Sexta, 1º de setembro de 2023

 

NÃO LEVE A SÉRIO
QUEM NÃO SORRI!

 


NÃO SEJA GUERREIRO.
SEJA DA PAZ




Escreva apenas para








FORA LULA GAGÁ!!






Dois minutos com prévidi

- ENTRAMOS NO MÊS 9 DO GOVERNO DILMO.
E DAÍ?


- NÃO ESQUEÇAM!! AO VISITAR O CANAL DO PRÉVIDI (@JLPREVIDI NO YOUTUBE) CLIQUE EM INSCREVER-SE.

AGRADECIDOI!! AH, E SE GOSTAR, TECLA AÍ:


especial

Nesta sexta, uma cesta
de
 CAIO FERNANDO ABREU!  



UM DOS MAIORES
CONTISTAS BRASILEIROS
(e ídolo de várias gerações)


Muito prazer, meu nome é Caio Fernando Abreu. Faço literatura, teatro, música, cinema e crítica. Mas de amor é o que eu gosto mais.


Mas difícil é continuar vivendo. Eu continuo. Não sei se gosto, mas tenho uma curiosidade imensa pelo que vai me acontecer, pelas pessoas que vou conhecer, por tudo que vou dizer e fazer e ainda não sei o que será.


E se você acha que meu orgulho é grande, é porque nunca viu o tamanho da minha fé.


Tô tirando férias, dando um tempo disso. Chega de amar, chega de me doar, chega de me doer.













Caio Fernando Abreu (Caio Fernando Loureiro de Abreu) nasceu em  em Santiago do Boqueirão-RS, em 12 de setembro de 1948. Foi jornalista, dramaturgo e um dos maiores escritores do Brasil.

Caio e o irmão José

Apontado como um dos expoentes de sua geração, a obra de Caio, escrita num estilo único, fala de sexo, medo,  morte e, principalmente, solidão. Apresenta uma visão dramática do mundo moderno e é considerado um "fotógrafo da fragmentação contemporânea".

Caio Fernando Abreu estudou Letras e Artes Cênicas na UFRGS. Abandonou ambos os cursos para trabalhar como jornalista de revistas de entretenimento, tais como Nova, Manchete, Veja e Pop, além de colaborar no Correio do Povo, Zero Hora, Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo.

Em 1968, perseguido pela polícia política, refugiou-se no sítio de uma amiga, a escritora Hilda Hilst, em Campinas, São Paulo. No início da década de 1970, ele se exilou por um ano na Europa, morando na Espanha, Suécia, Inglaterra e França.


Em 1971, no Rio de Janeiro, fez parte de uma comunidade hippie.

Caio e Cazuza

Caio Fernando Abreu era homossexual, mas não gostava de rótulos. Em crônica de 1987, no jornal O Estado de São Paulo, escreveu:
Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade — voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. (É curioso, e revelador, observar que quando Gore Vidal vem ao Brasil, toda a imprensa se refere a ele como “o escritor homossexual”, mas estou certo que se viesse, por exemplo, Norman Mailer, ninguém falaria do “escritor heterossexual”.

Em 1974, Caio Fernando Abreu retornou a Porto Alegre.

  
Em 1983, mudou-se para o Rio de Janeiro e, em 1985, para São Paulo. A convite da Casa dos Escritores Estrangeiros, ele voltou à França em 1994, regressando ao Brasil no mesmo ano, ao descobrir-se portador de HIV. Era declaradamente homossexual.

Um ano depois, Caio Fernando Abreu voltou a viver novamente com seus pais, tempo durante o qual se dedicaria à jardinagem, cuidando de roseiras. 


A residência onde Caio Fernando viveria seus últimos anos de vida foi demolida na penúltima semana de junho de 2022, apesar da mobilização popular contra a destruição. Ficava no número 12 da Rua Doutor Oscar Bittencourt, no bairro Menino Deus de Porto Alegre.


Objetos que pertenceram ao escritor foram guardados no Espaço de Documentação e Memória Cultural da PUC-RS. A coleção inclui manuscritos, recortes de jornais, originais de livros e outros documentos.


Seu primeiro romance, Limite branco (1970), já possui as marcas que iriam acompanhar sua trajetória literária: a angústia diante do devir e a morte. Segundo sua perspectiva literária, a vida deve ser buscada continuamente. 

Caio Fernando Abreu viveu intensamente a época da ditadura, em suas obras literárias, o autor buscava inspiração em momentos importantes de sua vida, fazia uma releitura rápida, porém despercebida de seu modo de pensar, a maioria de suas criações e personagens retratavam um modo cinzento e triste de viver, na busca inquietante pela felicidade.


Em 2018, a editora Companhia das Letras reuniu no livro "Contos Completos". O volume abarca seis títulos — Inventário do Ir-remediável (1970), O Ovo Apunhalado (1975), Pedras de Calcutá (1977), Morangos Mofados (1982), Os Dragões Não Conhecem o Paraíso (1988) e Ovelhas Negras (1995) —, além de dez contos avulsos, sendo três deles inéditos em livro.


