Sexta, 11 de agosto de 2023

 

NÃO LEVE A SÉRIO
QUEM NÃO SORRI!

 


NÃO SEJA GUERREIRO.
SEJA DA PAZ




Escreva apenas para







FORA LULA GAGÁ!!







É SEGUNDA!!





Dois minutos com prévidi

- NUNCA VI MEU PAI PELADO


- RECADINHO IMPORTANTÍSSIMO


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especial

Nesta sexta, uma cesta
de
DALTON TREVISAN!  


O VAMPIRO
DE CURITIBA

Aqui Dalton é um jovem.
Hoje, está com 98 anos feitos!


O que não me contam eu escuto atrás das portas



Não fale, amor. Cada palavra, um beijo a menos.



Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas.




no muro o caracol
se derrete nos rabiscos
da assinatura prateada




O Vampiro aos 98 anos


Dalton Trevisan 
(Dalton Jerson Trevisan)
 nasceu em Curitiba, em 14 de junho de 1925. É famoso por seus livros de contos, especialmente O Vampiro de Curitiba (1965), e por sua natureza reservada. Por mais de 40 anos foi casado com Yole Maria Bonato Trevisan - um casamento que passou por muitos percalços porque Dalton "era muito difícil". Tiveram duas filhas, Rosana e Isabel.


 Estudou no Colégio Estadual do Paraná e trabalhou durante sua juventude na fábrica de vidros de sua família. Depois de se formar pela Faculdade de Direito do Paraná (atual Universidade Federal do Paraná), chegou a exercer a advocacia durante 7 anos.


Quando era estudante de Direito, Trevisan costumava lançar seus contos em modestos folhetos. Liderou o grupo literário que publicou, entre 1946 e 1948, a revista Joaquim. O nome, segundo ele, era "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas.


Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mário de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos, como "O Caso do Vestido", de Carlos Drummond de Andrade. A revista também trazia traduções de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.


A publicação, que circulou até dezembro de 1948, continha o material de seus primeiros livros de ficção, incluindo Sonata ao Luar (1945) e Sete Anos de Pastor (1948) - duas obras renegadas pelo autor.


Em 1954 publicou o Guia Histórico de Curitiba, Crônicas da Província de Curitiba, O Dia de Marcos e Os Domingos ou Ao Armazém do Lucas, edições populares à maneira dos folhetos de feira.

Inspirado nos habitantes da cidade, criou personagens e situações de significado universal, em que as tramas psicológicas e os costumes são recriados por meio de uma linguagem concisa e popular, que valoriza os incidentes do cotidiano sofrido e angustiante.


Publicou também Novelas Nada Exemplares (1959) e ganhou o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Como era de se esperar, enviou um representante para recebê-lo.


Morte na Praça (1964), Cemitério de Elefantes (1964) e O Vampiro de Curitiba (1965). Isolado dos meios intelectuais e concorrendo sob pseudônimo, Trevisan conquistou o primeiro lugar do I Concurso Nacional de Contos do Estado do Paraná, em 1968


Escreveu depois A Guerra Conjugal (1969), posteriormente transformada em um premiado filme, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, Crimes da Paixão (1978) e Lincha Tarado (1980).


Em 1994 publicou Ah, é?, obra-prima do estilo minimalista. Seu único romance publicado é A Polaquinha.


É reconhecido como um importante contista da literatura brasileira por grande parte dos críticos do país. Entretanto, é avesso a entrevistas e exposições em órgãos de comunicação social, criando uma atmosfera de mistério em torno de seu nome. Por esse motivo recebeu o apelido de "Vampiro de Curitiba". Assina apenas "D. Trevis" e não recebe a visita de estranhos.


