Prólogo
Caros amigos leitores, parece pouco tempo, mas neste 15 de novembro estamos completando exatos 135 anos da proclamação da nossa República.
E olhem que foi uma proclamação tardia.
Aqui na América somos a última nação a libertar-se das garras de reis e imperadores. D. Pedro II já nascido aqui, os demais, todos europeus.
Nem dá para se afirmar se a decisão foi certa ou errada. Prefiro, como veremos no andar deste texto, dizê-la – inevitável.
Das grandes datas da nossa nacionalidade, incluindo as regionais, a proclamação da República perde longe em termos de folguedos para o Sete de Setembro, o nosso Vinte de Setembro, o baiano Dois de Julho, e até mesmo para o Nove de Julho paulistano.
Um Dom Pedro I, um Bento Gonçalves, ou uma Maria Quitéria são personagens com forte presença na memória afetiva dos brasileiros. Já Quintino Bocaiúva e até mesmo o Deodoro da Fonseca sabe-se quando muito por nome de rua ou praça.
Salvo o desejo de uma elite de políticos e o ressentimento dos militares, os brasileiros estavam completamente alienados nesta questão. Para o povo, dom Pedro II era um sujeito legalzão, e um rei ou um presidente republicano – tanto faz!
O Brasil, por essa época, era um país essencialmente agrário, pastoril, com algumas manchas de atividade industrial como, por exemplo: a têxtil, em torno de 60%; a da alimentação, 15%; a química, 10%; a madeireira, 4%; e a metalurgia, 4%.
A centralização do poder na corte era uma forte trava ao desenvolvimento da nação.
Segundo nos informa o historiador Hélio Silva, em seu livro Nasceu a República, ‘(...) de novembro de 1889 a outubro de 1890 apareceram mais empresas que em sete décadas de Império’.
Nossa população, em 1889, orçava por volta de 14,1 milhões distribuídos por 20 províncias e 641 municípios. 85% eram analfabetos.
Como curiosidade, nossa província à época tinha em torno de 900 mil habitantes, ou 6,5% da população brasileira. Hoje, estamos com 5% dos 220 milhões de brasileiros.
Desses 14,1 milhões, em torno de 2,1 milhões declaravam-se negros (500 mil eram escravos), e quase 6 milhões, pardos.
O Centro-Sul era a região economicamente mais forte e mais densamente habitada.
Estes números são bem próximos à realidade, visto que são dados oficiais (o censo em nosso Brasil teve início em 1872).
Um dado interessante por absurdo: dou a fonte, Uma Breve História do Brasil, dos historiadores Mary Del Priore e Renato Venâncio, nos afirma que: ‘(...) somente 1% da população participava do sistema político’.
Por fim, as seis maiores cidades eram por ordem de grandeza: Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Paulo, Porto Alegre e Belém.
Causas
Contrariamente ao que afirmam alguns escritores que curtem permanentemente revisar nossa história, entendo que em regra são aquelas que nossas professorinhas no grau médio nos ensinaram lá atrás: a) libertação dos escravos; b) a Guerra do Paraguai e os eventos da questão militar; c) a questão religiosa; d) a crescente doutrinação republicana; e) a clara antipatia que os brasileiros tinham do ‘alienígena’ conde D’Eu, o marido francês da princesa Isabel. Essas são as principais razões, mas sempre haverá outras, difusas ou dúbias, mais ou menos importantes a critério de quem as vê.
Vamos dar uma rápida olhada em cada uma:
a) A instituição do escravagismo era um forte instrumento de unificação nacional, algo imexível; mesmo injusto, mesmo moralmente errado, era a forma de manter os poderosos donos de terras em paz e em sintonia com o Império. É cínico, mas era assim que funcionava. Mesmo que o número de escravos fosse ‘somente’ 500 mil quando da Lei Áurea, e ainda sem a esperada indenização, os grandes proprietários de terra, principalmente dos lucrativos cafezais em São Paulo, retiraram o apoio ao Império;
b) A Guerra do Paraguai foi um divisor de águas. Os militares sentiram-se abandonados pela inépcia do Império numa guerra que não tinha motivo algum para ser tão longa e cruel (200 mil mortos, só perdendo aqui na América para a da Secessão americana com 600 mil), exceto pela inépcia da corte. O que não faltou nessa inditosa guerra foi o sentimento de patriotismo dos nossos bravos soldados, mortos como gado no matadouro. Dando um só exemplo, o então capitão Deodoro da Fonseca perdeu três irmãos.
Outro legado dessa guerra foi o alto endividamento junto às casas bancárias inglesas.
