sexta, 6 de janeiro de 2023

 

NÃO LEVE A SÉRIO
QUEM NÃO SORRI!

 



LEVO ESSE SORRISO
PORQUE JÁ CHOREI DEMAIS




Escreva apenas para




especial

Nesta sexta, uma cesta
de João Cabral de Melo Neto! 





O poeta que tentou esconder
a si mesmo de seus versos



O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu meus cartões de visita
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minha dieta
O amor comeu todos os meu livros de poesia
O amor comeu meu Estado, minha cidade
O amor comeu minha paz, minha guerra, meu dia e minha noite
Meu inverno, meu verão
Comeu meu silencio, minha dor de cabeça
O meu medo da morte


Mesmo sem querer fala em verso
Quem fala a partir da emoção


Bola de futebol... é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mãos.





Miró chega ao Brasil 68 anos depois de sua publicação em Barcelona.
Joan Miró é um dos mais célebres ensaios do poeta. Uma homenagem ao grande pintor catalão, cuja amizade se estendeu por toda vida.
João Cabral traz, nesse ensaio, sua percepção sobre a obra de Miró, num momento em que o artista ainda sentia na pele a perseguição do regime fascista de Franco.
Nesta edição são publicadas as gravuras realizadas pelo artista exclusivamente para a obra de João Cabral. Além de um ensaio com mais de 20 imagens sobre o making of da obra.



Deus é como a linha do horizonte sobre o mar. Essa linha, na verdade, não existe, mas, para os seus olhos, o mar acaba ali. Então, você começa a ir em direção a essa linha e ela, por sua vez, vai se afastando. Deus é isso.





João Cabral de Melo Neto

João nasceu no Recife-PE em 9 de janeiro de 1920. Foi diplomata, poeta e ensaísta.

Sua obra inaugurou uma nova forma de fazer poesia no Brasil. É considerado o maior poeta de língua portuguesa por escritores como Mia Couto.


Foi agraciado com vários prêmios literários, entre eles o Prêmio Neustadt, tido como o Nobel Americano, sendo o único brasileiro a receber a distinção, e o Prêmio Camões. Quando morreu  especulava-se que era um forte candidato ao Prêmio Nobel de Literatura.

Bandeira, João e Mário de Andrade

Irmão do historiador Evaldo Cabral de Mello e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, João Cabral foi amigo do pintor Joan Miró e do poeta Joan Brossa.


Casou-se com Stela Maria Barbosa de Oliveira, em fevereiro de 1946, com quem teve os filhos Rodrigo, Inez, Luiz, Isabel e João.


Depois, em 1986, casou-se pela segunda vez, com a poetisa Marly de Oliveira.


Ingressou aos dez anos no Colégio de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Maristas. Gostava muito de futebol, sendo campeão juvenil pelo Santa Cruz.


Começou a trabalhar aos 17 anos, na Associação Comercial de Pernambuco e, no ano seguinte, passou a frequentar a roda literária do tradicional Café Lafayette de Pernambuco.


Mudou-se nos anos 1940 para o Rio de Janeiro, onde conheceu diversos intelectuais, dentre eles Carlos Drummond de Andrade. Aos 25 anos, prestou concurso no Itamaraty, ingressando, em dezembro de 1945, na carreira diplomática.

Em 1952, quando o Partido Comunista do Brasil estava na ilegalidade, João Cabral foi acusado de criar uma "célula comunista" no Itamaraty, junto com mais quatro diplomatas (Antônio Houaiss, Amaury Banhos Porto de Oliveira, Jatyr de Almeida Rodrigues e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira), sendo todos afastados do órgão por Getúlio Vargas em despacho de 20 de março de 1953. Conseguiram retornar ao serviço em 1954, após recorrerem ao Supremo Tribunal Federal.