OBRAS

Novelas nada Exemplares (1959)
Cemitério de Elefantes (1964)
Morte na Praça (1964)
O Vampiro de Curitiba (1965)
Desastres do Amor (1968)
Mistérios de Curitiba (1968)
A Guerra Conjugal (1969)
O Rei da Terra (1972)
O Pássaro de Cinco Asas (1974)
A Faca No Coração (1975)
Abismo de Rosas (1976)
A Trombeta do Anjo Vingador (1977)
Crimes de Paixão (1978)
Primeiro Livro de Contos (1979)
Vinte Contos Menores (1979)
Virgem Louca, Loucos Beijos (1979)
Lincha Tarado (1980)
Chorinho Brejeiro (1981)
Essas Malditas Mulheres (1982)
Meu Querido Assassino (1983)
Contos Eróticos (livro) (1984)
A Polaquinha (1985)
Noites de Amor em Granada
Pão e Sangue (1988)
Em Busca de Curitiba Perdida (1992)
Dinorá - Novos Mistérios (1994)
Ah, É? (1994)
234 (1997)
Vozes do Retrato - Quinze Histórias de Mentiras e Verdades (1998)
Quem tem medo de vampiro? (1998)
111 Ais (2000)
Pico na veia (2002)
99 Corruíras Nanicas (2002)
O Grande Deflorador (2002)
Capitu Sou Eu (2003)
Continhos galantes (2003)
Arara Bêbada (2004)
Gente Em Conflito (com Antônio de Alcântara Machado) (2004)
Macho não ganha flor (2006)
O Maníaco do Olho Verde (2008)
Uma Vela Para Dario (talvez 2008)
35 noites de paixão - contos escolhidos (2009)
Violetas e Pavões (2009)
Desgracida (2010)
Mirinha (2011)
Nem te conto, João (2011)
O Anão e a Ninfeta (2011)
Novos contos eróticos - Antologia (2013)
A mão na pena (2014)
O beijo na nuca (2014)




Aos 98, vida literária
de Dalton Trevisan
está por ser ‘reescrita’
  

Por Marcus Gomes, muraldoparana.com.br – O frio e a chuva típicos de Curitiba comemoram nesta-quarta (14) o aniversário de 98 anos do maior contista brasileiro, talvez do mundo, o que ele não admitiria porque não é dado a hipérboles literárias. O nome é Dalton Trevisan. Dalton Jerson Trevisan. Nascido em 1925 nesta capital. Prazer.

Em 2011, Dalton publicou o último livro de contos inéditos (“O Anão e a Ninfeta”), com o estilo que sempre o marcou de textos curtos, incisivos e nada recatados. Dalton foi censurado nas escolas, bibliotecas e durante o regime militar – e, ao que sabe, não pediu nenhuma indenização ao Estado (tomou, papudo?).

Na década de 80 ganhou o concurso literário da revista “Status”, com o conto “Mister Curitiba”. Ganhou, mas não levou. A ditadura lhe cassou o posto e o prêmio. Não seria a última vez que Dalton, um recluso notório, comparável ao J.D. Salinger de “O Apanhador no Campo de Centeio”, porém mais prolífico, enfrentaria a tesoura e a inquisição. Ao fim, ficam os quirodáctilos, vão-se os coronéis.

“Ninguém escreve nada decente depois dos 80”

Em encontros com amigos, na era pré-pandemia, entre eles o livreiro Aramis Chain, anunciou sua aposentadoria, afirmando que “depois dos 80, ninguém escreve nada decente”. Pois ele publicou aos 86 e não dá sinais de que vá parar. Talvez não tenha escrito novos contos na última década, nunca se sabe. Seus 700 textos breves, contudo, continuam sendo reescritos a cada edição. Compulsivamente.

Prova disso é a “Antologia Pessoal”, lançado pela Record, em abril, que traz 94 contos selecionados e, indubitavelmente, reescritos pelo próprio autor. A história de Dalton, o curitibano de rotina inabalável, está igualmente relacionada com essa tarefa. Do “Vampiro de Curitiba” – epíteto que parece uma marca desgastada – sabe-se pouco. Há retalhos biográficos, sem precisão, que vazaram por indiscrição ou maledicência real. O que se sabe de Dalton, portanto, carece de reescrita.

Apartamento em condomínio da Dr. Muricy

Em 2021, aos 95 anos, já privado de suas caminhadas peripatéticas e sob a atenção de uma cuidadora, Dalton mudou-se para um condomínio de apartamentos, na Rua Dr. Muricy, na região central da capital paranaense. A causa foi um ladrão, preso em flagrante. O endereço preciso do contista é guardado a sete chaves por seus amigos próximos. Dalton mantém um muro intransponível em torno de si e, se sai à rua, faz questão de fugir daqueles que tentam fotografá-lo ou abordá-lo. Se alguém quer um livro autografado, muito bem. Que o deixe na Livraria Chain, com nome escrito em papelinho.