A obra Cartas foi publicada, pela primeira vez, em 2002. Ela contém uma seleção de cartas de Caio feita por Italo Moriconi. Reúne a correspondência de 1965 e 1996. Durante todo esse tempo, ele se correspondeu com várias pessoas.
Algumas delas: Maria Adelaide Amaral, João Silvério Trevisan e Hilda Hilst, o ator Marcos Breda e a cantora Adriana Calcanhotto, para citar alguns nomes conhecidos. Também escrevia para seus pais: Zaél e Nair Abreu.
Em uma carta de 10 de março de 1965, o adolescente de 16 anos escrevia para os pais:
Estive muito doente, tive que passar uns dias na enfermaria. Quero que a senhora imagine o que senti ao me ver sozinho naquele quarto frio e enorme. Cada passo que ouvia no corredor pensava que era a senhora chegando; cada riso de criança que vinha lá de fora eu julgava ser da Márcia ou da Cláudia. Confesso que tive vontade (e tenho) de morrer.
[...]
Os guris daqui me tratam muito mal, vivo sozinho. À noite choro muito. Só penso em ir embora daqui; maldita a hora em que eu quis vir para cá!
O jovem escritor mostra seu sofrimento ao ficar distante da família, enquanto estudava em um colégio interno. Além dessa, outras tantas cartas revelam detalhes da vida e do cotidiano, além de seus pensamentos sobre vários assuntos e de sua visão acerca da existência.
Já em uma de suas últimas cartas, escrita em 1º de janeiro de 1996, para o tradutor Gerd Hilger, ele fala de sua luta contra a aids:
Andei mal: duas semanas no hospital para extirpar a vesícula. 3 cirurgias, oito transfusões de sangue, pressão a três. A cara da morte (parece com Ute Lemper!). Sobrevivi. Agora me recupero. Fraco fisicamente, fortíssimo no espírito. Hoje recomecei a combinação AZT-3TC. Vamos lá, tenho fé.

Alice Ruiz e Caio recebendo
o Jabuti de Poesia e Contos de 1988

Conquistou três Prêmios Jabuti de Literatura - 1996, 1989 e 1984. Inventário do ir-remediável recebeu o Prêmio Fernando Chinaglia.

EXPOSIÇÃO "DOCES MEMÓRIAS", SOBRE
CAIO F NO MUSEU NACIONAL DE BRASÍLIA.

Morreu em 25 de fevereiro de 1996, no Hospital Mãe de Deus em Porto Alegre. Seus restos mortais estão no Cemitério São Miguel e Almas.



Nos últimos tempos, quando não conseguia mais escrever, ele ia para o jardim cuidar das rosas. Ia cuidar da vida: tirar da terra a vida – e o Caio morrendo. Fazer desabrochar a flor – e o Caio morrendo. Num planeta enfermo como o nosso, num país, numa sociedade onde impera a boçalidade, a volúpia materialista, foi magnífico contar com o Caio.
Lygia Fagundes Telles, em homenagem ao amigo Caio, quando de seu falecimento



Contos e novelas 
Inventário do ir-remediável (1970)
O ovo apunhalado (1975)
Pedras de Calcutá (1977)
Morangos mofados (1982)
Triângulo das águas (1983)
Os dragões não conhecem o paraíso (1988)
Ovelhas negras (1995)
Estranhos estrangeiros (1996)

Romances
Limite branco (1971)
Onde andará Dulce Veiga? (1990)

Obras infantis
As frangas (1988)
Girassóis (1997)
A comunidade do arco-íris (2013)

Teatro
Teatro completo (1997)

Crônicas
Pequenas epifanias (1996)
A vida gritando nos cantos (2012)

Correspondência
Cartas (2002)

Poesia
Poesias nunca publicadas de Caio Fernando Abreu (2012)


Não se preocupe, não tenha pressa. O que é seu, encontrará um caminho para chegar até você. Deus não demora, Ele capricha!


Caio, um ídolo

Antes de conversar com ele algumas vezes, conheci alguns livros e contos em jornais e revistas. Tornei-me um consumidor de seus escritos porque apreciava a forma com que construía as frases. Me dava a impressão de que ele passava um bom tempo tentando encontrar as palavras certas. Por isso seu texto era perfeito, limpo e, especialmente, simples.

Não me cobrem precisão de datas. Os fatos aconteceram há muito tempo.

Em 1974 entrei na Filosofia da UFRGS e me sentia fora do mundo por desconhecer aquele escritor que todos falavam - e recomendavam. Estava ainda em recuperação de um acidente de carro, difícil de andar. Fui até uma Sulina e pedi os livros do Caio.

Só tinha sentido alegria ao ler Erico e Josué, para ficarmos na província. As frases que o Caio produzia não tinham similar.

Aí li que seria lançado uma coletânea de contos. Bah, no dia vi de longe a figura esguia do Caio. Uauuu!!! Quando fui pegar seu autógrafo não lembro o que disse e devo ter ficado num vermelhão. Ele sorriu, me deu a mão e eu saí meio atordoado.

Tive oportunidade de falar com ele quando um pessoal se reunia para lançar o Teia 2. Acredito que foi o Eduardo San Martin, um amigo da Famecos, que me levou no apartamento do Alberto Crusius, onde eram feitas as reuniões. Aliás, reuniões infindáveis para escolher "os eleitos" para o livro.

Uma das decisões tomadas na presença do Caio foi de que os participantes da primeira coletânea não entrariam nessa. Assim nem Caio e nem Nei Duclós seriam nossos parceiros.

Entrei no Teia 2 com dois contos, que o Antonio Hohfeld, no Caderno de Sábado do Correio do Povo classificou como "nihilistas".

No noite do lançamento,  improvisada no último dia da Feira do Livro de Porto Alegre, terminamos na Esquina e o Caio na mesma mesa!!

Nessa época a Companhia das Letras lançou "Assim Escrevem os Gaúchos", com nomes consagrados. E incumbiu o jornalista e escritor Janer Cristaldo de escolher um determinado número de inéditos para uma edição do "Assim...".

Não lembro o motivo, mas o Janer foi substituído pelo Caio. Pô, eu já estava escolhido para o livro e teria quew passar pelo crivo do meu ídolo. 

Um dia estava entrando na Livraria do Globo e estava saindo o ... Caio. Acreditem, ele me cumprimentou e falou o "Prévidi"!! Perguntei sobre o "Assim...".

