Sexta, 16 de outubro de 2020

 

Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA





Escreva apenas para





especial

Nesta sexta, uma cesta 
de Aluísio Azevedo! 


O Cortiço, um romance perfeito
com personagens inesquecíveis 



Infeliz daquele a quem não é dado chorar;
só o pranto afoga a dor que a vontade não vence destruir.





Aluísio Azevedo (Aluísio Tancredo Gonçalves de Azevedo) nasceu em São Luis, Maranhão, em 14 de abril de 1857.  Faleceu em Buenos Aires, em 21 de janeiro de 1913. Romancista, contista, cronista, diplomata, caricaturista, desenhista, além de jornalista e pintor.

Filho do vice-cônsul português David Gonçalves de Azevedo, que ficou viúvo jovem, e de Emília Amália Pinto de Magalhães, separada de um rico comerciante português, Antônio Joaquim Branco. A sociedade maranhense não aceitou o casal, um grande escândalo à época.

Desde pequeno gostava de desenho e pintura. Terminou o colégio na capital maranhense e foi em 1876 para o Rio de Janeiro, onde estudou na Academia Imperial de Belas-Artes, conseguindo logo o cargo de colaborador caricaturista de jornais como O Fígaro, O Mequetrefe, Zig-Zag e A Semana Ilustrada.

Com o falecimento do pai em 1878 volta ao Maranhão para cuidar da família. Ali, diante de dificuldades financeiras, abandona momentaneamente os desenhos e dá início à atividade literária, publicando Uma Lágrima de Mulher no ano seguinte.


Em 1881, com a efervescência abolicionista, publica o romance O Mulato, obra que deixa a sociedade escandalizada pelo modo cru com que desnuda a questão racial e inaugura o Naturalismo na literatura brasileira. Nela, já demonstra ser abolicionista convicto.

Diante das críticas mas com o sucesso da obra na Corte, onde era considerada como exemplo da escola naturalista, volta ao Rio e produz romances, contos, crônicas e peças de teatro.


Sua obra é tida na conta de irregular por diversos críticos, uma vez que a produção oscila entre "o romantismo de tons melodramáticos, de cunho comercial para o grande público, e o naturalismo já em obras mais elaboradas, deixando a marca de precursor do movimento".

Tornou-se diplomata em 1895 e esquece a literatura, indo servir na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão (do qual fez apontamentos antevidentes e singulares), Paraguai e Argentina. Em 1910, cônsul de primeira classe, volta a Buenos Aires, onde convive com Pastora Luquez, de quem adotou os dois filhos. Foi o fundador da cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Letras.

Em 1918, por iniciativa de Coelho Neto,  seus restos mortais foram levados de Buenos Aires para São Luís.

É autor de vários romances de estética naturalista: "O Mulato" (1881), "Casa de Pensão" (1884), "O Cortiço" (1890).

O Cortiço é um dos primeiros romances brasileiros no qual a homossexualidade foi apresentada. 


Obras:

Aos Vinte Anos, conto
Uma Lágrima de Mulher, romance (1880)
O Mulato, romance (1881)
Mistério da Tijuca ou Girândola de Amores, romance (1882)
Memórias de um Condenado ou A Condessa Vésper, romance (1882)
Casa de Pensão, romance (1884)
Filomena Borges, romance (1884)
O Homem, romance (1887)
O Cortiço, romance (1890), Editora Moderna, São Paulo, 1991, 
O Coruja, romance (1890)
A Mortalha de Alzira, romance (1894)
Demônios, contos (1895)
O Livro de uma Sogra, romance (1895)
O Japão, publicado, a partir de manuscritos encontrados na Academia Brasileira de Letras (1894)
O Touro Negro, crônicas e epistolário
Os Doidos, peça
Casa de Orates, peça
Flor de Lis, peça
Em Flagrante, peça
Caboclo, peça
Um Caso de Adultério, peça
Venenos que Curam, peça
República, peça


O professor sempre se impacienta, quando tem de explicar qualquer coisa mais de uma vez. O livro, não. O livo exige apenas a boa vontade de quem estuda.