Aqueles que, de forma sub-reptícia, quiseram aproximar-se do escritor decantando amizade, se deram mal. Ou foram eviscerados impiedosamente em seus contos ou ganharam a pecha de baratas leprosas, sem mais a acrescentar.

Hiena Papuda

Que o diga repórter da mesma revista “Status” que viria premiá-lo em concurso de contos. Com a missão de aproximar-se de Dalton, ele observou o escritor por alguns dias e descobriu a banca de jornais onde ele comprava livros de bolso e outras publicações. Foi matreiro, puxou conversa, e o escritor prontamente lhe indicou um dos livros de sua preferência: uma edição, em papel jornal, dos “Contos de Tchekhov”. O colóquio prosseguiu e foi gravado pelo repórter, onde depois seria reproduzido na revista. Dalton reclamou na seção de cartas dos leitores. Não culpou o repórter, mas o editor, e a ele dirigiu alguns palavrões elegantes e refinados, típicos de sua verve.

Desavenças que se tornaram contos são mais conhecidas. Dalton espetava espinhos nas pontas dos dedos (os quirodáctilos) para assim escrevê-los no tom apropriado: o do ódio. “Hiena Papuda” e “Amintas 749” são só exemplos.

“Se Capitu não traiu, meu nome é José de Alencar”

Há mais, muito mais. O contraponto são suas homenagens a amigos de longa data. Otto Lara Resende, por exemplo. A correspondência entre eles soma 600 cartas e foi doada ao Instituto Moreira Salles. Estão na lista, ainda, Rubem Braga e Vinicius de Moraes, cujos versos em que afirmava “me perdoem as feias, mas beleza é fundamental”, foram estrondosamente refutados por Dalton. Ele sempre amou todas: as polaquinhas, as gordas do Tiki Bar, as de cinta-liga, broinhas de fubá mimoso.

Se o escritor é maldito fruto entre as mulheres, trata-se de caso pontual. Dalton é inflexível quando discute o adultério de Capitu, personagem do livro “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Para ele não há dúvida: “Se Capitu não traiu Bentinho, meu nome é José de Alencar”. E ponto. Assim é Dalton. Aos 98, aos 100 e aos anos que virão.


UMA VELA PARA DARIO

  Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa  na pedra o cachimbo.

 Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.

Ele reclina-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede aos outros que se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos, Dario ronqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.

Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam de uma porta à outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando  a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado.

A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata.

Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de  moscas lhe cobrem o rosto, sem que faça um gesto para espantá-las.

Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora , comendo e bebendo, gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.

Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na carteira é de outra cidade.

Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado dezessete vezes.

O guarda aproxima-se do cadáver,  não pode identifica-lo - os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a aliança de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide chamar o rabecão.

A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. E a gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um defunto.

Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para  lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem  morto e a multidão se espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos.

Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver, Parece morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.

Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da chuva, que volta a cair.


O CICLISTA

Curvado no guidão lá vai ele numa chispa. Na esquina dá com o sinal vermelho e não se perturba – levanta voo bem na cara do guarda crucificado. No labirinto urbano persegue a morte com o trim-trim da campainha: entrega sem derreter sorvete a domicílio.

É sua lâmpada de Aladino a bicicleta e, ao sentar-se no selim, liberta o gênio acorrentado ao pedal. Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, desvia de fininho o poste, o caminhão; o ciclista por muito derrubou o boné.

Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morde, ei-lo defunto ao perder o ferrão. Guerreiros inimigos trituram com chio de pneus o seu diáfano esqueleto. Se não se estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e – uma perna mais curta – foge por entre nuvens, a bicicleta no ombro.

Opõe o peito magro ao para-choque do ônibus. Salta a poça d`água no asfalto. Num só corpo, touro e toureiro, golpeia ferido o ar nos cornos do guidão.