No Supremo Tribunal Federal, João Cabral de Melo Neto foi defendido pelo advogado José Guimarães Menegale, que afirmou:

“Antes de recapitularmos, para arrematar estas razões, que a gravidade da espécie alongou, consignaremos, afinal, esta afirmação enfática e definitiva: JOÃO CABRAL DE MELO NETO não professa a ideologia comunista. Repele a acusação, não em som de ultraje pessoal, mas por figurar torpeza, com que a vilania dos intrigantes interesseiros o quer enlear, ferir e prejudicar na carreira que abraçou e em que já prestara ao Brasil os serviços de sua viva inteligência, de sua cultura política e artística, de seu singelo e fecundo patriotismo. Nem por atos anteriores à punição, nem por manifestação subsequentes poderão inquiná-lo de tal”.


Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, e empossado em 6 de maio de 1969, recebido por José Américo de Almeida. Ocupou a cadeira 37, antes ocupada pelo jornalista Assis Chateaubriand. 

Sua obra é uma poesia que causa supresa a quem espera uma poesia emotiva, pois seu trabalho é basicamente cerebral e "sensacionista", buscando uma poesia construtivista e objetiva.


Embora exista uma tendência surrealista em seus poemas, principalmente nos iniciais, como em Pedra do Sono, buscando uma poesia que fosse também expressiva, Melo Neto não precisa recorrer a paixão para criar uma atmosfera poética, fugindo de qualquer tendência romântica.


Mas busca uma construção elaborada e pensada da linguagem e do dizer da sua poesia, transformando toda a percepção em imagem de algo concreto e relacionado aos sentidos, principalmente ao do tato, como pode-se perceber bem em Uma Faca Só Lâmina. Neste poema, Cabral apresenta a imagem da faca através da sensação de vazio que a facada deixa na carne, contrastando com a própria faca sólida que a corta.

Algumas palavras são usadas sempre: cana, pedra, osso, esqueleto, dente, gume, navalha, faca, foice, lâmina, cortar, esfolado, baía, relógio, seco, mineral, deserto, asséptico, vazio, fome. 


Cabral criticou sua tendência em Pedra do Sono de pintar atmosferas, em lugar de falar diretamente. Essa tendência continuará em parte em seu segundo livro, Os Três Mal-Amados. Nessa obra Cabral coloca três personagens;

"João Cabral de Melo Neto, também chamado poeta-engenheiro, tendo em vista o cálculo, a lapidação e a objetividade de seu trabalho com os versos, foi escritor, diplomata e um dos mais importantes intelectuais de seu tempo. Ainda pouco lido pelo grande público, embora consagrado imortal da Academia Brasileira de Letras e o primeiro brasileiro a vencer o Prêmio Camões, o autor desenvolveu um estilo próprio, muito distante das características presentes na poesia de seus contemporâneos da Geração de 45."


Com um estilo calculadamente racional e enxuto de subjetividade, João  nunca pretendeu desnudar a própria vida em seus poemas. 

Nascido em Recife, de uma família pertencente à elite açucareira, com muitos bacharéis e advogados, João Cabral passou a infância nas paisagens de engenhos das cidades de São Lourenço da Mata e Moreno. 


Sem interesse em ocupar posições tradicionais das elites, via curso de Direito da tradicional Faculdade do Recife, não frequenta nenhuma universidade. Após breve passagem pelo Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), passa a integrar o quadro de diplomatas, a partir de 1946, um ano depois de publicar O Engenheiro. Faz assim da diplomacia sua carreira, com estabilidade para se dedicar à poesia e possibilidade de conhecer outras culturas. Serve em Londres, França, Paraguai, Senegal, Portugal e Espanha, lugar que o marca profundamente e impacta sua poesia.


Das experiências da Espanha dominada pelo franquismo, das reflexões sobre a miséria brasileira e das leituras marxistas surgem as cores sociais de obras como O Cão sem Plumas (1950) e O Rio (1954). E Morte e Vida Severina, de 1955, uma encomenda de Maria Clara Machado, então diretora da companhia teatral O Tablado.


Embora a própria companhia não levasse a montagem adiante – para frustração do autor –, em 1965 Morte e Vida Severina foi um sucesso estratosférico na encenação no Tuca, em São Paulo, com músicas de Chico Buarque. O sucesso consagraria João Cabral para o grande público e serviria do carimbo definitivo para sua entrada na Academia Brasileira de Letras.

