Sexta, 26 de novembro de 2021

 

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especial

Nesta sexta, uma cesta 
de Jeferson Tenório
!


O Avesso da Pele é finalista
dos Prêmios Jabuti, Oceanos
e São Paulo



Foi na escola que soube pela primeira vez que eu era negro.

Um dia, eu tive uma professora que me explicou tudo sobre a escravidão. Disse que nós, os negros, fomos trazidos acorrentados em navios negreiros. Que os negros eram tratados como animais, que os negros levavam chibatadas, que foram passivos e se deixaram escravizar. Assistimos a muitos filmes sobre as senzalas, sobre os quilombos, e sempre que isso acontecia meus colegas brancos me apontavam na tela e me chamavam de escravo. O problema é que na infância não se pode fazer muita coisa a respeito da nossa cor. Todos me ensinavam que eu só podia ser preto, e não me deixavam ser simplesmente uma pessoa, mas juro que quando ficar maior vou poder ser apenas uma pessoa, e pronto. 




Jeferson Tenório (Jeferson de Souza Tenório) nasceu no Rio de Janeiro em 1977 (ele não informa dia e mês). Radicado em Porto Alegre, é graduado em Letras pela UFRGS e atua como professor de língua e literatura na rede pública de ensino de Porto Alegre. Seu amor pela literatura surgiu depois dos 20. Hoje ele se orgulha de ter uma biblioteca em casa. As leituras que mais moldaram a sua carreira foram Dom Quixote de la Mancha, Quarto de despejo e textos filosóficos de Freud.

O escritor é Mestre em Literaturas Luso-africanas, pela mesma Instituição, com a dissertação Em busca do outro pé e outros niilismos na obra de Mia Couto, defendida em 2013. Trabalho, centrado numa perspectiva pós-colonial, toma como objeto O outro pé da sereia, do autor moçambicano, para efetuar a desconstrução dos arquétipos enraizados no imaginário ocidental sobre África e seus povos.

Conclui seu Doutorado em Teoria da Literatura na PUC-RS, com a tese A autópsia de um imaginário em ruínas: a memória nas narrativas de regresso em 4 autores portugueses e, novamente, toma como questões centrais: colonialismo, pós-colonialismo, identidade e diáspora africana na pós-modernidade. Outra questão que o trabalho acadêmico de Tenório traz é uma problematização e desmistificação do continente africano como um lugar de regresso em busca de suas raízes.

O recorte de sua pesquisa é guiado pela ótica nietzschiana, a qual demonstra como os fatores sociais incidem na formação da subjetividade dos sujeitos africanos. Questiona então a noção de Verdade Fixa, indagando para quem e para que se busca essa Verdade. 

Com este trabalho, Tenório lançará um olhar crítico sobre a construção das relações familiares tendo como eixo o desmoronar destas, assim pode-se especular que serão análises que auxiliarão na compreensão do que é ser pai em famílias em derrocada, pois ao utilizar “ruínas” promove o entender que se tratam de personagens em decadência nos mais diversos campos da vida. Não satisfeito, o autor instiga, pela opção do termo “autópsia”, que confere um dissecar da concepção do que é ou será a paternidade, e demonstrar as causas desta vida em constante degradação. 

Ao propor um diálogo entre psicanálise, filosofia e literatura pode-se esperar análise dos arquétipos e simulacros que a figura paterna carrega em si. Também, proposições sobre o famoso complexo de Édipo é algo que o breve resumo de seu trabalho acadêmico desencadeia em quem o lê.


O autor estreia no romance em 2013, com O Beijo na Parede, vencedor do prêmio de “Livro do Ano” da Associação Gaúcha dos Escritores, e já em terceira edição. A narrativa chama a atenção pela forma com que arrebata a atenção do leitor, fazendo-o percorrer os cenários da carência material e afetiva que marcam o cotidiano dos desvalidos alojados na metrópole contemporânea.

Nas primeiras páginas do romance, é possível vislumbrar o quanto o texto de Tenório envolve e captura a atenção do leitor. E, guiado pela fala da criança repentinamente "adulta", este vai penetrar no espaço da metrópole contemporânea com uma intensidade que faz do registro confessional do narrador-personagem o passaporte para a crítica social e a humanização dos desvalidos ocupantes da face oculta da polis.


Já seu segundo romance, Estela sem Deus, de 2018, também narrado em primeira pessoa e igualmente impactante, Jeferson Tenório retoma a problemática do amadurecimento precoce da infância e juventude negras, num contexto marcado pelo racismo e pela subalternidade econômica e social. 

Centrado agora na voz feminina e adolescente a conduzir a narrativa a partir de suas dúvidas, Estela sem Deus surpreende pela sensibilidade e humanidade com que toca em questões fundamentais.