- Você é um dos poucos que ficou da lista do Janer.

Uau!!

Aí a minha "vida literária" foi interrompida porque tinha que ganhar dinheiro. Depois de bancário comecei como jornalista, ainda estando na Faculdade. E assim foi até eu lançar o meu primeiro livro "Tempos do Róseo - Histórias de Jornalistas", em 2003.

Encontrei o Caio outras vezes e ele sempre cordato e atencioso.

E, claro, li todos os seus livros.


Soltei o mundo para segurar sua mão.



Dois filmes



Discretamente, enviei sinais de socorro aos amigos. Ninguém ajudou. Me virei sozinho. Isso me endureceu um pouco mais.



A FAMOSA TRETA
ENTRE CAIO E RACHEL DE QUEIROZ

Foi num Roda Viva. Vale a pena assistir todo programa.
Se não tiver tempo, a "briga" começa no 5.56.
Depois no 27.17, 31.45, 44.03, 48.21 e 1.04.24.



Rezo a Deus, não pedindo cargas mais leves e sim ombros mais fortes.


Sargento Garcia

À memória de Luiza Felpuda

1

– Hermes.. ― O rebenque estalou contra a madeira gasta da mesa.

Ele repetiu mais alto, quase gritando, quase com raiva: ― Eu chamei Hermes. Quem é essa lorpa?

Avancei do fundo da sala.

– Sou eu.

– Sou eu, meu sargento. Repita.

Os outros olhavam, nus como eu. Só se ouvia o ruído das pás do ventilador girando enferrujadas no teto, mas eu sabia que riam baixinho, cutucando-se excitados. Atrás dele, a parede de reboco descascado, a janela pintada de azul- marinho aberta sobre um pátio cheio de cinamomos caiados de branco até a metade do tronco.

Nenhum vento nas copas imóveis. E moscas amolecidas pelo calor, tão tontas que se chocavam no ar, entre o cheiro da bosta quente de cavalo e corpos sujos de machos. De repente, mais nu que os outros, eu: no centro da sala. O suor escorria pelos sovacos.

– Ficou surdo, idiota?

– Não. Não, seu sargento.

– Meu sargento.

– Meu sargento.

– Por que não respondeu quando eu chamei?

– Não ouvi. Desculpe, eu…

– Não ouvi, meu sargento. Repita.

– Não ouvi. Meu sargento.

Parecia divertido, o olho verde frio de cobra quase oculto sob as sobrancelhas unidas em ângulo agudo sobre o nariz. Começava a odiar aquele bigode grosso como um manduruvá cabeludo rastejando em volta da boca, cortina de veludo negro entreaberta sobre os lábios molhados.

– Tem cera nos ouvidos, pamonha?

Olhou em volta, pedindo aprovação, dando licença. Um alívio percorreu a sala. Os homens riam livremente agora. Podia ver, à minha direita, o alemão de costela quebrada, a ponta quase furando a barriga sacudida por um riso banguela. E o saco murcho do crioulo parrudo.

– Não, meu sargento.

– E no rabo?

Surpreso e suspenso, o coro de risos. As pás do ventilador voltaram a arranhar o silêncio, feito filme de mocinho, um segundo antes do tiro. Ele olhou os homens, um por um. O riso recomeçou, estridente. A ponta da costela vibrava no ar, um acidente no roça com minha ermón. Imóveis, as folhas bem de cima dos cinamomos. O saco murcho, como se não houvesse nada dentro, sou faixa preta, morou?
Uma mosca esvoaçou perto do meu olho. Pisquei.

– Esquece. E não pisca, bocó. Só quando eu mandar.

Levantou-se e veio vindo na minha direção. A camiseta branca com grandes manchas de suor embaixo dos braços peludos, cruzados sobre o peito, a ponta do rebenque curto de montaria, ereto e tenso, batendo ritmado nos cabelos quase raspados, duros de brilhantina, colados ao crânio. Num salto, o rebenque enveredou em direção à minha cara, desviou-se a menos de um palmo, zunindo, para estalar com força nas botas. Estremeci. Era ridícula a sensação de minha bunda exposta, branca e provavelmente trêmula, na frente daquela meia dúzia de homens pelados. O manduruvá contraiu-se, lesma respingada de sal, a cortina afastou-se para um lado. Um brilho de ouro dançou sobre o canino esquerdo.

– Está com medo, molóide?

– Não, meu sargento. É que.

O rebenque estalou outra vez na bota. Couro contra couro. Seco. A sala inteira pareceu estremecer comigo. Na parede, o retrato do marechal Castelo Branco oscilou. Os risos cessaram. Mas junto com o zumbido do sangue quente na minha cabeça, as pás ferrugentas do ventilador e o vôo gordo das moscas, eu localizava também um ofegar seboso, nojento. Os outros esperavam. Eu esperava. Seria assim, um cristão na arena? pensei sem querer. O leão brincando com a vítima, patas vadias no ar, antes de desferir o golpe mortal.

– Quem fala aqui sou eu, correto?

– Correto, sargento. Meu sargento.

– Limite-se a dizer sim, meu sargento ou não, meu sargento.

Correto?

– Sim, meu sargento.

Muito perto, cheiro de suor de gente e cavalo, bosta quente, alfafa, cigarro e brilhantina. Sem mover a cabeça, senti seus olhos de cobra percorrendo meu corpo inteiro vagarosamente. Leão entediado, general espartano, tão minucioso que podia descobrir a cicatriz de arame farpado escondida na minha coxa direita, os três pontos de uma pedrada entre os cabelos, e pequenas marcas, manchas, mesmo as que eu desconhecia, todas as verrugas e os sinais mais secretos da minha pele. Moveu o cigarro com os dentes. A brasa quente passou raspando junto à minha face. O mamilo do peito saliente roçou meu ombro. Voltei a estremecer.