João Cabral encerra a carreira diplomática no início dos anos 1990, depois de se tornar cônsul da cidade do Porto, em Portugal.

Em 1993 recebe o Prêmio Jabuti, instituído pela Câmara Brasileira do Livro.

O poeta influenciou a vanguarda poética dos anos 1950, que quis radicalizar a ideia do poema como artefato a ser construído radicalmente. No entanto, a imagem do poeta engenheiro foi decisiva para a poesia concreta.

Mas a influência de João Cabral não foi localizada apenas entre os concretistas. Toda a poesia e arte engajada dos anos 1960 também tiveram influência de sua obra. 


Um dado relevante da biografia de João Cabral é a dor de cabeça crônica que acompanharia o poeta por quase toda a vida e constitui um tópico decisivo para entender seu temperamento. Ele passou a vida consumindo uma quantidade absurda de aspirinas, o que inclusive trouxe outros problemas de saúde. Passar o tempo todo com dor de cabeça interferia em seu humor, sua visão de mundo e na forma como ele se relacionava com as coisas.

Junto às dores de cabeça, a depressão é outro problema. Considerada por ele como melancolia, do tipo declamada pelos poetas do século 19, pode ser chamada de angústia. Ele era uma pessoa com muita sensibilidade, nervos à flor da pele, muito emotivo, o contrário da imagem que se faz do poeta. 


Debilitado pela cegueira e com crises de depressão, João Cabral morreu em 9 de outubro de 1999 no Rio de Janeiro.


OBRAS

Pedra do Sono (1942)

Os Três Mal-Amados (1943)

O Engenheiro (1945)

Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)

O Cão sem Plumas (1950)

Poesia e composição (1952)

O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife (1953)

Morte e Vida Severina (1955)

Uma faca só lâmina (1955)

Dois Parlamentos (1960)

Quaderna (1960)

A Educação pela Pedra (1966)

Museu de Tudo (1975)

A Escola das Facas (1980)

Auto do Frade (1984)

Agrestes (1985)

Crime na Calle Relator (1987)

Primeiros Poemas (1990)

Sevilha Andando (1990)

Tecendo a Manhã (1999)

Com o amigo Vinicius

FÁBULA DE UM ARQUITETO

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

                 2.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

- João Cabral de Melo Neto, in “Melhores Poemas de João Cabral de Melo Neto". [Seleção Antônio Carlos Secchin], São Paulo: Global Editora, 8ª ed., 2001, pag. 189.


ENTREVISTA

Revista Veja, 1992

Os dois prêmios literários que o senhor acaba de receber lhe renderam 140 mil dólares. Já sabe o que vai fazer com tanto dinheiro?=

Nada de especial. Estou muito velho para fazer vida literária – lançar uma revista de poesia, por exemplo. Não vou viajar, porque já o fiz a vida inteira como diplomata. Também já tenho minha casa. De modo que não tenho nada de mais para fazer com o dinheiro dos prêmios. Vai ficar para a família.

O que os prêmios significaram para o senhor?

Esse negócio de homenagem é por causa da idade. Eu já estou até me acostumando com isso. A esta altura da vida, nem adianta querer esquecer quantos anos se tem. No caso do prêmio O Estado de São Paulo, acho que a intenção dos jurados – Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles e Rubem Fonseca – foi mesmo homenagear a poesia brasileira. Como eu sou o poeta mais velho, com exceção de Mário Quintana, acabei ganhando.


E o prêmio Neustadt, dado pela Universidade de Oklahoma através da revista World Literature Today?

Esse foi uma surpresa. Estava em Honduras, na casa de minha filha, e recebi um telefonema da embaixada brasileira, dizendo que eu havia sido contemplado. Eu nunca tinha ouvido falar desse prêmio.

Como o senhor está vendo a crise política brasileira?

Eu tenho acompanhado tudo pelos jornais e pela televisão. A impressão que dá é que existem pontos no relatório da CPI capazes de gerar novas investigações. Se a comissão tivesse mais tempo para trabalhar, descobriria coisas do arco da velha.