 O Cortiço descreve a ascensão social do comerciante português João Romão, dono de uma venda, uma pedreira e um cortiço, próximo ao sobrado de um patrício rico, o comendador Miranda. A rivalidade entre os dois aumenta à medida que cresce o número de casinhas do cortiço, alugadas, na sua maioria, pelos empregados da pedreira, que também fazem compras na venda de João Romão, que, desse modo passa a enriquecer rapidamente. Com a intenção obsessiva de tornar-se rico, João economiza em tudo e explora quem quer que seja sempre que tem oportunidade, como o faz com a escrava fugida chamada Bertoleza que o auxilia no trabalho duro e para quem ele forjou um documento de alforria.

O sonho de João é adquirir prestígio social como seu patrício Miranda. EA medida que vai enriquecendo, o patrício passa a considerar a possibilidade de oferecer-lhe a mão de sua filha, Zulmira; assim um amigo em comum, Botelho, se faz de intermediário das negociações e tudo fica arranjado. João fica noivo de Zulmira, alcançando assim um patamar mais alto na escala social.

O único inconveniente é a escrava Bertoleza, que não aceita ser descartada, para qual João arma um plano: denuncia Bertoleza como escrava fugida a seu verdadeiro dono que vai com a polícia prendê-la. O comerciante faz de conta que não sabe de nada e a entrega. Bertoleza percebe que Romão, sem coragem de mandá-la embora ou de matá-Ia, preparou essa armadilha para devolvê-la ao cativeiro, desesperada, ela se mata.

A narração desses fatos da vida de João Romão entrelaça-se com a narração de vários episódios dos moradores do cortiço, cuja luta pela sobrevivência é dura e cruel. O caso de Jerônimo é exemplar da visão naturalista de Azevedo, Jerônimo é um operário português contratado por João para trabalhar na pedreira, é sério e honesto, casado com Piedade, também portuguesa. Eles têm uma filhinha e vivem bem como família. Mas no cortiço, Jerônimo começa a sofrer influência daquele ambiente desregrado então apaixona-se pela mulata Rita Baiana, por ela, mata um rival e abandona a família.

Acompanhando a evolução social de João Romão, o cortiço também se desenvolve, principalmente depois de um grande incêndio, quando passa por reformas e transforma-se na "Avenida São Romão", com melhor aparência e uma população mais ordeira. A população mais baixa e miserável se transfere para outro cortiço, o "Cabeça de Gato", mantendo-se assim a engrenagem do sistema social em que predomina a lei do mais forte.



Calcula, minha amiga, que tortura!
Amo-te muito e muito, e, todavia,
Preferira morrer a ver-te um dia
Merecer o labéu de esposa impura!

Que te não enterneça esta loucura,
Que te não mova nunca esta agonia,
Que eu muito sofra porque és casta e pura,
Que, se o não foras, quanto eu sofreria!

Ah! Quanto eu sofreria se alegrasses
Com teus beijos de amor, meus lábios tristes,
Com teus beijos de amor, as minhas faces!

Persiste na moral em que persistes.
Ah! Quanto eu sofreria se pecasses,
Mas quanto sofro mais porque resistes!


DOIS TEXTOS DO ALUÍSIO AZEVEDO


O namorado da noiva


Nos fins de um verão que já vai longe, uma carruagem, de cúpula erguida e faróis apagados, seguia a todo o trote pela pitoresca estrada da Gávea.

Seriam onze horas da noite.

À certa altura, no lugar mais sombreado do caminho, a carruagem parou, e dela se apearam dois sujeitos vestidos de casaca. O mais velho destes, que teria o duplo dos vinte anos do outro, pagou ao cocheiro, e logo que o carro tornou por onde viera, puseram-se os dois apeados a caminhar silenciosamente pela estrada acima.