Ao fim do dia, José guarda no canto da casa o pássaro de viagem. Enfrenta o sono trim-trim a pé e, na primeira esquina, avança pelo céu na contramão, trim-trim.



PENÉLOPE

Na rua de casas iguais morava, há muitos anos, um casal de velhos. Ela o esperava, costurando na cadeira de embalo da varanda e, quando ele vinha pela rua, com um pacote no braço, descia, de chinelos, os dois degraus da varanda e lhe sorria, com o portão aberto. Cruzavam o pequeno jardim e, apenas na porta, por causa dos vizinhos, mas ainda antes de entrar, ela lhe erguia a cabeça, sem nenhum fio branco, e ele a beijava na testa. Estavam sempre juntos, lidando no seu quintal, ele com as couves, ela com sua coleção de cactos. Quando deixavam aberta a porta da cozinha, os vizinhos podiam ver que ele enxugava a louça para a mulher. E, aos sábados, saíam para o seu passeio diante das vitrinas, ela, gorda, ainda bonita, de olhos azuis e ele, magro, baixo, de preto. Nas noites de verão, ela usava vestidos brancos, de pernas nuas, ele não, sempre de preto. Havia um mistério na vida deles, que nenhum vizinho conhecia. Sabia-se vagamente que os filhos tinham morrido num desastre, há muitos anos. O casal de velhos abandonou tudo, casa, túmulos, bichos e se mudara para aquela cidade, naquela rua. Eram os dois, sem cão, gato, passarinho, nem mesmo galinhas. Tinham medo de se afeiçoar a qualquer coisa. Algumas vezes, na ausência do marido, ela trazia ossos para os cães vagabundos que cheiravam o portão. Quando engordavam uma galinha, a mulher se enternecia por ela e não tinha coragem de matá-la. Então, o velho desmanchou o galinheiro e, no seu lugar, plantou uns pés de couve. Arrancou a única roseira que crescia num canto do jardim; nem a uma rosa se atreviam a dar os seus restos de amor.

Afora a viagem, que faziam uma vez por ano para visitar o túmulo dos filhos, não saíam de casa, o velho fumando seu cachimbo, a velha trançando as agulhas de tricô, a não ser no seu clássico passeio dos sábados. E foi num sábado que, ao abrir a porta, eles acharam a seus pés, uma carta. Era estranho, porque ninguém lhes escrevia, os dois sozinhos no mundo, e confabularam antes de se decidir a abri-la. Era um envelope azul, sem qualquer endereço. A mulher propôs rasgá-lo, sem ler. Já tinham sofrido demais. Ele respondeu que ninguém podia mais fazer-lhes mal. Não queimou a carta, não se apressou de abri-la, deixou-a sobre a mesa. Sentaram-se um diante do outro, sob o abajur azul da sala, ela com seu tricô, ele com seu jornal. As vezes, ela curvava a cabeça, mordendo uma agulha na boca e com a outra contando os pontos. Quando chegava ao fim, tinha de contar a linha de novo: pensava na carta sobre a mesa. O homem lia com o jornal dobrado, no joelho, e leu duas vezes cada linha para entendê-la: pensava na carta sobre a mesa. O seu cachimbo apagou, não o acendeu, os olhos parados na mesma notícia, ouvindo apenas o seco bater das agulhas entre os dedos da mulher. Então, pegou a carta e abriu-a. Achou um pedaço de papel dobrado, com duas palavras: cOrNo MaNsO, escritas com grandes letras recortadas de jornal. Nada mais, data ou assinatura. Entregou o papel à mulher que, depois de ler, o olhou. Nenhum falou. A mulher se ergueu, segurando a carta na ponta dos dedos. Onde é que você vai? o homem perguntou. Queimar... ela respondeu. Não, ele disse. Dobrou o papel dentro do envelope azul e guardou-o no bolso. Juntou para a mulher a toalhinha que tinha caído no chão e continuou a ler o jornal e em cada linha, aquela noite, leu as duas palavras da carta.