O senhor compararia este momento político do país com algum outro período de nossa história recente?

Passei muito tempo fora do Brasil, de modo que deixei de viver muita coisa aqui. Do que eu pude acompanhar lá de fora, não me lembro de nada que possa ser comparada com o que vemos hoje.

Por que a poesia hoje tem um número de leitores tão reduzido?

Sempre foi assim. Pelo menos do romantismo para cá. A poesia é como um laboratório da linguagem. Uma grande indústria tem a parte fabril propriamente dita, mas tem também um laboratório. É a partir das pesquisas de laboratório que um produto passa a ser fabricado. Depois das “pesquisas” dos poetas, os romancistas, os novelistas de televisão, os teatrólogos pegam os resultados e fazem uso das conquistas e descobertas laboratoriais. Os livros de poesia podem até vender menos, e vendem menos mesmo do que romances, por exemplo. Mas você pega qualquer história de literatura, de qualquer país, de qualquer época, e percebe que ela sempre começa pela poesia daquele lugar. A poesia, aliás, é anterior a todos os gêneros literários. Mas, mesmo depois que estes surgem, ela continua sendo a porta de entrada, o primeiro andar de qualquer literatura.

A poesia não está em crise, como sustentam diversos críticos?

Não, de modo algum. A poesia sempre foi, e continuará sendo, por suas características de laboratório de linguagem, um gênero de minoria. Veja o caso do poeta francês Stéphane Mallarmé, por exemplo, um dos primeiros autores modernos. Ele morreu em 1898 conhecido apenas por um grupo bem restrito.

Os poetas estão condenados a escrever pelo deserto?

Você quando escreve está criando um objeto. Cria independentemente do público que vai ler o seu trabalho. Não se escreve poesia visando ao sustento. Escrevem-se poemas como se poderia fazer qualquer outra atividade: ginástica, natação. Aquilo é uma necessidade, algo do qual você não pode abrir mão – e pronto. Quer dizer, a poesia é uma coisa bem mais pessoal do que social. É um uso pessoal da linguagem, que por sua vez se trata de um instrumento social. É a expressão direta do que vai na mente do poeta, ao contrário, por exemplo, dos romances, em que os escritores se comunicam de forma indireta com o leitor, já que se valem de personagens.

O que um leitor busca ao comprar um livro de poesia?

Para mim, essa continua sendo uma pergunta sem resposta. Reparo que o gosto pela poesia vem de lugares de que menos se espera. Outro dia, fui até o balcão de uma empresa aérea e perguntei à mocinha que estava lá, de cabeça baixa, escrevendo: “A senhora tem ai uma passagem em nome de João Cabral de Meto Neto?”. Ela levantou a cabeça e falou emocionada: “É o senhor poeta?!” Tenho a maior admiração pelo seu trabalho”. E começou a contar que desde os tempos de colégio lia meus poemas. Fiquei sinceramente comovido.

O senhor sempre soube que seria poeta?

Quando eu era menino não lia, naturalmente, livros de poesia. Preferia Sherlock Holmes, essas coisas. Na época em que eu estava para prestar exame para a carreira diplomática, quase virei jornalista. Um dia fui encontrar com o Assis Chateaubriand, para ver se arrumava um emprego num jornal. Conversamos muito e a certa altura ele perguntou se eu tinha experiência jornalística. Falei a verdade, que não tinha, mas disse que escrevia bem. Aí ele foi taxativo: “Então não dá. Vá ser escritor”. 

O senhor tem lido os novos escritores brasileiros?