A famosa Questão Militar foi uma sucessão de conflitos entre oficiais do Exército e a Monarquia, a meu ver, absolutamente personalistas e desnecessários. Houve de tudo: não valorização salarial, proibição de expressar publicamente opiniões políticas, etc., etc. Vou citar um caso: o coronel Sena Madureira (que havia participado inclusive da Guerra do Paraguai), em 1883 manifestou-se acidamente em relação ao projeto de criação de um Montepio para os militares e sofreu a mão pesada do Império. Entre outras reprimendas, foi transferido ao Rio Grande do Sul.
Só que o tiro saiu pela culatra, pois aqui o líder republicano era o advogado Júlio de Castilhos, arguto publicista que armou-se de sua ácida pena e retumbou ao limite o incidente nas páginas do jornal partidário – A Federação.
O inimigo do exército era o Visconde de Ouro Preto, à época, presidente do Conselho de Ministros, uma espécie de primeiro-ministro do governo imperial. Interessante a ironia: quando, em 10 de novembro, ocorre o icônico baile da Ilha Fiscal, no mesmo cais em que os convidados embarcavam para a ilha, estava sendo embarcado o 22º Batalhão de Infantaria do exército que havia, como punição do Ouro Preto, sido transferido aos confins do Amazonas;
c) A questão religiosa, em minha opinião, não tem um peso importante nos atos da Proclamação, mesmo porque, tirando o inditoso frei Caneca, padre não tem armas, só o poder espiritual de "excomungar inimigos". Foi uma questão de estado, e até dá para adjetivá-la como grave, envolvendo a Igreja Católica e a Maçonaria, isso lá por finados da década de 1870.
Como sabemos, desde a Constituição de 1824 havia uma comunhão da Igreja com o Estado, e como o Estado era quem pagava as contas, a Igreja não se intrometia em questões seculares, ou ao menos não deveria. O problema era que brigar com a maçonaria significava brigar com o Estado, visto que os líderes eram em sua maioria maçônicos. Houve prisão de líderes religiosos, envolvimento de bispos e até do Papa;
d) Era natural que a crescente doutrinação republicana, que havia sido iniciada em 1870 com a fundação em São Paulo do primeiro clube republicano no país, gerasse frutos.
O movimento começou, mesmo que lento, cauteloso, com um manifesto no qual os prosélitos emitiam críticas amenas à monarquia.
Mas cresceu, devagar, sempre, e iniciou a dividir o cenário político com os conservadores e liberais, mesmo que com representação muito baixa (não podemos nos esquecer que eleições por essa época eram "todas" fraudadas; votar num republicano era mais um ato de coragem do que um ato cívico!).
Esses republicanos, Campos Sales, Prudente de Morais, o baiano Rui Barbosa, Deodoro, Floriano da Fonseca, Benjamin Constant, os nossos Júlio de Castilhos, Demétrio Ribeiro, Assis Brasil eram comtistas até a medula.
O positivismo do francês Augusto Comte era avesso a reis e imperadores que usavam dos seus ‘divinos direitos’ para arbitrar o destino de seus súditos, como também à retrógrada igreja que teimava afirmar a terra como centro do universo e, igualmente, aos inúteis aristocratas e sinecuristas.
e) Por último, mas não menos importante, havia uma enorme antipatia dos brasileiros em relação ao Conde D’Eu, marido da princesa Isabel, a primeira na linha sucessória do Dom Pedro II.
Era francês, falava um português com forte sotaque e, na condição de príncipe-consorte, governaria o Brasil junto com sua esposa, algo que não agradava os matutos brasileiros da época.
A indicação do príncipe (27 anos; ‘zero’ experiência militar) para chefiar o Exército brasileiro na Guerra do Paraguai, com a retirada de Caxias do front, em 1869, numa guerra que não tinha mais sentido em continuar e cujo apoio e parceria dos argentinos e uruguaios declinava fortemente, criou ainda mais animosidade no seio militar.
Estranhamente, afeiçoou-se ao coronel João Manuel Mena Barreto a tal ponto de Luiz Octávio de Lima, em seu livro A Guerra do Paraguai, ter registrado que: “A proximidade entre os dois e o fato de que com o tempo o príncipe passou a se referir ao veterano militar como ‘meu mais que amado amigo’ levou alguns integrantes da tropa a fazerem piadas sobre a relação de companheirismo que unia a dupla.”
Nos estertores da guerra, a caça a López e seu estropiado exército de 1.600 defensores (a maioria crianças e mulheres) era feita por ‘absurdos’ 31 mil homens.