Não estava mais certo de que ninguém podia fazer-lhes mal. Antes da mulher se erguer e guardar a cestinha com os fios e as agulhas, segurou-lhe a mão para consolá-la: aposto, minha velha, disse, que a mesma carta foi jogada sob a porta de todas as casas da rua. As vozes das sereias cantam ainda no coração dos velhos? Nem mesmo um pobre casal de velhos estava a salvo. Haviam-lhes tirado os filhos, os bichos, a cidade. Agora, queriam separá-los um do outro.

O homem esqueceu a carta no bolso e passou-se outra semana. No sábado, de volta do seu passeio, antes de abrir a porta, sabia que ela estava ali, azul sobre o capacho. A mulher pisou na carta, fingindo que não a via. Ele a juntou e guardou no bolso. Quase no fim do serão, sem erguer a cabeça da toalhinha, contando sempre a mesma linha, ela perguntou: você não vai ler a sua carta? Olhava-a, fingindo que lia o jornal, admirando-lhe a bela cabeça, sem nenhum cabelo branco, os olhos que, apesar dos anos, eram azuis como no primeiro dia. Eu já sei o que diz, ele respondeu. Então por que não a queima? É um jogo, minha velha, disse, mostrando o envelope azul entre os dedos: nenhum sobrescrito e fechado. Rasgou-o numa ponta e tirou o papel dobrado: duas palavras, as mesmas, nas letras recortadas de jornal. Soprou o envelope, sacudiu-o sobre o tapete, mais nada. A mulher tricoteava, como se não visse a carta. Ele a guardou no bolso, com a outra e continuou a ler em cada linha do jornal aquelas duas palavras. Ela não lhe perguntou, como se soubesse. Tinha o rosto oculto pela sombra do abajur. O homem reparou que ela desmanchava um ponto errado na toalhinha. Eram os dedos que tricoteavam ou as mãos que tremiam?

Ele acordou com dor de cabeça, no meio da noite, levantou-se da cama e foi beber água no filtro. Afastou a cortina e, na rua deserta, viu na sombra dum muro, o vulto daquele homem. Ficou ali, com a mão crispada na cortina, até o homem ir-se embora. Deitou-se, de costas para a mulher, (sabia que estava acordada e de olhos abertos para ele), imaginando quem seria o homem na sombra do muro. E pensou, pela primeira vez, se a carta não podia ser para ele mesmo.

De manhã, esqueceu a ideia e, deitado na cama, observava de olhos meio fechados a mulher, que se vestia para ir às compras. Diante do guarda-roupa, ela escolhia um vestido. Os seus vestidos brancos a deixavam mais gorda. Esperou-o para tomarem café juntos, como todas as manhãs e, quando ela fechou a porta, foi olhá-la pela janela. Era ela mesma, a sua mulher. O homem se sentiu envergonhado e fechou os olhos, dizendo: minha velha, me perdoe... Quando os abriu, notou que a mulher olhava para a janela, ainda que não pudesse vê-lo, atrás da cortina. Por que olhara a janela? Para dar-lhe adeus, se ele ali estivesse ou para saber se desconfiava dela?

No sábado seguinte, quis propor-lhe ficarem em casa, de luzes apagadas e surpreenderem o autor das cartas. Ao vê-la tão alegre, porque iam passear, não teve coragem e saíram. Durante o passeio pensou o tempo todo se era apenas ele que recebia as cartas. Não podia abordar um dos vizinhos no portão e perguntar-lhe aquilo. As casas da rua, de aluguel, eram todas iguais. Podia ser engano, o envelope não tinha endereço. Se, ao menos citasse nomes, horas, lugares... Quando abriu a porta, lá estava ela: a carta azul. Desta vez, não a leu diante da mulher. Guardou-a no bolso, junto com as outras e pôs-se a ler o seu jornal, sob o abajur. Quando virava as páginas, surpreendia o rosto da mulher debruçado sobre as agulhas. Era uma toalhinha difícil, porque há meses trabalhava nela. Como se lesse no jornal, ele lhe contou a história de Penélope, que desfazia de noite, à luz das velas, as linhas trançadas durante o dia, para ganhar tempo dos seus pretendentes, esperando a volta do senhor seu marido. Pela primeira vez, pensou se Penélope não teria enganado ao marido ausente. Para quem era a mortalha que ela bordava? Teria continuado a trançar suas agulhas após a volta de Ulisses? Homero não fala. Nem a mulher, que não perguntou sobre a carta.