Em 2020, vem a público O Avesso da Pele, publicado por uma grande editora e aclamado pela crítica como um dos maiores lançamentos do ano. A exemplo dos anteriores, o livro trata da violência naturalizada contra pessoas negras e pobres, mas sempre a partir de um ponto de vista interno, voltado para a expressar a voz das vítimas. Conta, pela fala do filho órfão, a trajetória de um professor de literatura trabalhando com jovens problemáticos numa escola da periferia de Porto Alegre e, mais tarde, vítima de agressão policial. O avesso da pele encerra o que o autor designa como "Trilogia do abandono" e volta a trazer para o centro do processo narrativo a voz da consciência jovem em sua formação rumo à construção da cidadania. 


Jeferson Tenório divide seu tempo entre o ensino, a pesquisa e a literatura. Além dos romances, tem textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para inglês e espanhol, além de ser o escritor anfitrião da FestiPoa Literária de 2019. Conquistou premiações de relevo, entre elas: Menção Honrosa no 19º Concurso de Contos Paulo Leminski, Universidade Estadual do Oeste do Paraná; 15º Concurso Poemas no Ônibus e 3º Concurso Poemas no Trem, da Prefeitura de Porto Alegre.

Obra Individual

O beijo na parede. Porto Alegre: Sulina, 2013. 3.ed. Porto Alegre: Sulina, 2015. (romance).

Estela sem Deus. Porto Alegre: Zouk, 2018. (romance).

O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. (romance).

Antologias

Tempo Abandonado. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, 2007 (Selecionado na 15ª edição do Concurso Poemas no Ônibus e no Trem).

Cavalos não choram. Paraná: Universidade Estadual do Oeste do Paraná, 2008. (Conto, Concurso Paulo Leminski).

Bloom revisitado. In: RUFFATO, Luiz; SANTOS, José. (Org.). Partículas Subatômica? Microcontos brasileiros. São Paulo: Carteiro Fiel, 2015, v. 01, p. 13-13.

Não ficção

Mario Quintana. In: MASINA, Lea; BARBERENA, Ricardo; CARNEIRO, Vinicius. (Org.). Guia de leitura: 100 poetas que você precisa ler. Porto Alegre: LPM, 2015, v. 01, p. 208-209.




Trecho de O Beijo na Parede

Eu estava tomando café da manhã quando vi o Airton Senna se espatifar na curva Tamburello. Era 1o de maio. Um ano depois, no mesmo dia, minha avó também se arrebentou num poste na Av. Protásio Alves. Ela estava num táxi, era um fusca. Batida feia. Seu Ramiro, que é muito experiente, disse que no fim das contas todo mundo um dia vai bater de frente numa parede. Disse também que devemos nos preocupar com isso desde o início, pois mal aprendemos a limpar a bunda e já temos que saber que as pessoas quebram mesmo a cara, e que depois de aguentar uma vida inteira somos colocados num buraco e enterrados para sempre. Até o Airton Senna foi para um buraco, e isso que ele era campeão do mundo. O engraçado é que quando se está vivo, com saúde, ninguém pensa nessas coisas. Já notei que as pessoas chegam até a acreditar que são eternas. E pensam dessa forma porque têm necessidade disso para viver. Antes de a minha mãe morrer eu não conhecia a tristeza. Mas, quando ela se foi, deixei de ser ignorante nesse assunto. Também acho isso engraçado, porque ela morreu acreditando que eu seria feliz, que eu teria uma vida pela frente para ser o que quisesse. E há uma infinidade de coisas que se pode fazer no futuro. Fico muito impressionado com os planejamentos que as pessoas fazem a toda hora. Vai ver é por isso que elas dão tanta importância para ele. Mas quero dizer a vocês que não gosto do futuro. Nem dos planejamentos. Também quero acrescentar que sou um menino meio precoce. E quando a gente ganhar mais intimidade, eu conto por que fiquei assim. Se vocês acharem que vale a pena, eu conto.

Desde cedo aprendi que chorar não resolve muita coisa, embora o seu Ramiro tenha me dito certa vez que não há como escapar, pois de uma forma ou de outra, temos que carregar alguma dor. Mas é preciso dar um desconto pra ele, pois além de ser uma pessoa de idade, ele também é triste. E depois que se tornou velho a única coisa que soube fazer foi aprender a doer.

Não estou acostumado com pessoas interessadas em mim. Também nunca fui urgente para alguém. Isso me preocupa um pouco. Sei que a preocupação faz mal para a cabeça. Por isso estou contando a minha vida, pois não quero me tornar uma pessoa atacada dos nervos como a Estela ou a dona Dinorah. Hoje em dia as crianças são todas atacadas dos nervos.

Fui um aluno fraco e lerdo. Sei porque eu via isso na cara dos professores e eles tinham pena da minha lerdice. Achavam até que eu tinha uma espécie de autismo. Ou talvez que eu fosse retardado mental. Por conta disso, colecionei muitos boletins lamentáveis. E na escola aprendi que professores não acreditam em alunos lerdos. Eu era perseguido pela escola até em casa, quando ligavam para minha mãe e solicitavam a presença dela. Os professores reclamavam que eu era um menino lento para a aprendizagem e que o motivo das minhas reprovações era causado pela minha desatenção. Demorei três anos na primeira série para entender que "b" com "a" dava "ba". Três anos. É sério. Três anos para fazer uma coisa besta dessa. Sempre fui um aluno fraco, mas não vou me esticar nesse assunto. Mais tarde voltarei a falar disso, pois pretendo contar quem é o responsável pela fraqueza dos homens.