– Mocinho delicado, hein? É daqueles bem-educados, é? Pois se te pego num cortado bravo, tu vai ver o que é bom pra tosse, perobão.

Os homens remexiam-se, inquietos. Romanos, queriam sangue. O rebenque, a bota, o estalo.

– Sen-tido!

Estiquei a coluna. O pescoço doía, retesado. As mãos pareciam feitas apenas de ossos crispados, sem carne, pele nem músculos. Pisou o cigarro com o salto da bota. Cuspiu de lado.

– Descan-sar!

Girou rápido sobre os calcanhares, voltando para a mesa. Cruzei as mãos nas costas, tentando inutilmente esconder a bunda nua. Além da copa dos cinamomos, o céu azul não tinha nenhuma nuvem. Mas lá embaixo, na banda do rio, o horizonte começava a ficar avermelhado.

Com um tapa, alguém esmagou uma mosca.

– Silêncio, patetas!

Olhou para o meu peito. E baixou os olhos um pouco mais.

– Então tu é que é o tal de Hermes?

– Sim, meu sargento.

– Tem certeza?

– Sim, meu sargento.

– Mas de onde foi que tu tirou esse nome?

– Não sei, meu sargento.

Sorriu. Eu pressenti o ataque. E quase admirei sua capacidade de comandar as reações daquela manada bruta da qual, para ele, eu devia fazer parte. Presa suculenta, carne indefesa e fraca. Como um idiota, pensei em Deborah Kerr no meio dos leões em cinemascope, cor de luxe, túnica branca, rosas nas mãos, um quadro antigo na casa de minha avó, Cecília entre os leões, ou seria Jean Simmons? figura de catecismo, “os-cristãos-eram-obrigados-a-negar-sua-fé- sob-pena-de-morte”, o padre Lima fugiu com a filha do barbeiro, que deve ter virado “mula-sem-cabeça”, a filha, não o padre, nem o barbeiro. O silêncio crescendo. Um cavalo esmolambado cruzou o espaço vazio da janela, palco, tela, minha cabeça galopava, Steve Reeves ou Victor Macture, sozinho na arena, peitos suados, o mártir, estrangulando o leão, os cantos da boca, não era assim, “as- comissuras-dos-lábios-volta-das-para-baixo-num-esforço-hercúleo”, o trigo venceu a ferocidade do monstro de guampas. A mosca pousou bem na ponta do meu nariz.

– Por acaso tu é filho das macegas?

Minha cara incendiava. Ele apagou o cigarro dentro do pequeno capacete militar invertido, sustentado por três espingardas cruzadas. E me olhou de frente, pela primeira vez, firme, sobrancelhas agudas sobre o nariz, fundo, um falcão atento à presa, forte. A mosca levantou vôo da ponta do meu nariz.

Não me fira, pensei com força, tenho dezessete anos, quase dezoito, gosto de desenhar, meu quarto tem um Anjo da Guarda com a moldura quebrada, a janela dá para um jasmineiro, no verão eu fico tonto, meu sargento, me dá assim como um nojo doce, a noite inteira, todas as noites, todo o verão, vezenquando saio nu na janela com uma coisa que não entendo direito acontecendo pelas minhas veias, depois abro As mil e uma noites e tento ler, meu sargento, sois um bom dervixe, habituado a uma vida tranqüila, distante dos cuidados do mundo, na manhã seguinte minha mãe diz sempre que tenho olheiras, e bate na porta quando vou ao banheiro e repete, repete que aquele disco da Nara Leão é muito chato, que eu devia parar de desenhar tanto, porque já tenho dezessete, quase dezoito, e nenhuma vergonha na cara, meu sargento, nenhum amigo, só esta tontura seca de estar começando a viver, um monte de coisas que eu não entendo, todas as manhãs, meu sargento, para todo o sempre, amém.

Feito cometas, faíscas cruzaram na frente dos meus olhos. Tive medo de cair. Mas as folhas mais altas dos cinamomos começaram a se mover. O sol quase caindo no Guaíba. E não sei se pelo olhar dele, se pelo nariz livre da mosca, se pela minha história, pela brisa vinda do rio ou puro cansaço, parei de odiá-lo naquele exato momento. Como quem muda uma estação de rádio. Esta, sentia impreciso, sem interferências.

– Pois, seu Hermes, então tu é o tal que tem pé chato, taquicardia e pressão baixa? O médico me disse. Arrimo de família, também?

– Sim, meu sargento ― menti apressado, aquele médico amigo de meu pai. Uma suspeita cruzou minha cabeça, e se ele descobrisse? Mas tive certeza: ele já sabia. O tempo todo. Desde o começo. Movimentei os ombros, mais leves. Olhei fundo no fundo frio do olho dele.

– Trabalha?

– Sim, meu sargento ― menti outra vez.

– Onde?

– Num escritório, meu sargento.

– Estuda?

– Sim, meu sargento.

– O quê?

– Pré-vestibular, meu sargento.

– E vai fazer o quê? Engenharia, direito, medicina?

– Não, meu sargento.

– Odontologia? Agronomia? Veterinária?

– Filosofia, meu sargento.

Uma corrente elétrica percorreu os outros. Esperei que atacasse novamente. Ou risse. Tornou a me examinar lento. Respeito, aquilo, ou pena? O olhar se deteve, abaixo do meu umbigo. Acendeu outro cigarro, Continental sem filtro, eu podia ver, com o isqueiro em forma de bala.

Espiou pela janela. Devia ter visto o céu avermelhado sobre o rio, o laranja do céu, o quase roxo das nuvens amontoadas no horizonte das ilhas. Voltou os olhos para mim. Pupilas tão contraídas que o verde parecia vidro liso, fácil de quebrar.