E nessa caça, num pequeno combate, ocorre a trágica morte de Mena Barreto, o ‘amado amigo’ do príncipe. Depois de uma estranha paralisia, choque, a reação e a carnificina provocada pelo doidivanas príncipe foi um opróbrio à razão.
Só parou quando o general Emílio Mallet, subordinado seu, chamou-o à razão. Imaginem um sujeito desses com o timão do Brasil às mãos?
O ato da Proclamação
Mesmo que eu tenha listado acima algumas causas que motivaram a Proclamação do dia 15 de novembro, precisamos reconhecer que ao fim e ao cabo prevaleceu a questão militar.
A causa da República não se movia por moto próprio; precisava, e muito, das mãos e espadas dos militares.
Havia um mar de boatos no ar.
O da hora era que o Deodoro e Benjamin Constant tinham ordem de prisão. Na véspera do dia 15, à noite, o velho marechal, adoentado, 62 anos, mais tempo em cima de uma cama de doente do que de um cavalo de líder revolucionário, estava muito mal e seus amigos criam que não passaria da noite.
Mas o velho era duro: o moribundo da véspera era o redivivo da manhã seguinte – 15 de novembro de 1889.
Decidido a derrubar o governo de Ouro Preto, sai, junto à tropa, mas antes lança o grito de – Viva o Imperador!
(A vacilação do marechal tinha motivos: anos antes, seu saudoso pai, o tenente-coronel Mendes da Fonseca, havia sido reformado no posto – com estipêndio muito baixo – por ter tido a imprevidência de se rebelar contra o presidente da província.
Fracassado em seu ato, deixou esposa e onze filhos na mais completa e abjeta penúria.)
No adro do Quartel Geral do Exército (para onde, a conselho de terceiros, Ouro Preto tinha se transferido, num terrível erro de avaliação) do alto de seu cavalo, voz firme, diz Deodoro ao visconde do Ouro Preto: "Vossa Excelência e seus colegas estão demitidos por perseguir o Exército Imperial." A um retruque de Ouro Preto, ele repta, "nos pântanos do Paraguai, muitas vezes atolado, sacrifiquei minha saúde em benefício da Pátria."
Lá fora, gritos de "Viva a República".
Mas Deodoro, com o caso do seu pai como conselheiro, manteve-se firme. Por enquanto só o gabinete estava derrubado, sendo que o visconde e todos os demais foram presos.
Ainda à noite, Deodoro permanecia, não obstante a pressão, em dúvida se aceitava ou não a República. De repente, aparece o Benjamin Constant com um argumento decisivo, o imperador mandara chamar, do Sul, Gaspar Silveira Martins para organizar um novo gabinete. O império estava acabado, Deodoro e Silveira Martins eram inimigos irreconciliáveis.
E a briga envolvia lençóis.
Quando comandante militar aqui no Rio Grande do Sul, 1885, ele acabou disputando os amores de uma jovem fazendeira viúva, a baronesa de Triunfo, filha do general Andrade Neves. Na disputa pela alcova, acabou prevalecendo o charme do conselheiro.
É triste, parece piada, mas temos que reconhecer que a nossa República, de certa forma, foi proclamada por uma "escolha de alcova".
Epílogo
Na foto: Teresa Cristina, Antônio, Isabel, Pedro II, Pedro Augusto, Luís, Gastão e Pedro de Alcântara
Uma das primeiras decisões do governo provisório foi exilar imediatamente a família imperial.
Quando já no paquete Alagoas, noite do dia 17, o imperador e sua família recebem a oferta de uma dotação de seis mil contos para custear as primeiras despesas de sua instalação na Europa, ele declina condignamente. Em sete de dezembro, chegam a Lisboa. Inicia exílio.
O governo Deodoro, entre o período provisório e o constitucional, durou dois anos. Houve muitos problemas nesse período, sendo o pior a permanente crise com o legislativo. Esta acabou gerando o golpe do fechamento do congresso em três de novembro de 1891, a reação, a ameaça de guerra civil e, finalmente, a renúncia do presidente, exatos 20 dias após – com a assunção do vice Floriano Peixoto, o segundo presidente republicano.
Apesar de ter sido o ator principal no ato da Proclamação, Deodoro tinha uma boa relação de amizade com Dom Pedro II. Li em algum lugar que ele chegou mesmo a preparar o decreto de revogação da expulsão da família real – que só não foi efetivado em função da crise e da renúncia.
A cronologia da vida de ambos foi muito semelhante: Dom Pedro II nasceu em 1825, Deodoro, em 1827; Dom Pedro falece em 1891, 66 anos; Deodoro, Rio de Janeiro, 1892, 65 anos.
Seriam almas gêmeas?