No banheiro, fechando a porta à chave, abriu a carta. As duas palavras... Ele tinha o seu plano: guardou a carta no envelope e dentro dela um fio de cabelo. Pendurou o paletó no cabide, com a carta visível num dos bolsos. Foi-se deitar, enquanto a mulher punha o saco de pão na janela e a garrafa vazia de leite na porta. No dia seguinte, após o café, quando ela saiu, com a sacola das compras no braço, examinou a carta: estava no mesmo lugar, parecia intacta. Abriu-a e procurou o pequeno fio de cabelo, não estava mais.

Então, revolveu no fundo das gavetas. Não tinha tempo, ela voltaria logo. No emprego, imaginava os passos de sua mulher pela casa. Quando a encontra no portão descobre nos seus olhos o reflexo da gravata azul do outro. Observando-a, de manhã, na penumbra do quarto, suspeita que as sombras no seu gordo corpo nu são de abraços do outro. Ele quer erguer-lhe o cabelo da nuca para ver se não tem a tatuagem dos dentes do outro. Na sua ausência, abre o guarda-roupa da mulher, cobre a cabeça com seus vestidos e cheira-os. Espreita os homens que passam diante da casa, atrás da cortina. Conhece agora o leiteiro e o padeiro, jovens, de olhos falsos.

Pode contar, na volta do emprego, quais foram os passos da mulher pela casa: se os móveis têm pó ou não, se a terra nos vasos de flores está molhada ou seca... Ele marca o tempo pela toalhinha. Sabe quantas linhas a mulher tricoteou. Sabe quando ela erra os pontos e deve desmanchá-los, antes mesmo de contá-los com a ponta da agulha.

Nada tem contra ela e o homem ficou silencioso. Come de cabeça baixa, sem falar. Lê o seu jornal, de noite e, em vez de ler para a mulher as notícias divertidas, como antes, lê apenas em voz alta as histórias de crimes. Enquanto lê, vigia o rosto curvado da mulher, na sombra azul do abajur. Se ouve passos de noite na calçada vai espreitar pela janela, de pijama e pés descalços; a cortina está amarrotada no canto pela sua mão crispada.

Houve somente uma cena entre eles, quando comprou um revólver. Ele o guardou sobre o guarda-roupa da mulher. Ela perguntou: você está louco, meu velho? Para que um revólver? Há muito ladrão nesta cidade. E olhou como se ela fosse um ladrão. Meu Deus, a mulher gemeu, você não pensa que eu... e quis abraçá-lo, com as mãos estendidas, quando o homem, para desvencilhar-se, empurrou-a e, como não o soltasse, lhe golpeou o rosto com toda a força. Ela cobriu o rosto com uma das mãos e com a outra pegou a sua, ainda fechada. Pensou que fosse mordê-lo. Ela lhe beijou a mão, antes que pudesse retirá-la. O homem sentiu pena, mas não lhe pediu perdão. Foi a única cena e, depois dela, a mulher aceitou tudo.

Ele quer saber o destino de velhos presentes, de jóias sem valor (desconfia que o outro é moço, ela deve dar-lhe presentes). Quem sabe, faça toalhinhas de tricô, para o outro vender. No serão, os dois sob o abajur, em vez de ler o jornal, vigia a mulher - o rosto, o vestido, as mãos - atrás dos dedos do outro. Crava-lhe os olhos na mão (as mãos que acariciam e não têm memória dos carinhos) até que ela erra o ponto, tem que desmanchar a linha.

Às vezes, quando chega em casa ela não o espera mais no portão, (porque finge não vê-la e passando por ela sobe os dois degraus, como se estivesse ali no portão à espera do outro) a casa está silenciosa, ele aspira os odores no ar, passa a mão sobre os móveis, apalpa entre os dedos a terra dos vasos. Adivinha onde a mulher está. Esconde-se dele, nos cantos escuros da casa e dá-lhe as costas, para que não veja os seus olhos vermelhos. Eram olhos azuis que sorriam a vida inteira para ele. Estão vermelhos de chorar pelo outro, por não ter podido vê-lo.