– Pois, seu filósofo, o senhor está dispensado de servir à pátria. Seu certificado fica pronto daqui a três meses. Pode se vestir. ― Olhou em volta, o alemão, o crioulo, os outros machos. ― E vocês, seus analfabetos, deviam era criar vergonha nessa cara porca e se mirar no exemplo aí do moço. Como se não bastasse ser arrimo de família, um dia ainda vai sair filosofando por aí, enquanto vocês vão continuar pastando que nem gado até a morte.

Caminhei para a porta, tão vitorioso que meu passo era uma folha vadia, dançando na brisa da tardezinha. Abriram caminho para que eu passasse. Lerdos, vencidos. Antes de entrar na outra sala, ouvi o rebenque estalando contra a bota negra.

– Sen-tido! Estão pensando que isso aqui é o “cu-da-mãe-joana”?

2

Parado no porão de ferro, olhei direto para o sol. Meu truque antigo: o “em- volta” tão claro que virava seu oposto e se tornava escuro, e enchendo-se de sombras e reflexos que se uniam aos poucos, organizando-se em forma de objetos ou apenas dançando soltos no espaço à minha frente, sem formar coisa alguma. Eram esses os que me interessavam, os que dançavam vadios no ar, sem fazer parte das nuvens, das árvores nem das casas. Eu não sabia para onde iriam, depois que meus olhos novamente acostumados à luz colocavam cada coisa em seu lugar, assim: casa ― paredes, janelas e portas; árvores ― tronco, galhos e folhas; nuvens ― fiapos estirados ou embolados, vezenquando brancos, vezenquando coloridos. Cada coisa era cada coisa e inteira, na união de todas as suas infinitas partes. Mas e as sombras e os reflexos, esses que não se integravam em forma alguma, onde ficavam guardados? Para onde ia a parte das coisas que não cabia na própria coisa? Para o fundo do meu olho, esperando o ofuscamento para vir à tona outra vez? Ou entre as próprias coisas-coisas, no espaço vazio entre o fim de uma parte e o começo de outra pequena parte da coisa inteira? Como um por trás do real, feito espírito de sombra ou luz, claro- escuro escondido no mais de- dentro de um tronco de árvore ou no espaço entre um tijolo e outro ou no meio de dois fiapos de nuvem, onde? As cigarras chiavam no pátio de cinamomos caiados.

Respirei fundo, erguendo um pouco os ombros para engolir mais ar. Meu corpo inteiro nunca tinha me parecido tão novo. Comecei a descer o morro, o quartel ficando para trás. Bola de fogo suspensa, o sol caía no rio. Sacudi um pé de manacá, a chuva adocicada despencou na minha cabeça. Na primeira curva, o Chevrolet antigo parou a meu lado.

Como um grande morcego cinza.

– Vai pra cidade?

Como se estivesse surpreso, espiei para dentro. Ele estava debruçado na janela, o sol iluminando o meio sorriso, fazendo brilhar o remendo dourado do canino esquerdo.

– Quer carona?

– Vou tomar o bonde logo ali na Azenha.

– Te deixo lá ― disse. E abriu a porta do carro. Entrei. O cigarro moveu-se de um lado para outro na boca, enquanto a mão engatava a primeira. Um vento entrando pela janela fazia meu cabelo voar. Ele segurou o cigarro, Continental sem filtro, eu tinha visto, entre o polegar e o indicador amarelados, cuspiu pela janela, depois me olhou.

– Ficou com medo de mim?

Não parecia mais um leão, nem general espartano. A voz macia, era um homem comum sentado na direção de seu carro. Tirei do bolso a caixinha de chicletes, abri devagar sem oferecer. Mastiguei. A camada de açúcar partiu-se, um sopro gelado abriu minha garganta. Engoli o vento para que ficasse ainda mais gelada.

– Não sei. ― E quase acrescentei meu sargento. Sorri por dentro. 

– Bom, no começo fiquei um pouco. Depois vi que o senhor estava do meu lado.

– Senhor, não: Garcia, a bagualada toda me chama de Garcia. Luiz Garcia de Souza. Sargento Garcia. ― Simulou uma continência, tornou a cuspir, tirando antes o cigarro da boca. ― Quer dizer então que tu achou que eu estava do teu lado. ― Eu quis dizer qualquer coisa, mas ele não deixou. O carro chegava no fim do morro. ― É que logo vi que tu era diferente do resto. ― Olhou para mim. Sem frio nem medo, me encolhi no banco. ― Tenho que lidar com gente grossa o dia inteiro. Nem te conto. Aí quando aparece um moço mais fino, assim que nem tu, a gente logo vê. ― Passou os dedos no bigode. ― Então quer dizer que tu vai ser filósofo, é? Mas me conta, qual é a tua filosofia de vida?

– De vida? ― Eu mordi o chiclete mais forte, mas o açúcar tinha ido embora.

– Não sei, outro dia andei lendo um cara aí. Leibniz, aquele das mônadas, conhece?

– Das o quê?

– As mônadas. É um cara aí, ele dizia que tudo no universo são. Assim que nem janelas fechadas, como caixas. Mônadas, entende?
Separadas umas das outras. ― Ele franziu a testa, interessado. Ou sem entender nada. Continuei: ― Incomunicáveis, entende? Umas coisas assim meio sem ter nada a ver umas com as outras.

– Tudo?

– É, tudo, eu acho. As casas, as pessoas, cada uma delas. Os animais, as plantas, tudo. Cada um, uma mônada. Fechada.

Pisou no freio. Estendi as mãos para a frente.

– Mas tu acredita mesmo nisso?