Quando me tornei maior, mudei meu comportamento na escola, daí fui acusado de ser hiperativo. Aliás, todos os meus colegas resolveram ser hiperativos. O que era bom, porque quando a gente aprontava era só colocar a culpa na hiperatividade. Minha mãe e meu pai nunca me bateram por causa disso. Meu pai porque bebia e, às vezes, se esquecia de mim. Minha mãe porque era muito doce. É só depois de algum tempo que nos damos conta de que a mãe da gente é doce e amável. Antes disso, somos idiotas, porque ficamos muito mal-acostumados chorando e esperneando por qualquer coisa. Acho que sempre fui lento. Só fiquei esperto mesmo depois que ela morreu. Um dia, até pensei que eu fosse eterno. E há uma quantidade imensa de bobagens que a gente pensa quando se é ignorante. 

Não vou encher vocês falando de todos os lugares onde morei. Sei que estão interessados em saber outras coisas - os adultos sempre se interessam por coisas esquisitas. Mas acho que vale a pena dizer que a gente morava em Copacabana, na Ladeira dos Tabajaras. E também que estudava na escola Cícero Pena, na Av. Atlântica. Na terceira série, depois que já havia superado "ba", aprendi a matar aula para dar uns mergulhos na praia. Confesso que nunca achei nada demais no mar. No entanto sempre gostei dos mergulhos e de sujar o corpo todo de areia para tirar na água. Aqui em Porto Alegre é que ouço as pessoas dizendo que o mar é isso e aquilo. Mas eu sinceramente não acho. E se é por questão de água ainda prefiro a chuva. Se bem que quando chovia na Ladeira dos Tabajaras era um deus nos acuda. Nossa casa não tinha ameaça de cair morro abaixo, mas os vizinhos da parte mais alta vinham buscar abrigo na nossa sala. Sem contar os alagamentos no pé da ladeira, que deixavam todo mundo ilhado. E esse foi um dos motivos que fez a gente se mudar para a Lapa. Eu disse que foi um dos motivos porque, além dos alagamentos, havia também os tiroteios por causa das brigas dos traficantes. E, como eu já disse, minha mãe queria que eu tivesse um futuro. Então fomos para a Lapa ter um futuro. 

Foi meu padrinho que nos convidou. Ele já morava lá um tempão. Vocês devem saber que a maioria das crianças tem padrinhos. No entanto, algumas têm anjos em vez de padrinhos. Mas anjos não são muito bons porque não dão presentes. E só servem mesmo pra gente rezar quando estamos nos fodendo na vida. Meu padrinho se chamava Cláudio, e não costumava me dar presentes, mas era uma boa pessoa. E acho que na vida é isso que conta. Ele era cabeleireiro, trabalhava  em Copacabana. Eu estudava pela manhã e à tarde ficava com ele. O salão era dentro de uma galeria na Av. Nossa Senhora de Copacabana. Na galeria tinha de tudo: salão de beleza, bazar, assistência técnica de televisão, chaveiro e cartomante. Havia também a sala das prostitutas. Mas eu não chegava perto da porta, até porque eu vivia na ignorância e não sabia ao certo o que aquelas moças faziam, mas como eu já disse, sou um menino meio precoce e depois eu digo quando fiquei de pau duro pela primeira vez, se isto tiver alguma importância para vocês.