Ao cabo de alguns minutos, o mais velho, percebendo que o companheiro chorava, estacou, sacudindo-lhe o braço:

— Então, Gabriel! não tencionas acabar com isso por uma vez? Olha, que sempre me saíste um romântico ainda mais doido do que eu! E batendo-lhe no ombro: Ora vamos, meu rapaz! não te deixes agora dominar tão estupidamente por uma paixão quase ridícula! O que por aí não falta são mulheres tão lindas ou mais do que a filha do comendador Moscoso, e tu, por bem dizer, ainda nem principiaste a gozar a tua mocidade.  Para mim é que toas elas já não existem...  Vamos! se continuas desse modo, acabarei por te não tomar a sério!

O mais moço não respondeu, e continuaram os dois a caminhar em silêncio.

No fim de nova pausa, acrescentou o mais velho, sem interromper o passo:

— Que diabo! quiseste a todo o transe assistir ao casamento de Ambrosina... não te contrariei, apesar de me parecer isso disparada loucura; exigiste que eu te acompanhasse... eu cá estou ao teu lado; declaraste que entraríamos misteriosamente na casa dos noivos à meia-noite, como dois gatunos...  eu não respinguei palavra!... (E sacando do relógio) São doze menos um quarto... A chácara do comendador fica-nos a poucas braças... e o cocheiro que nos trouxe roda a estas horas longe daqui, sem saber quem conduziu no seu carro... Parece-me, pois, que anui a todos os teus caprichos; entretanto, tu, o herói desta complicada aventura, tu, que me prometeste te portares como homem, que juraste não soltares um gemido de dor ou de queixa, desatas agora a chorar como uma mulher! Ah! deste modo, meu caro, não contes comigo!... Prefiro até desistir da viagem que combinamos fazer à Europa, sob a condição de acompanhar-te eu nesta romântica empresa; desisto de tudo!

— Gaspar!

— Pois não! retrucou este, estacando de novo no meio da estrada. Se continuas assim, está claro que não obterás de mim um passo adiante!

— Irei só! declarou o outro, enxugando os olhos.

— Para fazer-te a vontade, prosseguiu aquele, tive que reagir contra os meus hábitos e até contra o meu caráter; não te é nada estranho o mortal e velho ódio que mantinha contra meu pai, o pai de Ambrosina, esse infame comendador Moscoso, a quem eu, como toda a gente honrada, desprezo e detesto... Pois bem; não me arrependo do que fiz, e estou por tudo que quiseres, mas, com a breca! exijo por minha vez que, ou tu te hás de portar como homem, ou agora mesmo, desistas de tal ideia de ir hoje à casa da noiva! Lá para lamúrias e pieguices de namorado infeliz, é que absolutamente não vim disposto! Vamos! é decidires!

Gabriel passou-lhe o braço em volta do pescoço, exclamando:

— Não me recrimines, meu bom amigo! Sei quanto te devo, e sei melhor que o teu coração é o único de que ainda não descri inteiramente; mas, por isso mesmo, não me abandones, não me deixes a sós com este desespero, que só espera pela tua ausência para me devorar. Fica ao meu lado... eu me farei forte, eu terei coragem! Hei de vê-la aparecer, enlevada no seu véu nupcial, branca e fugitiva como a nuvem que se some para sempre; hei de vê-la, coroada de flores amorosas, as faces enrubescidas de sensual enleio, os olhos fulgurantes de desejo por outro homem!... e não soltarei um lamento, e não proferirei uma blasfêmia! Inveja, decepções, mortíferos ciúmes, tudo me ficará cá dentro, premido e recalcado com os escombros do meu pobre amor! Tudo sofrerei, vencido e humilhado, contanto que ma deixem ver hoje, contanto que me deixem penetrar, pela última vez, da suprema luz daqueles olhos ainda de virgem, e aperceber minha alma com a imagem dela, antes que ela se despoje eternamente da sua castidade! Depois, farei o que quiseres... fugiremos para longe do Brasil... tomaremos o primeiro paquete para a Europa... percorreremos o mundo inteiro, abriremos uma ruidosa vida de prazeres e de perigos! teremos amantes em todas as cidades, orgias e duelos em todas as paragens; mas, por piedade! deixem-me ver Ambrosina, antes que ela resvale nos braços do miserável que ma roubou! E tu, meu bom Gaspar, não me abandonarás, não é verdade?...  tu continuarás a ser para mim o mesmo amigo fiel, o mesmo inseparável irmão, o mesmo extremoso pai!