– Eu acho que.

– Pois pra te falar a verdade, eu aqui não entendo desses troços.

Passo o dia inteiro naquele quartel, com aquela bagualada mais grossa que dedo destroncado. E com eles a gente tem é que tratar assim mesmo, no braço, trazer ali no cabresto, de rédea curta, senão te montam pelo cangote e a vida vira um inferno. Não tenho tempo pra perder pensando nessas coisas aí de universo. Mas acho bacana. ― A voz amaciou, depois tornou a endurecer. ― Minha filosofia de vida é simples: pisa nos outros antes que te pisem. Não tem essas mônicas daí. Mas tu tem muita estrada pela frente, guri. Sabe que idade eu tenho? ― Examinou meu rosto. Eu não disse nada. ― Pois tenho trinta e três. Do teu tamanho andava por aí meio desnorteado, matando contrabandista na fronteira. O quartel é que me pôs nos eixos, senão tinha virado bandido. A vida me ensinou a ser um cara aberto, admito tudo. Só não agüento comunista. Mas graças a Deus a revolução já deu um jeito nesse putedo todo. Aprendi a me virar, seu filósofo. A me defender no braço e no grito. ― Jogou fora o cigarro. A voz macia outra vez. ― Mas contigo é diferente.

Mastiguei o chiclete com mais força. Agora não passava de uma borracha sem gosto.

– Diferente como?

Ele olhava direto para mim. Embora o vento entrasse pela janela aberta, uma coisa morna tinha se instalado dentro do carro, naquele ar enfumaçado entre ele e eu. Podia haver pontes entre as mônadas, pensei. E mordi a ponta da língua.

– Assim, um moço fino, educado. Bonito. ― Fez uma curva mais rápida. O pneu guinchou. ― Escuta, tu tem mesmo que ir embora já?

– Agora já, já, não. Mas se eu chegar em casa muito tarde minha mãe fica uma fúria.

Mais duas quadras e chegaríamos no ponto do bonde, em frente ao cinema Castelo. Bem depressa, eu tinha que dizer ou fazer alguma coisa, só não sabia o quê, meu coração galopava esquisito, as palmas das mãos molhadas. Olhei para ele. Continuava olhando para mim. As casas baixas da Azenha passavam amontoadas, meio caídas umas sobre as outras, uma parede rosa, uma janela azul, uma porta verde, um gato preto numa janela branca, uma mulher de lenço amarelo na cabeça, chamando alguém, a lomba do cemitério, uma menina pulando corda, os ciprestes ficando para trás. Estendeu a mão. Achei que ia fazer uma mudança, mas os dedos desviaram-se da alavanca para pousar sobre a minha coxa.

– Escuta, tu não tá a fim de dar uma chegada comigo num lugar aí?

– Que lugar? ― Temi que a voz desafinasse. Mas saiu firme.

Aranha lenta, a mão subiu mais, deslizou pela parte interna da coxa. E apertou, quente.

– Um lugar aí. Coisa fina. A gente pode ficar mais à vontade, sabe como é. Ninguém incomoda. Quer?

Tínhamos ultrapassado o ponto do bonde. Bem no fundo, lá onde o riacho encontrava com o Guaíba, só a parte superior do sol estava fora d’água. Devia estar amanhecendo no Japão ― antípodas, mônadas ―, nessas horas eu sempre pensava assim. Me vinha a sensação de que o mundo era enorme, cheio de coisas desconhecidas. Boas nem más.

Coisas soltas feito aqueles reflexos e sombras metidos no meio de outras coisas, como se nem existissem, esperando só a hora da gente ficar ofuscado para sair flutuando no meio do que se podia tocar.

Assim: dentro do que se podia tocar, escondido, vivia também o que só era visível quando o olho ficava tão inundado de luz que enxergava esse invisível no meio do tocável. Eu não sabia.

– Me dá um cigarro ― pedi. Ele acendeu. Tossi. Meu pai com o cinturão dobrado, agora tu vai me fumar todo esse maço, desgraçado, parece filho de bagaceira. A mão quente subiu mais, afastou a camisa, um dedo entrou no meu umbigo, apertou, juntou-se aos outros, aranha peluda, tornou a baixar, caminhando entre as minhas pernas.

– Claro que quer. Estou vendo que tu não quer outra coisa, guri. Pegou na minha mão. Conduziu-a até o meio das pernas dele.

Meus dedos se abriram um pouco. Duro, tenso, rijo. Quase estourando a calça verde. Moveu-se, quando toquei, e inchou mais. “Cavidades-porosas-que-se-enchem-de-sangue-quando-excitadas”. Meu primo gritou na minha cara: maricão, mariquinha, quiáquiáquiá. O vento descabelava o verde da Redenção, os coqueiros da João Pessoa.

Mariquinha, maricão, quiáquiáquiá. E não, eu não sabia.

– Nunca fiz isso. Ele parecia contente.

– Mas não me diga. Nunca? Nem quando era piá? Uma sacanagenzinha ali, na beira da sanga? Nem com mulher? Com china de zona? Não acredito. Nem nunca barranqueou égua? Tamanho homem.

– É verdade.

Diminuiu a marcha. Curvou-se sobre mim.

– Pois eu te ensino. Quer?

Traguei fundo. Uma tontura me subiu pela cabeça. De dentro das casas, das árvores e das nuvens, as sombras e os reflexos guardados espiavam, esperando que eu olhasse outra vez direto para o sol. Mas ele já tinha caído no rio. Durante a noite os pontos de luz dormiam quietos, escondidos, guardados no meio das coisas. Ninguém sabia. Nem eu.

– Quero ― eu disse.