Meu padrinho já era velho, negro, magro, os cabelos rigorosamente aparados, Não gostava de sorrir. Era uma pessoa séria, elegante e profissional. Antigamente ele era barbeiro, só cortava cabelos de homens e não havia tanta frescura. Mas os tempos mudaram e ele teve que se adaptar, Muitos homens passaram a querer ser jovens para sempre. E também queriam o mesmo tratamento de cabelo que as mulheres, e não estou falando dos travestis, mas dos homens que não aceitam ser feios. “Os homens mudaram muito.” E era isso que meu padrinho viva repetindo para si. Aos poucos ele viu sua clientela mudar. Antigamente pediam para ele aparar o cabelo, fazer as suíças, passar a navalha “à contrafeita”. Depois tudo mudou: eles entravam querendo que o padrinho fizesse desenhos nas cabeças deles, pediam escovas, reflexos, relaxamentos e chapinhas. Com essas novas tendências meu padrinho foi obrigado a se adaptar. Então ele resolveu fazer uma sociedade com a dona Ivone do salão da frente. Dona Ivone sabia tudo sobre relaxamentos e chapinhas. Era uma mulher realmente muito gorda e a sua bunda ocupava duas poltronas. Nunca pensei que alguém pudesse ter uma bunda tão grande. Além disso, era uma pessoa que suava bastante e também era muito gritona. Ficou combinado que meu padrinho só cortaria cabelos e faria as barbas. Todo o resto ficaria a cargo da dona Ivone. Aliás, ela arrumava o cabelo de muita gente, inclusive de algumas atrizes da TV. Na verdade, não eram bem atrizes, pois elas só faziam pontas e figurações. Era o caso da dona Gema, que também não aceitava a velhice e toda semana tentava ser jovem no salão do meu padrinho. Dona Gema se orgulhava de ter aparecido duas vezes na novela Fera Ferida. Ela era uma das pessoas que caminhavam pra lá e pra cá nos cenários de rua. Agora, ela foi convidada para aparecer na novela Corações Solitários. Disse também que ia fazer o papel de uma vendedora de cachorro-quente. Ela ia aparecer por 20 segundos vendendo um cachorro-quente para o Antônio Fagundes. E nesse momento o salão parava porque dona Gema dizia que era muito do Antônio Fagundes. E que ele até já tinha convidado pessoalmente para fazer uma novela, na qual ele seria um milionário, e ela, a governanta da casa. E sinceramente até hoje ainda não sei para que servem as governantas. Nesse momento a mulherada do salão ficava de boca aberta. Mas havia as outras que não acreditavam muito naquela conversa.

“Antônio Fagundes. Sei. Se ele é tão teu amigo por que você não pode pra ele te tirara do Méier? Hahaha”, disse uma delas. Mas dona Gema não deixava por menos.

“Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Sou uma atriz profissional. Não misturo as coisas, queridinha.”

“Profissional? Hahaha!”

“Tá rindo de quê? Pelo menos não preciso mentir que moro em Botafogo.”

“Mas eu moro em Botafogo.”

“Mora coisa nenhuma. Você mora na Vila Kennedy!”

E logo quando ia começar em bate-boca, meu padrinho intervinha:

“Oh, gente! Assim não dá! Assim eu me desconcentro.”

Era a única coisa que meu padrinho sabia dizer nesses momentos. E mesmo depois da cara feia dele a discussão continuava baixinho.

Naquela galeria era muito divertido. Eu tinha um carrinho de fricção e ficava no corredor brincando com ele pra lá e pra cá. Até a hora de a minha mãe chegar. A gente esperava o meu padrinho terminar o serviço dele para irmos juntos. Minhas mãe vinha sempre muito cansada. Ela era caixa de um supermercado na Rua Siqueira Campos. Meu pai nunca estava em casa quando a gente chegava porque estava na rua ou pelos bares.

Nos fins de semana era bom porque todo mundo se encontrava de folga no cortiço da Lapa. Menos meu pai, que ainda andava por aí. A função no cortiço começava cedo como barulho dos bondes, pois o prédio localizava-se exatamente embaixo dos arcos da Lapa. Havia também a cachorrada. E de vez em quando algum vizinho discutia, principalmente por causa do tanque e por causa do espaço para estender a roupa. A única coisa ruim era quando eu tinha dor de barriga. O prédio tinha três andares, uns mil quartos, mas só um banheiro, que vivia sujo. Minha mãe, que era uma pessoa muito asseada, me obrigava a cagar num penico vermelho. Eu cagava atrás do sofá, pois tinha vergonha de que alguém me visse, até porque eu já tinha oito anos, e é nesse tempo que a gente começa a ter dignidade. Eu cagava cantando. A gente tinha uma vizinha que escutava o som nas alturas. E quase sempre a mesma música. Com o tempo até passei a gostar dela. Se quiserem posso cantar pouquinho:

Nada consigo fazer

Quando a saudade aperta

Foge-me a inspiração

Sinto a alma deserta

Um vazio se faz no meu peito

E, de fato, eu sito em meu peito uma vazio

Me faltando as suas carícias

As noites são longas

E eu sinto mais frio

Procuro afogar no álcool a tua lembrança

Mas noto que é ridícula

A minha vingança

Vou seguir os conselhos de amigos

E garanto que não beberei nunca mais

E, com o tempo, esta imensa saudade

Que sinto se esvai 

Desculpe se sou desafinado. Mas a música era assim: triste e bonita. Então eu cagava e cantava. E isso era muito bom. Até me vinha em assomo de chorar, mas como eu disse para vocês, chorar não resolve nada, nem mesmo quando a gente vai chorar por algo que não seja causado pela dor. Não resolve.

Foi por esse tempo que apareceu um livro no chão do nosso quarto. Não sei bem como ele foi parar lá, mas ele servia para equilibrar o pé da mesa que havia quebrado. Como eu não tinha muitos brinquedos, precisava dar um jeito de me divertir. Tirei o livro que apoiava a mesa e botei um tijolo no lugar. Era u livro de capa dura, vermelha, com dois cavaleiros desenhados em dourado. Passei a inventar histórias para me distrair. Eu ainda não sabia ler muito bem, e as crianças sempre precisam de uma ilusão. Mais tarde, quando aprendi a ler, descobri que era um livro besta. Posso dizer que, num primeiro momento, achei que se tratava da história mais idiota que alguém já escreveu.