O outro apertou-o contra o peito.

— Sim, sim... respondeu comovido; bem sabes que sim! Serei sempre o mesmo, não para te deixar correr à solta, como um boêmio, por esse mundo afora, mas para despertar em ti o gosto pela vida real e pelo trabalho fecundo... Olha! já daqui se avista a chácara do grande velhaco. Deitam fogos! Deve ir animado o bródio! Mas vê se me compõe um pouco esse teu ar, homem! Não sei que parecerás aos folgazões com essa cara de carpideira de velório!

E, à proporção que se adiantavam, iam já sentindo com efeito avultar-se no ar um quente rumor de festa que ferve ao longe; ao passo que em torno deles vinha, do fundo negrume daquela noite sem estrelas e sem lua, um monótono coaxar de charco e um agoureiro corvejar de aves sinistras.

Os dois amigos chegaram defronte da bela chácara do comendador. O mais velho bateu no ombro do outro:

— Vê lá como te portas, hein!...

E, embrenhando-se pelo empavesado jardim, galgaram depois uma escadaria de granito, que dava para sombria e vasta varanda, trasbordante de roseiras em flor; transposta a qual, se acharam eles num luzido salão, ainda quente de estrondoso banquete que aí ardera durante a noite.

Via-se ao centro a grande mesa, devastada e abandonada, como um campo depois de medieválica peleja a ferro frio, e, no meio, do destroço, dominante, e altiva, erguia-se intacta, numa apoteose de açúcar e fios de ovos, uma noivazinha de alfenim, coroada de áureos caramelos e vestidas de papel de seda.

Essa ridícula boneca, que se poderia derreter com um bochecho d’água, representava, entretanto, ali, naquele centro burguês e pretensioso, nada menos que a instituição mais respeitável da sociedade, representava a família. Naquele alfenim, frágil, cândido e consagrado, havia a doçura do lar doméstico, toda a pureza do amor conjugal e também toda a fragilidade da honra de um marido.

No meio do geral desbaratamento das vitualhas e dos postres, a simbólica boneca fôra respeitada, por damas e cavalheiros, como ídolo divino.

Gabriel teve vontade de despedaçá-la.

Já quase ninguém havia no salão do banquete. Tinham-se os convivas despejado pelas outras salas e pelo jardim, cuja luminária à veneziana começava a derreter-se; alguns coziam a digestão refestelada pelas poltronas e pelos divãs macios; outros bebericavam ainda aos bufetes e faziam brindes, sobre a posse, à ventura dos cônjuges. A festa, que havia começado desde a véspera, tocava afinal no seu término e dissolvia-se em cansaço.

Gaspar e Gabriel conseguiram, sem chamar a atenção de pessoa alguma, chegar a um aposento mais afastado, onde se não via viva alma.

— O que é da noiva!... perguntou Gabriel a um criado do libré, que apareceu depois, indagando deles se precisavam de alguma cousa.

— A noiva?  Acaba, neste instante, de retirar-se com o noivo para o rico pavilhãozinho cor-de-rosa que lhes foi preparado... Olhe! olhe! meu senhor! Aqui desta janela ainda os pode ver!  Ali vão eles!

— Gabriel correu ao lugar indicado. Ambrosina, pelo braço do noivo, fugia efetivamente  para o escondido ninho dos seus amores, esgueirando-se arisca por entre as sombrias árvores do jardim.

— Onde fica o pavilhão?...

— O pavilhãozinho dos noivos? Pois vossemecê não sabe?! Fica, meu rico senhor, ao fundo da chácara, para o lado do mar... Que pena não o ter ido ver enquanto esteve ontem franqueado... De tudo o que se preparou aqui para esta festa, é sem dúvida a peça mais bonita!