3

Vontade de parar, eu tinha, mas o andar era incontrolável, a cabeça em várias direções, subindo a ladeira atrás dele, tu sabe como é, tem sempre gente espiando a vida alheia, melhor eu ir na frente, fica no portão azul, vem vindo devagar, como se tu não me conhecesse, como se nunca tivesse me visto em toda a tua vida. Como se nunca o tivesse visto em toda a minha vida, seguia aquela mancha verde, mãos nos bolsos, cigarro aceso, de repente sumindo portão adentro com um rápido olhar para trás, gancho que me fisgava. Mergulhei na sombra atrás dele. Subi os degraus de cimento, empurrei a porta entreaberta, madeira velha, vidro rachado, penetrei na sala escura com cheiro de mofo e cigarro velho, flores murchas boiando em água viscosa.

– O de sempre, então? ― ela perguntava, e quase imediatamente corrigi, dentro da minha própria cabeça, olhando melhor e mais atento, ele, dentro de um robe colorido desses meio estofadinhos, cheio de manchas vermelhas de tomate, batom, esmalte ou sangue. ― O senhor, hein, sargento? ― piscou íntimo, íntima, para o sargento e para mim. 

– Esta é a sua vítima?

– Conhece a Isadora?

A mão molhada, cheia de anéis, as longas unhas vermelhas, meio descascadas, como a porta. Apertei. Ela riu.

– Isadora, queridinho. Nunca ouviu falar? Isadora Duncan, a bailarina. Uma mulher finíssima, má-ravilho-sa, a minha ídola, eu adoro tanto que adotei o nome. Já pensou se eu usasse o Valdemir que minha mãezinha me deu? Coitadinha, tão bem-intencionada. Mas o nome, ai, o nome. Coisa mais cafona. Aí mudei. Se Deus quiser, um dia ainda vou morrer estrangulada pela minha própria echarpe. Tem coisa mais chique?

– Bacana ― eu disse.

O sargento ria, esfregando as mãos.

– Não repare, Isadora. Ele está meio encabulado. Diz-que é a primeira vez.

– Nossa. Taludinho assim. E nunca fez, é, meu bem? Nunquinha, jura pra tia? ― A mão no meu ombro, pedra de anel arranhando leve meu pescoço. Revirou os olhos. ― Conta a verdade pra tua Isadora, toda a verdade, nada mais que a verdade. Tu nunca fez, guri? ― Tentei sorrir. O canto da minha boca tremeu. Ele falava sem parar, olhinhos meio estrábicos, sombreados de azul. ― Mas olha, relaxa que vai dar tudo certinho. Sempre tem uma primeira vez na vida, é um momento histórico, queridinho.

Merece até uma comemoração. Uma cachacinha, sargento? Tem aí daquela divina que o senhor gosta.

– O moço tá com pressa.

Isadora piscou maliciosa, os cílios duros de tinta respingando pequenos pontinhos pretos nas faces.

– Pressa, eu, hein? Sei. Não é todo dia que a gente tem carne fresquinha na mesa. De primeira, não é, sargento? ― Ele riu. Ela rodou a chave nas mãos e, por um instante, pensei numa baliza na frente de um desfile de Sete de Setembro, jogando para o alto o bastão cheio de fitas coloridas. ― Tá bem, tá bem. Vou levar os pombinhos para a suíte nupcial. Que tal o quarto 7? Número de sorte, não? Afinal, a primeira vez é uma só na vida. ― Passou por mim, enfiando-se no corredor escuro. ― Tenho certeza que o mocinho vai a-do-rar, ficar freguês de caderno. Ninguém esquece uma mulher como Isadora.

O sargento me empurrou. Entre a farda verde e o robe cheio de manchas, o cheiro de suor e perfume adocicado, imprensado no corredor estreito, eu. Isadora cantava que queres tu de mim que fazes junto a mim se tudo está perdido amor? Um ruído seco, ferro contra ferro. A cama com lençóis encardidos, um rolo de papel higiênico corde-rosa sobre o caixote que servia de mesinha-de- cabeceira. Isadora enfiou a cabeça despenteada pelo vão da porta.

– Divirtam-se, crianças. Só não gritem muito, senão os vizinhos ficam umas feras.

A cabeça desapareceu. A porta fechou. Sentei na cama, as mãos nos bolsos. Ele foi chegando muito perto. O volume esticando a calça, bem perto do meu rosto. O cheiro: cigarro, suor, bosta de cavalo. Ele enfiou a mão pela gola da minha camisa, deslizou os dedos, beliscou o mamilo. Estremeci. Gozo, nojo ou medo, não saberia. Os olhos dele se contraíram.

– Tira a roupa.

Joguei as peças, uma por uma, sobre o assoalho sujo. Deitei de costas. Fechei os olhos. Ardiam, como se tivesse acordado de manhã muito cedo. Então um corpo pesado caiu sobre o meu e uma boca molhada, uma boca funda feito poço, uma língua ágil lambeu meu pescoço, entrou no ouvido, enfiou-se pela minha boca, um choque seco de dentes, ferro contra ferro, enquanto dedos hábeis desciam por minhas virilhas inventando um caminho novo. Então que culpa tenho eu se até o pranto que chorei se foi por ti não sei ― a voz de Isadora vinha de longe, como se saísse de dentro de um aquário, Isadora afogada, a maquiagem derretida colorindo a água, a voz aguda misturada aos gemidos, metendo-se entre aquele bafo morno, cigarro, suor, bosta de cavalo, que agora comandava meus movimentos, virando-me de bruços sobre a cama.