É preciso ser muito atento para perceber quando a tristeza chega perto da gente. Nesse caso a minha mãe não era muito atenta, pois volta e meia eu a pegava chorando pelos cantos. Eu sabia que era por causa do meu pai. Ele não parava muito em casa, chegava sempre tarde, cheio de trago. Foi nesse tempo que minha mãe começou a perder a memória. Às vezes ela esquecia o que tinha feito há alguns minutos, depois ela começou a esquecer até o meu nome. Então eu me fazia de pai dela. Com o tempo aprendo que as mães gostavam um bocadinho de serem tratadas como filhas. Ela deitava a cabeça no meu colo. Eu passava as mãos nos cabelos crespos dela. Depois inventava um pouco de história e, às vezes, eu cantava, mas era só pra fazê-la sorrir, pois, como sabem, sou meio desafinado.

2.

Grande pessoa era o meu pai.

O velho me ensinou duas coisas: a primeira foi carregar tralhas, e a segunda foi deixar de chorar. Ainda pretendo descobrir para que serve um pai ─ não achei nenhuma utilidade para ele. Mas um dia vou saber tudo, vou ser homem, ter filhos e uma casa. É assim, está no programa. Enquanto isso vou me virando para me enquadrar.

Outra coisa que meu pai sabia fazer era partir. Cada vez que ia embora minha mãe morria um pouco. Às vezes, ela sentava no sofá e ficava me olhando.

“Teu pai é um canalha! João!”, dizia ela. “É um homem que não aprendeu a ser homem.”

E quando eu lhe dava algum desgosto, afirmava que eu era igual a ele.

Eu não acreditava, porque eu ainda não considerava um canalha. Eu ainda tinha uma visão boa dele. E ficava imaginando que meu pai voltaria com muito dinheiro e iria nos salvar da fome e da tristeza. Acontece que meu pai sempre voltava, mas sem dinheiro e muito triste.

Minha mãe estava doente. De vez em quando ela sentia uma forte dor na cabeça. Às vezes desmaiava e ao acordar custava para lembrar as coisas. Não lembrava nem do meu pai, o que era até um bom negócio, pois assim ela esquecia um pouco do desgosto.

No meu aniversário de dez anos meu pai resolveu ir embora, o que me deixou muito puto da cara. Eles passaram a noite brigando. Meu pai arrumou as coisas e saiu sem ao menos me olhar. Aquele foi o dia mais triste da minha vida. E não foi nem devido ao meu aniversário. Até porque essa coisa de idade não faz diferença nenhuma para quem vive se ferrando. Mas porque, assim que ele se mandou, minha mãe desmaiou no pé da escada. Comecei a gritar e rapidamente o pessoal do cortiço desceu. Chamaram uma ambulância.

Naquela noite, eu e meu pai ficamos no hospital. A certa hora os médicos mandaram chama-lo. E eu já estava até preparado para o pior, pois é assim que acontece nas novelas e nos filmes: os médicos mandam chamar alguém para contar a tragédia toda. Em seguida, começa uma música de violino muito triste. E foi exatamente assim que aconteceu. Minha mãe tinha um câncer na cabeça. E p câncer não costumava dar muitas chances. Vi de longe o rosto derrotado do meu pai. E veio a maldita música de violino na cabeça. Fiquei imaginando as coisas em câmera lenta. Devo sofrer de uma doença muito grave, porque sempre que acontecem coisas tristes vejo tudo em câmera lenta, como nos filmes. Mas aquilo não era um filme. Era a minha mãe que morria. E eu ali inventando uma música triste.

Meu pai veio em minha direção.

“Tua mãe morreu”, disse.

Depois sentou do meu lado. Colocou os cotovelos nos joelhos. Apoiou a testa nas m mãos. Não disse nada. Não chorava. Na minha cabeça a música do violino ficava mais forte e meu coração começou a doer. Os meus olhos se encheram d’água. Chorei um pouquinho. Mesmo não querendo, as lágrimas desciam pelo meu rosto, e eu solucei; meu nariz escorria. Acho que foi isso que irritou o meu pai, pois ele levantou bruscamente, me segurou pelos ombros e disse:

“Para de chorar, João. Chorar não resolve nada, entendeu?!”

Ele me deu apenas uma sacudida. E esse foi o meu consolo. Uma sacudida. Senti seu bafo de cachaça. Parei de chorar. Depois ele sentou novamente. Passou as mãos nos cabelos, como se estivesse com dor de cabeça. Mas o pior de tudo é que a música do violino persistia. E o pensamento da gente é assim mesmo: quando a gente não quer que ele pense, daí é que ele pensa. E pensa mais forte. E pensa mais difícil.