Ao fundo da chácara... para o lado do mar... repetia entredentes Gabriel, apalpando contra o peito um punhal que levava oculto.

— Bem, disse Gaspar, assim que o criado se arredou; já viste afinal a noiva, creio que agora podemos bater em retirada... Não nos convém ficar por muito tempo aqui!...

— Vai tu, se quiseres... eu inda fico...

— Mal começa a cheirar-me a brincadeira! Bem sabes que te não abandonarei, mas não deves abusar da minha condescendência... Ouvi por acaso dizer há pouco que os pais dos noivos já se tinham também recolhido e que poucos convidados haveria de pé... São duas horas da madrugada!

Só em verdade um reduzido grupo de convivas recalcitrantes insistia em prolongar a festa, bebendo, já sem olhar o que, entre arrastadas cantigas à meia voz e descaídos abraços de borracheira; os outros, ou se tinham retirado para casa, ou recolhido aos dormitórios que o comendador mandara improvisar para os seus hóspedes.

Os criados, moídos e taciturnos, encostavam-se pelos umbrais das portas, a fitar os retardatários com um olhar humilde e suplicante. Um deles foi ter, bocejando, com Gaspar e Gabriel, e perguntou-lhes, quase de olhos fechados, se pernoitavam na chácara.

— Sim, respondeu o mais moço, sem consultar o outro.

— Mas precisamos de um quarto, donde se possa sair pela madrugada... Observou Gaspar; nossa carruagem chega às quatro horas...

O criado, a coçar-se todo, conduziu-os a uma câmara ao rés do chão, onde já havia dois sujeitos a dormir profundamente.

— Mas afinal, a que pretendes tu chegar com tudo isto?! perguntou Gaspar em voz baixa ao companheiro, quando se acharam a sós.

— A nada mais do que descansar um pouco, e partir em seguida... Contudo, se quiseres ir, ainda está em tempo... Eu, como já disse, não vou por ora.

— Ao contrário, preciso de repouso, e não tenho condução... volveu Gaspar, afetando um bocejo.

E acrescentou, estirando-se num sofá, depois de desfazer-se da casaca e das botinas:

— Contanto que antes de amanhecer estejamos a caminho... Não me convém de modo algum encontrar com o comendador.

— Podes ficar descansado... prometeu o outro, recolhendo por sua vez a uma poltrona de couro.

E, apagando a lâmpada que levara para junto desta, fingiu que adormecia.

Ao fim de algum tempo, a casa mergulhava de todo em silêncio e trevas.  Gabriel ergueu-se cautelosamente; foi à porta, abriu-a com sumo cuidado, e saiu para o jardim, em mangas de camisa e sem sapatos.  Levava o punhal consigo.

A noite era cada vez mais negra.

Gaspar, porém, que continuava alerta, mal percebeu a escápula do companheiro, enfiou num relance as botinas e a casaca, e atirou-se sorrateiramente no encalço dele.


Refluxo do passado


Correu muito agradável o jantar. A mesa era pequena e punha os dois em confidencial intimidade.

Violante mantinha a palestra com a sedutora volubilidade das mulheres que sabem esconder o pensamento com a palavra, falando para não dizer o que lhes convém calar; e ele, enquanto a caprichosa tecia e destecia as no nadas da conversação, ia reparando bem para a cor dos olhos dela, para as violetas das suas pálpebras, para a formosura da sua boca e para aquele moreno pálido e fresco, que é nas raças espanholas um luminoso e fugitivo reflexo do Oriente.

E os olhares sôfregos do rapaz insinuavam-se pelas sutilezas daquelas deliciosas formas de mulher, serpeando-lhes por entre as curvas da garganta e por entre as macias ondulações do colo, a tatear os menores acidentes da divina argila, e adormecendo embriagados de volúpia à sombra embalsamada dos cabelos negros; para logo acordarem e de novo se porem a subir de rastros pela doce curvilineação das espáduas, e deixarem-se depois rolar pela encosta dos quadris ou pelo branco despenhadeiro dos braços nus.