Eu recebo muitos livros na minha casa e pode-se dizer que nunca se produziu tanta poesia no país, o que acho excelente. Há quem diga que isso não é bom. Eu, ao contrário, acredito que da quantidade pode-se extrair a qualidade. Mas eu confesso que, aos 72 anos, a gente pensa que pode ter só alguns meses de vida e resolve não arriscar. É preciso, então, economizar tempo. Ler não deixa de ser uma aventura. Se eu me meto a mergulhar num livro de autor novo, pode não valer a pena – e perdi cinco ou mais horas naquilo. Nessas cinco horas eu poderia estar relendo Shakespeare ou qualquer outro autor que me marcou ao longo da vida. Ganharia com o prazer da releitura e também poderia descobrir coisas que teriam me escapado antes naquela obra. Com pouca vida pela frente, o negócio é só jogar no cavalo certo.

E quais são os cavalos certos no momento para o senhor?

William Shakespeare, Mallarmé, W. H. Auden, esses autores que me influenciam.

O senhor conhece os livros de Paulo Coelho, o autor que mais vende no país atualmente?


Eu conheci Paulo Coelho e cheguei a dar uma lida nos seus primeiros livros. Como sou materialista, aquilo não me interessa, não me diz nada.

Como avalia a explosão de vendas das obras de autoajuda no Brasil?

É um fenômeno que encontra correspondência, por exemplo, no crescimento das igrejas evangélicas. A pessoa que procura essas seitas não está preocupada com o desenvolvimento religioso. Ela quer é resolver seus problemas imediatamente. Quem compra um livro de autoajuda tem um comportamento semelhante ao do sujeito que vai atrás de um curandeiro. 

O senhor costuma reler sua obra?

Não gosto disso. Dá impressão de velhice.

O senhor tem medo da morte?

Tenho sim, é engraçado, mas eu, um materialista convicto, tenho medo da morte. E sabe por quê? Por causa do inferno. Racionalmente, não tenho fé. Fui criado num meio católico, fiz primeira comunhão, estudei em colégio marista, essas coisas. Mas, desde que comecei a tomar conta de mim mesmo, jamais assisti a uma missa ou entrei em uma igreja. Ainda assim, nunca consegui afastar da minha mente aquele horror do inferno que me foi transmitido pelos padres que me deram aulas. Virou um fetiche. É igual a essa medalhinha de Nossa Senhora do Carmo, a padroeira do Recife, que eu não tiro do pescoço, embora não acredito em santos. Uma vez, eu estava hospedado com Rubem Braga lá no Recife e, conversando sobre o meu medo da morte, ele brincou: “Puxa, você fala tanto no inferno que vai acabar ganhando um exclusivo”. 

Como um materialista que tem medo do inferno lida com o conceito de Deus?

Deus é como a linha do horizonte sobre o mar. Essa linha, na verdade, não existe, mas, para os seus olhos, o mar acaba ali. Então, você começa a ir em direção a essa linha e ela, por sua vez, vai se afastando. Deus é isso. A ciência procura explicar o desconhecido. Mas sempre há um limite, uma barreira para o conhecimento. O que está para além dessa barreira é o que se chama de Deus. Os católicos dizem que Deus é inexplicável. Eu digo que Deus é o ainda não explicado pela ciência. Se você falasse em física quântica para Descartes, ele cairia das nuvens. Naquela época, física quântica podia ser Deus. Hoje, já temos explicações para o que, há alguns séculos, era inexplicável. E evidentemente continuam a existir coisas sem explicação. Ou seja: Deus é apenas o que os cientistas de um determinado período não conseguem explicar racionalmente.

O senhor acredita em algo que possa melhorar a vida do homem? A política, por exemplo, levaria ao bem comum?

Nesse sentido, eu só acredito mesmo na ciência. Eu só creio em coisas concretas. A vida é material.

É por isso que sua poesia só lida com elementos bem concretos, palpáveis?

Exatamente. Não sinto a menor necessidade poética de tratar de temas metafísicos no sentido filosófico do termo, nada a ver com os chamados poetas metafísicos, como o inglês John Donne, que eu admiro muito e influenciaram de mais minha obra. Se escrevo “pedra”, estou falando de algo bem mais objetivo do que “saudade”, por exemplo, que quer dizer coisas distintas para pessoas diferentes. Ou seja, consigo ser bem mais preciso, me faço entender melhor e atinjo até um público maior.