Depois desse dia foi tudo muito complicado. Meu pai não queria morar mais na Lapa, porque ficava lembrando toda hora dela, mesmo o meu padrinho dizendo que a gente podia mudar de quarto. No entanto, a lembrança é pior do que a morte. E a gente pode até mudar de quarto, mas não pode mudar de tristeza.

Meu pai nasceu no Rio Grande do Sul. Aos 16 anos se mandou para o Rio de Janeiro porque queria vencer na vida e ficar rico. Mas como podem ver, meu pai se enganou. E na vida acho que todos nos enganamos. Acontece que meu pai se enganou muitas vezes. Então, para fugirmos das lembranças de minha mãe, e dos enganos dele, viemos parar aqui no sul. Quanto a mim, não tive escolha. Evitava lembrar minha mãe. Para não chorar eu pensava em coisas que fossem melhores que a vida, e isso é uma coisa difícil, mas se a gente pensar bem acaba encontrando.

Gastamos um dia inteiro de ônibus para chegar a Porto Alegre. Nunca tinha visto tanto morro, pasto e vacas durante a viagem. Antes de chegar, a única coisa que eu sabia é que era um lugar frio, pois meu pais vivia me contando sobre a sua infância triste na Cidade Baixa, que eles não tinham isso e não tinham aquilo, que o frio era de rachar e um dia até nevou por aqui. Aí perguntei se na sua infância ele tinha feitos bonecos de neve. “Não seja besta, garoto, você acha que eu tinha tempo para essas coisas. No meu tempo a gente só tinha tempo para trabalhar. E mais, em Porto Alegre não neva”, ele respondia com muito rancor. E não há nada pior do que escutar o pai da gente contando uma história com rancor. Daí por diante meu pai desfilava sua vida miserável no frio do sul. Mas vou dizer a vocês que Porto Alegre não é só uma cidade fria. É também uma cidade triste. Não cheguei a essa conclusão pelas histórias do meu pai, nem porque chovia naquele dia em que cheguei aqui, até porque, como já disse, prefiro a chuva ao mar. Não sei dizer qual o motivo da tristeza desta cidade, mas acho que as coisas não precisam de motivos para serem tristes.




Trechos de Estela sem Deus

Este livro é uma obsessão. Uma profecia inventada. Uma espécie de vida imaginada a se cumprir. Aos dois anos de idade minha mãe me deu um livro chamado “decifrando o futuro”. Talvez ela não soubesse, mas ali, ela haveria de ordenar meu destino, me condenando aos livros e à tarefa de ficcionalizar a vida. Maldição intelectual.

Estela está neste livro porque precisava existir. Na verdade, Estela sempre existiu. Antes mesmo de ter escrito o meu primeiro romance O Beijo na Parede, ela estava lá. Eu apenas apurei os ouvidos e descobri sua voz.

(Estela sem Deus, Nota do autor, p. 9)

 I. A proteção do abandono

1.

Até os meus 13 anos, eu só tinha ido ao cemitério uma vez, e foi na ocasião em que a vó Delfina parou de respirar enquanto estava sentada na frente de casa, olhando o movimento da rua. Lembro que, naquele dia, eu conheci meus outros parentes mais afastados e todos estavam muito tristes. Mas, pouco antes de morrer a vó Delfina me ensinou algo importante sobre a perda. E isso ocorreu certa vez, quando eu e o Augusto brincávamos no pátio e vimos um filhote de passarinho cair do ninho e se espatifar na nossa frente. Dois pingos de sangue coloriram a terra. O ovo havia se partido ao meio e dentro dele estava um filhotinho frágil e trêmulo agonizava.

Ficamos olhando sem saber o que fazer. Então, o Augusto pegou um graveto, mexeu na casca do ovo e eu disse: não faz isso, Augusto. Mas meu irmão não me ouviu e continuou mexendo no passarinho como se a vida fosse um brinquedo. Então eu entrei em casa chamando a nossa avó. E hoje penso que a vó Delfina era mesmo uma pessoa muito delicada, porque os lugares em que ela estava sempre me apaziguavam, mesmo se um dia estivéssemos no meio de uma tempestade com trovões medonhos e estrondosos, ou numa guerra com bombas e feridos, seria sempre a vó Delfina a emprestar sua paz para as coisas.

Eu disse: vó, tem um passarinho morrendo lá no pátio e o Augusto está mexendo nele com um graveto, acho que ele está matando o bichinho. A vó Delfina levantou com certa dificuldade pedindo para que segurasse seu braço, fomos até o pátio. Quando chegamos, o Augusto estava apenas olhando o ovo partido. Disse que não tinha feito nada.

Ficamos nos três olhando aquele pequeno desaparecimento. Então perguntei: vó o que acontece durante a morte.

Minha vó era muito pensativa, e devo dizer que foi nesse dia que eu achei que ela fosse filósofa:

Não há “durante” quando se morre, Estela. Há somente um estar ou não estar mais na vida.