E sem querer, e sem poder conter-se, Gaspar imaginava como não seria o contato real de tudo aquilo! Que delírios não havia de se esconder num beijo as endiabradas covinhas daqueles cotovelos cor-de-rosa!...

— Então, o senhor não janta, nem conversa! disse-lhe Violante a rir. Há boas horas que me olha com duas brasas!...

E a formosa oriental estendeu a mão ao hóspede, pedindo-lhe que lhe passasse um pêssego.

— A mão! exclamou ele, tomando no ar a mão de Violante. Oh! como é bela!

E ficou a contemplá-la, a enluvá-la com um olhar de êxtase.

Era branca, fina, delgada, de longos dedos roliços e bem guarnecidos.

— Então! repetiu ela, fazendo um gesto de impaciência com o braço. Tenha a bondade de passar-me a fruteira.

Gaspar caiu em si e pediu-lhe mil perdões. Violante que lhe desculpasse aquela abstração — ele continuava a sonhar!...

E depois de servi-la de frutas e de vinho, encheu o próprio copo, e bebeu à gentil estrela que o conduzira ali.

Violante olhava-o com um sorriso. Terminado o jantar, ergueu-se ela e ordenou-se ao camareiro que servisse o café no fumoir.

— Dê-me o seu braço, disse a Gaspar.

E passaram-se para a sala próxima.

Violante ofereceu uma poltrona ao hóspede e assentou-se em outra. Depois tomando uma cigarrilha de tabaco turco de sobre o bufete, e cruzando negligentemente as pernas, com o cotovelo apoiado ao rebordo da cadeira e a cabeça um tanto pendida para trás, disse a soprar o primeiro hausto de fumo.

— Preste-me agora toda a atenção, porque, só depois de ouvir o que lhe vou dizer leal e francamente, é que poderá o senhor decidir se fica desde já em minha companhia, ou se se retira hoje mesmo desta casa...

Gaspar tomou o café, acendeu um charuto, reclinou-se mais na poltrona e disse, afagando a barba:

— Pode principiar. Estou às suas ordens...

— Quando eu tinha cinco anos, começou Violante, depois de fitar o teto, como quem evoca o passado, minha mãe sucumbia à miséria nesta cidade, e meu pai aos golpes do partido revolucionário em Cadiz. Ora, eu, que sempre acompanhara minha mãe em todas as suas peregrinações, achei-me de repente com ela morta nos braços, sem saber, coitada de mim! fazer outra cousa que não fosse chorar. Saí, entretanto, pedindo, à-toa, a quem encontrava pela rua, onde fosse comigo por piedade à casa para tratarmos de enterrar o cadáver. Todos me davam as costas; e eu, já desesperada, estalando de fome e de frio, cheia de terrores, atirei-me contra uma porta, a soluçar e a pedir a Deus que me levasse também para si.

Nessa conjuntura, senti no ombro uma carinhosa mão que me fez voltar a cabeça.  Tinha defronte dos lhos um oficial brasileiro. A princípio, fez-me medo com o uniforme e as suas barbas; mas era tão calma e compassiva a expressão da sua fisionomia, que me animei a encará-lo; além disso, a presença de uma senhora e duas crianças de minha idade, que o acompanhavam, me restituíam logo a tranqüilidade e, sem saber por que, sorri para aquela gente.

Oh! nunca mais me esqueci da fisionomia desse oficial! "Que tens tu?!" disse-me ele em mau espanhol, passando-me a mão pela cabeça.

"Tenho minha mãe morta em casa, naquela rua, e falta-me o ânimo de voltar para lá sozinha!"

O oficial refletiu um instante e trocou algumas palavras em português com a mulher. Depois, deu-lhe o braço, e começaram a acompanhar-me com os pequenos.

(Gaspar apertou os olhos, fazendo um esforço de memória.)