Uma noite, acordou e achou o outro travesseiro vazio, ainda quente da cabeça da mulher. Sob a porta, viu uma luz na sala. Pé ante pé, agarrou o revólver sobre o guarda-roupa e abriu de súbito a porta. Sob o abajur, a mulher fazia o seu tricô - sempre a toalhinha para a mesa da sala. Era ela Penélope, desfazendo na noite o trabalho executado de dia? Tecia a mortalha para o marido antes de casar-se com o outro?

Erguendo os olhos da toalhinha, viu o revólver na mão do homem, mas não disse nada. As suas agulhas batiam uma na outra, embora não tricoteasse e estivesse olhando para o homem. Ele voltou para o quarto, fechando a porta, não sabia por que não a matava.

No meio de uma refeição, ele a interroga sobre seus velhos namorados, do tempo de solteira, de um primo que queria casar com ela. Ela responde, enquanto ele aprova com a cabeça, fumando seu cachimbo, de olhos meio fechados. Agora sabe, tem todas as provas: ela o enganava com o primo. Se não fosse culpada, protestaria, fugiria de casa. Mas não: ouve tudo, conta tudo. Se ela se contradiz, corrige-a batendo com a ponta do cachimbo apagado no seu prato.

- Mas faz tanto tempo, meu...

Não tem coragem de chamá-lo "meu velho". Enquanto ela vai, com sua sacola, de cabeça baixa, fazer suas compras, o velho revolve as cinzas do fogão, para saber se ela queima os bilhetes do outro.

De súbito, no meio da leitura em voz alta de um crime, ele tira as cartas do bolso - são muitas, uma de cada sábado - e lê, uma por uma, como se fossem todas diferentes. Guarda-as de novo no bolso, porque não se separa delas, e prossegue a leitura do jornal em voz alta.

Achou, numa caixa de sapatos, cheia de fotografias, uma dela, menina, com o primo, o outro. Ele colocou a fotografia sobre a mesa da sala, de pé, contra um vaso de cacto. Assim que a mulher abriu a porta, olhou para a mesa e viu a fotografia. Ela começou a chorar. Tinha pacotes nas mãos e não podia esconder as lágrimas, nem enxugá-las. Olhava para o homem e para a fotografia, e chorava. Ela nada disse, aquelas lágrimas eram de culpada. O homem se deu por satisfeito. Eram provas que reunia, queria ser justo.

O passeio aos sábados era seu único vício de velhos. Ela se arrumava, punha seu melhor vestido, seu chapéu fora de moda. Fumando seu cachimbo atrás da janela, deixou-a que se arrumasse. Ela sentou-se na poltrona da sala, com seu chapéu de flores na cabeça, a bolsa no braço, e ficou esperando. Não se virou, enquanto ela esperava, com as mãos cruzadas. Ele então se voltou, olhou o chapéu, a bolsa, as mãos vazias da toalhinha e disse:

- Meu Deus, que chapéu feio... Não posso sair na rua com uma mulher que usa um chapéu desses!

Abriu o jornal e começou a ler as notícias policiais em voz alta, enquanto a mulher ouvia, sem tirar o chapéu, já com o tricô na mão. Aquele sábado não veio nenhuma carta. Foi até a porta, abriu-a, olhou para o capacho e para a mulher. Era vigiado, ele também, o corno manso, pelo outro. Sentia falta daquela carta. Era uma correspondência inteligente entre outro e ele, um jogo, como tinha dito uma vez à mulher. Um dia, o outro revelaria tudo, era preciso não interromper as cartas. Então, continuaram a sair nos sábados.

Eles saem, dá o braço à mulher no portão e não falam durante todo o passeio, passam diante das vitrinas sem parar. Como é gorda, ela cansa mais depressa, mas não se queixa, nem ele diminui o passo. Na volta, sob a porta, junta a carta azul e, antes de abri-la, passeia com ela na mão pela casa, pára diante da mulher, de rosto azul sob o abajur. Ele a lê escondido, de porta fechada, no banheiro, e guarda com um cabelo no envelope e deixa sobre a mesa. Em todas encontra depois o cabelo, a mulher nunca mais leu as cartas. Ou - ele pensa, com uma nova ruga na testa - descobriu o seu segredo e lê as cartas substituindo o cabelo por um dos dela?