A vó Delfina disse aquilo com tanta serenidade que chegou a me doer. Tive vontade de chorar porque a simplicidade da morte me assustava e, talvez, percebendo minha tristeza, ela decidiu: vamos enterrá-lo. Eu concordei. Mas meu irmão achou uma grande bobagem e disse que preferia a tristeza dele com outras coisas.

A vó Delfina não deu importância para ele. Eu também não.

Estela, vá enterrá-lo, ela repetiu.

Mas eu, sozinha indaguei.

Sim, é assim que se lida com a morte, ela disse.

Olhei para a vó Delfina com certo receio, mas, mesmo assim, lhe obedeci. Peguei uma pazinha de plástico, dessas com que a gente costuma brincar na praia, e comecei a cavar. Depois peguei o filhotinho morto com todo cuidado e o coloquei no buraco. Cobri-o com terra.

Agora vamos rezar, falou a vó Delfina. Vamos rezar e pedir para que esse passarinho vire um santo.

Por que virar um santo, perguntei.

Porque os santos são seres que já se conheceram a morte, mas que gostaram tanto na vida que ainda permanecem entre nós.

Achei estranho, mas concordei. As filósofas são assim: dizem palavras que vão fazer sentido depois de terem feito certas voltas dentro da gente. A vó Delfina teve tanto cuidado com aquele funeral que depois até cheguei a pensar que a morte fosse uma espécie de ternura. À noite, não dormi muito bem porque fiquei me lembrando do passarinho embaixo da terra, sendo devorado por formigas e vermes. Pensar na morte me aprofundava, mas o medo me trazia de volta à superfície. E nessas horas eu achava que a natureza era violenta e injusta. Mas a vó Delfina dizia justamente o contrário, que era preciso pedir perdão à natureza, mesmo se não fôssemos culpadas; tínhamos sempre de pedir perdão aos bichos porque nós comemos, perdão ás árvores por derrubá-las, perdão ao mar por entrarmos nele

(Estela sem Deus, 2018, p. 15-17)

   *** 

2.

Certa vez, cheguei a pensar que meu irmão também fosse filósofo. Nesse dia, o pai dele havia morrido. Minha mãe recebeu uma ligação, depois sentou na sala em silêncio e o Augusto perguntou, o que foi mãe. E sem responder de imediato, ela começou a chorar devagar, como se estivesse economizando a tristeza. Foi então que percebemos que algo importante e grave estava por vir.

Em determinado momento, minha mãe virou-se para o Augusto e disse, sem muitos rodeios, que o pai dele tinha morrido. Meu irmão não disse nada. Nenhum de nós disse nada. E também não fazíamos muita ideia do que vinha pela frente. Logo a seguir, meu irmão se levantou, foi até a janela e ficou olhando para fora. Por algum motivo, achei que os filósofos agiam assim quando eram informados sobre a morte de alguém. Augusto não chorou naquele dia.

Quando meu pai desapareceu, eu também não chorei.

Minha mãe dizia que ele não merecia um pingo das minhas lágrimas porque um dia eu iria crescer e ser alguém, e que jamais precisaríamos dele ou coisa alguma na vida.

Mas hoje tenho consciência de que minha mãe só disse aquilo porque na época não fazia a mínima ideia do que nos esperava. Nós nunca sabíamos o que nos esperava. A gente teve de se acostumar com a vida vindo assim, a galope.

Minha mãe era empregada doméstica, mas tinha parado de trabalhar há algumas semanas pois contraiu uma doença nas mãos. Um dia, o médico olhou para as mãos dela e ficou preocupado. Falou que aquilo era causado pelos produtos que ela usava para limpar as casas. Alertou que dali em diante ela deveria usar luvas, mas minha mãe não contou nada disso aos patrões, pois ela tinha certeza de que achariam que toda aquela história era um tipo de capricho e não gastariam dinheiro com isso. As mãos de minha mãe eram negras, mas estavam cobertas com uma crosta de pele morta que a deixavam esbranquiçadas.

A gente estudava pela manhã, e à tarde ela nos levava para as casas que quase sempre ficavam na zona sul da cidade. Íamos porque ela dizia que tinha medo que o Augusto virasse aviãozinho do tráfico, e eu, uma prostituta, mas a gente sabia que na verdade ela nos levava mesmo para ajudá-la na limpeza. Não sei dizer se ela nos levava também para nos ensinar algo sobre a vida; só sei que no início, eu confesso, achava uma grande chatice. No fim das contas, percebi que eu estava errada em pensar daquela forma. No fundo, eu até gostava porque me habituava àqueles espaços, me imaginava morando naqueles apartamentos enormes, dormindo naqueles quartos grandes. Em algumas dessas casas havia piscina e tudo. Mas, antes de entrarmos, nossa mãe nos advertia: vocês não mexam em nada que não é de vocês porque, se fizerem isso, eu boto os dois na Febem. E nós não mexíamos em nada porque morríamos de medo de irmos para a Febem. Nossa mãe tinha um grande poder de convencimento sobre nós, principalmente quando o argumento era a vara de marmelo, a cinta, ou nesses casos, a Febem.