— Quando chegamos à casa, continuou Violante, ficaram todos horrorizados. O espetáculo da miséria completava-se com o cadáver de minha pobre mãe, que jazia por terra. Não era só compaixão o que inspirava aquilo; era mais: era revolta e ódio contra tamanha incúria de Deus!

"Esta criança naturalmente está caindo de fome", disse a senhora ao marido.

"Muito!" afirmei eu, que compreendera essas palavras.

Então tirou aquela da sua maleta de mão alguns biscoitos, que trazia para os filhos, e deu-mos, acrescentando: "Em casa jantaremos juntos".

O marido perguntou-lhe se ela sabia ir só para o hotel.

"Perfeitamente", respondeu a senhora.

"Pois leva os nossos pequenos e esta infelizinha; eu fico para providenciar sobre o enterro."

Quis eu então atirar-me aos pés do meu benfeitor; mas a ideia de que nunca mais veria minha mãe, fez-me abrir em soluços e precipitar-me sobre o seu cadáver, para lhe dar o último beijo.

A senhora do oficial arrancou-me dali, e levou-me para sua casa pela mão.

Só no dia seguinte, quando acordei, na melhor cama da minha vida, soube que minha mãe fora dignamente sepultada, e que eu ficaria morando ali onde me achava.

O oficial, de que lhe acabo de falar, chamava-se Pinto Leite, e seus dois filhinhos eram: um Gaspar e o outro Ana.

— É exato! e! Bem me recordo da pequenita que brincou comigo em outro tempo! confirmou Gaspar com muito interesse. Mas se me não engano, essa pequenita fora para um colégio, quando...

— Já lá vamos! Já lá vamos! respondeu Violante; ouça o resto.

E continuou:

— Passei um ano em casa de seu pai. Aí aprendi a ler, rezar e cozer com sua mãe.  Foi nessa época que nasceu sua irmã mais moça; a Virgínia. O senhor não calcula que boas recordações tenho eu desse tempo! Também não podia ser por menos: até aí só conhecera sofrimentos e privações, e lá fui encontrar a paz, o conforto e até o amor. Sua mãe, a quem Deus haja, era uma santa!

Gaspar ouvia cada vez com mais interesse, as palavras de Violante.

— Entretanto, prosseguiu ela fazendo um ar triste, seu pai foi constrangido a mudar-se para o Rio de Janeiro, e como eu na minha qualidade de órfá, não podia ser carregada da pátria, assim sem mais nem menos, resolveu ele meter-me como pensionista em um colégio aqui, onde nada me faltaria.

E dando piparotes na cinza do cigarro, a oriental acrescentou, mudando de tom:

— No colégio levei até aos dezesseis anos, quando tive o meu primeiro namoro foi com o filho da diretora, Paulo Mostella; um mocetão vivo, forte e velhaco. Por duas vezes furtou-me beijos, de uma quis ir mais longe; eu, porém, tinha felizmente algum juízo e cortei-lhe o arrojo com uma tremenda bofetada. Paulo declarou-me então, cheio de raiva, que nunca tencionava casar comigo, porque sua família não consentiria em tal loucura — eu afinal era uma rapariga sem eira, nem beira! Todavia, fui, pouco depois, pedida por um negociante muito rico e sumamente estimado da sociedade de Montevidéu; chamava-se D. Tomás de los Rios. Era um homenzarrão, ainda fresco, muito amável, muito bom e com muito caráter. Casei-me e fui feliz durante esse tempo. Meu marido adorava-me, fazia-me todas as vontades. Levou-me a correr a Europa, mostrando-se ser agradável. Quando voltamos do nosso longo passeio, trazíamos um filhinho — Gabriel. Tomás principiava, entretanto, a sofrer da moléstia que o havia de matar. Tornamos a sair daqui em busca de ares mais favoráveis. Meu filho ficou. Tínhamos-nos dirigido para a Espanha; cheguei viúva a Madrid.

