Livre e Roda Viva para dizer seu bordão - "nós temos uma dívida eterna com os negros por causa da escravidão". Eu não, nunca tive escravo. O trabalho dele pode ser ótimo, mas ele é mais um que joga para a torcida e deve estar orgulhoso do "estado democrático de direito" a que chegamos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Exatamente. É lamentável que um trabalho de extensa pesquisa tenha sido contaminado pelo identitarismo woke importado da esquerda americana.

      Excluir
  4. Lorotino não merece créditos

    ResponderExcluir
  5. Como explicar que haja identitarismo woke americano do século XXI num livro que trata da história do Brasil colonial?

    ResponderExcluir