Uma tarde, de volta do emprego, abriu a porta e aspirou o ar, como fazia antes de entrar. Passou a mão no canto dos móveis: pó. Apalpou a terra dos vasos: seca. O coração batia na ponta dos pés, enquanto avançava pela casa. Entrou, ante pé, no quarto escuro e acendeu a luz: a mulher estava deitada na cama de casal, de chapéu de flores na cabeça, a bolsa no braço, segurando o revólver na mão direita. Ele não pôde fechar os seus olhos, outra vez azuis. Eles sorriam de novo para o velho.

Não sentiu piedade, estava vingado. Chamou a polícia que o deixou em paz, estava no emprego na hora em que a mulher se suicidou. Quanto o enterro saiu, os vizinhos repararam que, embora fosse um casal tão unido de velhos, ele não chorou nenhuma vez. Segurou na alça do caixão e ajudou a empurrá-lo no túmulo, (como fazem os velhos, ele o tinha construído há anos) e antes mesmo de o pedreiro, erguer a sua parede de tijolos, ele deu as costas para a mulher e foi-se embora.

Quando entrou em casa, reparou em qualquer coisa estranha: a toalhinha sobre a mesa era nova. Era a toalhinha de tricô! A mulher esperou terminar a toalhinha antes de se matar. Ela trançara sua própria mortalha. Penélope concluiu sua obra, o marido chegou em casa. Ele a tocou, na ponta dos dedos, estava lavada e engomada. Não tinha mancha de lágrimas, nem ruga de dedos trêmulos. Acendeu a lâmpada do abajur azul. Sobre a poltrona da mulher, diante da sua, vê as agulhas de tricô cruzadas na sua cestinha.

Era sábado, o velho pensou. Nada tinha a recear, nenhuma carta chegaria. Ninguém mais podia fazer-lhe mal. A mulher estaca morta, pagara pelo seu crime. E, então, pensou que a mulher podia ser inocente. A carta poderia ser jogada sob todas as portas da rua. Ou ser atirada sob a sua porta, por engano, eram todas as casas iguais. Havia um meio de saber: se fossem destinadas a ele, com a mulher morta, não viriam nunca mais. Não as acharia sob a porta, encostadas no capacho. Aquela fora a última: o outro teria visto, de tarde, a casa de portas e janelas abertas para sair o enterro. Teria visto ao crepúsculo o carro funerário saindo do portão. Teria seguido, ninguém sabe, o enterro, era um dos que o acotovelavam para ver o caixão entrar, rangendo sobre os grãos de areia, no túmulo.

O velho saiu de casa. Andava com um braço dobrado, pelo hábito de dá-lo à mulher por tantos anos. Diante de uma vitrina de vestidos, alguns brancos, sentiu no braço a mão de sua mulher. Ele tinha razão, aquela carta fora a última. Nunca mais viria outra. Subiu os dois degraus da escadinha, parando com o pé no ar diante da porta. Eu fui justo, ele se disse e abriu a porta para ver a carta azul.

7 comentários:

  1. Uma vela para Dário é um primor.

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  2. Estou aqui curiosíssimo pra ver o exercício de imaginação que jornalistas e cidadãos anônimos da direita vão fazer pra tentar convencer que quem foi flagrado vendendo o que não lhe pertencia não é LADRÃO...

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    1. Vamos esperar um pouco, não tenha ejaculação precoce meu caro...
      Já foram as joias dos Árabes, aa pedras preciosas de 400 pilas, então é melhor aguardar um pouco.

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    2. O fanatismo cega. É bem capaz desses sujeitos doarem mais 17 milhões via pix para ajudar o mito a pagar suas despesas jurídicas, pois o coitadinho é só um homem simples que come pão com leite Moça, que anda de reloginho de plástico..Por isso, é perseguido pela extrema imprensa e pelo careca maldoso do STF,

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    3. A verdade é que o ladrão tem 10 dedos, e não nove.

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    4. Ladrão nº 1 é o Nine.

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  3. Aguardem, depois a gente conversa ...

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