O cheiro azedo dos lençóis, senti, quantos corpos teriam passado por ali, e de quem, pensei. Tranquei a respiração. Os olhos abertos, a trama grossa do tecido. Com os joelhos, lento, firme, ele abria caminho entre as minhas coxas, procurando passagem. Punhal em brasa, farpa, lança afiada. Quis gritar, mas as duas mãos se fecharam sobre a minha boca. Ele empurrou, gemendo. Sem querer, imaginei uma lanterna rasgando a escuridão de uma caverna escondida, há muitos anos, uma caverna secreta. Mordeu minha nuca. Com um movimento brusco do corpo, procurei jogá-lo para fora de mim.

– Seu puto ― ele gemeu. ― Veadinho sujo. Bichinha louca.

Agarrei o travesseiro com as duas mãos, e num arranco consegui deitar novamente de costas. Minha cara roçou contra a barba dele.

Tornei a ouvir a voz de Isadora que mais me podes dar que mais me tens a dar a marca de uma nova dor. Molhada, nervosa, a língua voltou a entrar no meu ouvido. As mãos agarraram minha cintura. Comprimiu o corpo inteiro contra o meu. Eu podia sentir os pêlos molhados do peito dele melando a minha pele. Quis empurrá-lo outra vez, mas entre o pensamento e o gesto ele juntou-se ainda mais a mim, e depois um gemido mais fundo, e depois um estremecimento no corpo inteiro, e depois um líquido grosso morno viscoso espalhou-se pela minha barriga. Ele soltou o corpo. Como um saco de areia úmida jogado sobre mim.

A madeira amarela do teto, eu vi. O fio comprido, o bico de luz na ponta. Suspenso, apagado. Aquele cheiro adocicado boiando na penumbra cinza do quarto.

Quando ele estendeu a mão para o rolo de papel higiênico, consegui deslizar o corpo pela beirada da cama, e de repente estava no meio do quarto enfiando a roupa, abrindo a porta, olhando para trás ainda a tempo de vê-lo passar um pedaço de papel sobre a própria barriga, uma farda verde em cima da cadeira, ao lado das botas negras brilhantes, e antes que erguesse os olhos afundei no túnel escuro do corredor, a sala deserta com suas flores podres, a voz de Isadora ainda mais remota, se até o pranto que chorei se foi por ti não sei, barulho de copos na cozinha, o vidro rachado, a madeira descascada da porta, os quatro degraus de cimento, o portão azul, alguém gritando alguma coisa, mas longe, tão longe como se eu estivesse na janela de um trem em movimento, tentando apanhar um farrapo de voz na plataforma da estação cada vez mais recuada, sem conseguir juntar os sons em palavras, como uma língua estrangeira, como uma língua molhada nervosa entrando rápida pelo mais secreto de mim para acordar alguma coisa que não devia acordar nunca, que não devia abrir os olhos nem sentir cheiros nem gostos nem tatos, uma coisa que deveria permanecer para sempre surda cega muda naquele mais de dentro de mim, como os reflexos escondidos, que nenhum ofuscamento se fizesse outra vez, porque devia ficar enjaulada amordaçada ali no fundo pantanoso de mim , feito bicho numa jaula fedida, entre grades e ferrugens quieta domada fera esquecida da própria ferocidade, para sempre e sempre assim.

Embora eu soubesse que, uma vez despeita, não voltaria a dormir.

Dobrei a esquina, passei na frente do colégio, sentei na praça onde as luzes recém começavam a acender. A bunda nua da estátua de pedra. Zeus, Zeus ou Júpiter, repeti. Enumerei: Palas-Atena ou Minerva, Posêidon ou Netuno, Hades ou Plutão, Afrodite ou Vênus, Hermes ou Mercúrio. Hermes, repeti, o mensageiro dos deuses, ladrão e andrógino. Nada doía. Eu não sentia nada. Tocando o pulso com os dedos podia perceber as batidas do coração. O ar entrava e saía, lavando os pulmões. Por cima das árvores do parque ainda era possível ver algumas nuvens avermelhadas, o rosa virando roxo, depois cinza, até o azul mais escuro e o negro da noite. Vai chover amanhã, pensei, vai cair tanta e tanta chuva que será como se a cidade toda tomasse banho. As sarjetas, os bueiros, os esgotos levariam para o rio todo o pó, toda a lama, toda a merda de todas as ruas.

Queria dançar sobre os canteiros, cheio de uma alegria tão maldita que os passantes jamais compreenderiam. Mas não sentia nada. Era assim, então. E ninguém me conhecia.

Subi correndo no primeiro bonde, sem esperar que parasse, sem saber para onde ia. Meu caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde. Pedi passagem, senti, estiquei as pernas.

Porque ninguém esquece uma mulher como Isadora, repeti sem entender, debruçado na janela aberta, olhando as casas e os verdes do Bonfim. Eu não o conhecia. Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida. Uma vez desperta não voltará a dormir.

O bonde guinchou na curva. Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar.


Se algumas pessoas se afastarem de você, não fique triste, isso é resposta da oração: “livrai-me de todo mal, amém”.


Faz anos navego o incerto

Faz anos navego o incerto.
Não há roteiros nem portos.
Os mares são de enganos
e o prévio medo dos rochedos
nos prende em falsas calmarias.
As ilhas no horizonte, miragens verdes.
Eu não queria nada além
de olhar estrelas
como quem nada sabe
para trocar palavras, quem sabe um toque
com o surdo camarote ao lado
mas tenho medo do navio fantasma
perdido em pontas sobre o tombadilho
dou a face e forma a vultos embaçados.
A lua cheia diminui a cada dia.
Não há respostas.
Queria só um amigo onde pudesse jogar o coração
como uma âncora.


Adriana Franciosi / Agencia RBS

A morte dos girassóis

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaléia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.


2 comentários:

  1. - ENTRAMOS NO MÊS 9 DO GOVERNO DILMO.
    E DAÍ? Lula continua sendo um ladrão condenado!

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