Fiquei bastante contrariada com a situação, e resolvi esperar que alguém de cá me quisesse ir buscar. Estava nestas circunstâncias, quando fui surpreendida um dia por um rapaz, que se atirou a meus pés, chorando e rindo com grande contentamento. Era Paulo Mostella.

Olhei-o sobressaltada, e certo é que então o diabo do homem me pareceu melhor do que dantes. Cheguei a calcular que o tempo e o traquejo do mundo lhe tivessem modificado o espírito, como lhe modificaram a fisionomia. Propôs imediatamente a casar comigo, e eu lhe declarei que não pensava ainda em preencher a vaga de meu marido, e que, se mais tarde me viesse semelhante ideia, só a realizaria um ano depois da morte de Tomás. Paulo falou-me com entusiasmo de uma grande paixão que por mim o devorava, e jurou que me amara sempre, e que aquele mesmo fato de se ter humilhado a procurar-me ainda, provava de sobra o muito que me queria. Enfim, tanto disse e tanto chorou, que acabou por me comover e persuadir. Fiz-lhe ver que, em todo caso, eu não me casaria aquele ano. Ele esperaria. Só o que desejava era possuir uma promessa. Prometi. E desde então o demônio do rapaz não me largou mais a porta. Passeios, teatros, bailes, touradas; tudo inventava para me agradar. Parecia viver unicamente para mim; dir-se-ia que todo o seu ideal era fazer com que o tempo corresse o mais depressa possível e que chegasse afinal o dia feliz da nossa união.

"Só voltaremos a Montevidéu casadinhos!" dizia-me ele, a beijar-me as mãos. E eu, em verdade, nem só já o suportava perfeitamente, como até sentia já por ele certa inclinação.

— Nós, as mulheres, somos muito fracas! explicou Violante com um olhar lastimoso. Se soubessem os homens o esforço que às vezes fazemos para sustentar o que a sociedade exige como tributo da nossa honestidade, dariam eles muito mais importância às nossas virtudes! Houve ocasiões, confesso, em que se me afigurou que Paulo tinha direito de ser mais atrevido do que realmente era.

E, voltando-se na cadeira, a oriental continuou:

— Uma vez propus-me um passeio ao campo. Aceitei e fomos.

A manhã era esplêndida. Uma bela manhã cheia de luz e temperada por um calor comunicativo e doce. Às seis horas metemo-nos em um carrinho de vime, leve como uma cesta, rasteiro como um divã e cômodo como um leito.

Paulo deu rédeas ao animal, e o carro nos conduziu para fora da cidade.

Um comentário:

  1. Caro Prévidi,
    Obrigado pela postagem/homenagem nesta sexta a um dos maiores – obviamente, não em quantidade – romancista brasileiro de todos os tempos, o maranhense Aluísio Azevedo.
    Tenho pelo meu gosto que os três maiores romances brasileiros são: O Cortiço (magnífico, pungente, cortante), Tambores de São Luís (fenomenal, mais de 500 páginas e, idem, 400 personagens), e o Coronel e o Lobisomem (um símile brasileiro, mas muito bem escrito, de Dom Quixote).
    O Interessante é a dimensão que tinha o Maranhão para a Cultura brasileira, basicamente literatura e teatro, na segunda metade do século XIX até os primeiro anos do século XX. Josué Montello, o escritor de Tambores de São Luís, também era maranhense.
    Poucos sabem, mas o patrono da Cadeira nº 01 da ABL foi um... maranhense! Antônio Fontoura Chaves, dono de alguns poemas bem, mas bem fraquinhos, mas amigo íntimo de Arthur Azevedo (irmão do Aluísio, e que o precedeu em fama como escritor de peças de teatro de sucesso, representadas principalmente no ‘tambor do Brasil, à época, o Rio de Janeiro).
    Voltando ao Aluísio, li dele três livros, O Cortiço (disparado o melhor!), O Mulato (mais ou menos) e Casa de Pensão (comum, simples, baseado em fatos reais de um assassinato ocorrido no Rio de Janeiro por volta de 1880).

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