Como o senhor tem aproveitado seu tempo disponível de diplomata aposentado?

A gente sempre pensa que, ao se aposentar, terá todo o tempo do mundo para fazer o que bem entender. O tempo existe, claro, mas você acaba não fazendo praticamente nada do que pensava com ele. Eu sou muito caseiro, minha mulher, Marly, também, um não incentiva o outro a sair. Por isso, ficamos bastante tempo em casa, lendo, conversando e assistindo à televisão. Eu precisava fazer caminhadas, só que tenho medo de sair e ser assaltado.

Quando foi ao cinema pela última vez?

Faz uns três meses. Eu estava em Tegucigalpa, em Honduras. Fui com minha filha assistir O Príncipe das Marés. Eu não ia ao cinema havia tanto tempo que tinha até esquecido que eles hoje têm uma tela enorme. Achei a fita uma beleza. Não sei se é porque ultimamente eu só tenho visto filmes pela televisão.

A que mais o senhor assiste na TV?

 Vejo muito esporte, principalmente futebol e Fórmula 1. No mais, só mesmo noticiários.

O senhor continua não gostando de música?

Eu não sinto necessidade da música, compreende? Tem gente que precisa, nem que seja de vez em quando, de uma “música de fundo”. Isso não acontece comigo. Quando estava no Recife, ouvia frevo e, no tempo em que morei na Espanha, gostava de música flamenca. Hoje em dia, não ponho mais discos na vitrola.

Por que o senhor decidiu começar a fumar recentemente?

Eu, que nunca tinha posto um cigarro na boca, nem quando era adolescente, época em que você tem curiosidade de conhecer tudo, resolvi começar a fumar há três anos. Estava gripado, sentindo uma friagem tremenda, aí eu me perguntei: será que se eu fumar um cigarro passa esse frio de dentro? Fumei e o frio passou. Aí não parei mais. O médico quis proibir, mas eu falei: se não peguei câncer até agora, não vai ser entrando na casa dos 70 que isso acontecerá, só porque eu comecei a fumar. Na verdade, estou na contramão. Li um dia desses numa revista americana que os homens estão fumando cada vez menos e as mulheres cada vez mais. 

O senhor está escrevendo um livro novo?

Outro dia estava mexendo em umas gavetas e encontrei muitos poemas começados. Venho trabalhando neles para fazer um livro, que ainda não tem título. Acho que este novo trabalho vai ser parecido com Agrestes, ou seja, trará poemas variados. Vou falar de Sevilha, do Porto, do Senegal e, é claro, de Pernambuco. Meu editor gostaria de lançar o livro em janeiro de 1993. Não sei se termino até lá. Também tenho um projeto de escrever um novo poema longo, desta vez sobre Jerônimo de Albuquerque, donatário da Capitania de Pernambuco. Para mim, Jerônimo é uma espécie de “Adão” do Nordeste. Ele viveu maritalmente com uma índia e só com ela teve treze filhos. Depois casou com outra mulher e teve outros tantos. De modo que todo mundo no Nordeste descente dele. Até eu. Quer dizer, através dessa figura, eu vou poder contar toda a história de Pernambuco. Este livro tem um título provisório: Memórias Prévias.

O senhor sonha com o Prêmio Nobel de Literatura?

Claro que, se o Nobel viesse, seria bem-vindo. Nenhum escritor de nossa língua foi até hoje contemplado com esse prêmio. Mas, se fosse para dar o Nobel a um autor que escreve em português, haveria outros que mereceriam o prêmio mais do que eu. José Saramago, por exemplo. Aqui também temos candidatos mais fortes do que eu, como o Jorge Amado.


“A poesia de João Cabral é aquela joia, é o máximo que se consegue de beleza com o mínimo de material.”

Otto Lara Resende



3 comentários:

  1. "Quem fizer algo errado será convidado a deixar o governo."
    Lembrando que, nesse caso, o errado é o certo e o certo é o errado.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Atenção: roubar a Petrobrás é exclusividade do chefe.

      Excluir
  2. Tchutchuca será líder do governo...

    ResponderExcluir