Admito que eu estava impressionada com o meu irmão, que ainda não tinha chorado a morte do pai, ao contrário da nossa mãe, que estava com lágrimas nos olhos. Porém, ela também não deixava de me impressionar porque a tristeza não a impedia de fazer as coisas: ela limpava a casa, fazia a comida, dava comida ao nosso cão. Desconfiei de que aquilo que minha mãe fazia, nunca parar a vida por causa do pranto, era uma espécie de milagre. Nesse dia, descobri também que o pai do meu irmão tinha outra família. Foi quando comecei a tomar a consciência das coisas, porque eu estava me tornando uma adolescente e já me preocupava com a vida. Eu estava me tornando uma moça, como dizia minha tia Odete, e então passei a entender certas coisas. Entendi por que o Fernando permanecia apenas um ou dois por semana em casa. Minha mãe dizia que ele viajava muito e que era uma pessoa ocupada. E nós acreditávamos em tudo, pois ela tinha consciência de que as crianças são fáceis de enrolar.

No cemitério, foi bom eu e o Augusto irmos juntos, porque um encorajava o outro quando tínhamos medo dos mortos. Nós olhávamos todas aquelas lápides e achávamos algumas esquisitas e engraçadas. Como aquelas estátuas mutiladas, ou as com nariz quebrado. Por vezes, esquecíamos por que estávamos ali. No entanto, esquecer a morte pode ser algo grave, porque o cemitério também existe para nos lembrar de que um dia nós estaremos ali embaixo da terra, junto com as minhocas, as raízes e os vermes. E às vezes ainda pensava naquele filhote de passarinho sendo devorado por outros bichos. Então, quando lembrava essas coisas, tirava qualquer possibilidade de sorrir. Além disso, eu não queria que a alegria estragasse o enterro do Fernando, pois meu irmão precisava compreender como se deve proceder no enterro de um pai.

As pessoas iam chegando e se postavam ao redor do caixão. Outras ficavam apenas alguns minutos ali, como se estivessem conversando com o morto. Então, chegou a vez de o Augusto e eu nos aproximássemos do defunto. Vi minha mãe chorar mais um pouco, mas agora o pranto já era mais contido. E essa era outra faceta da minha mãe: administrar a tristeza. E talvez a felicidade fosse só isso: saber administrar a tristeza. Eu tentei chorar, me esforcei, mas não consegui. Se eu já tivesse conhecido a Melissa naquele tempo, ela teria me dito que chorar não faz bem para quem já se dói.

Vimos que a outra família do pai do meu irmão havia chegado. Senti que o clima poderia pesar. Entrou outra mulher que parecia mais velha que minha mãe. Tinha os olhos tristes e cansados, estava acompanhada de duas crianças e um adolescente magro, alto e feio. Não avançaram. Nossa mãe colocou o braço em volta da gente, fazendo uma espécie de proteção, e depois disse, meus filhos, despeçam-se do pai de vocês. Mas eu pensei: Fernando não é meu pai. Além de não faze a mínima questão de que ele fosse, nunca nos demos muito bem, mas não importava. Rancores não cabem num enterro. O Augusto não sabia como se fazia para despedir de um pai morto, nem eu, porque meu pai não havia morrido, apenas desapareceu - no fundo, era quase a mesma coisa. Acho que nem os filósofos sabem se despedir.

(Estela sem Deus, 2018, p. 19-22).

***

Melissa disse que eu tinha que tomar dois comprimidos de uma vez e outros dois eu tinha que colocar na minha vagina o mais fundo que eu pudesse. Eu falei que nunca tinha visto alguém tomar comprimido pela vagina. Ela me olhou e disse que eu podia confiar nela. Que já tinha experiência nisso. Depois, me explicou que eu poderia sangrar e sentir cólica, mas que eu não me assustasse, que era assim mesmo. Eu não queria que fosse assim.

Melissa, você acha que meu filho é um poema que não deu certo, perguntei.

Esqueça isso, Estela. Deus não nos escreveu. Não somos literatura.





Entrevista ao nonada.com.br

Produção de Glauber Cruz

Era uma noite de temperatura amena a do dia 26 de abril, quando as pessoas se reuniram no fundo da Livraria Baleia para ouvir a conversa entre os escritores Jeferson Tenório e Fernanda Bastos. O bate-papo integrava a programação do lançamento de Estela sem Deus, segundo romance de Jeferson. “Só encontramos pessoas de vários setores da vida em duas ocasiões: a primeira na formatura, a segunda no velório”, disse ele provocando risos e fazendo logo em seguida a promessa de lançar mais livros para que tivesse, além da alternativa do velório, outras oportunidades para encontrar novamente todas aquelas pessoas.

Nascido no Rio de Janeiro e radicado em Porto Alegre há mais de 20 anos, Jeferson Tenório é uma das vozes mais altas nas discussões sobre a literatura afro-brasileira em Porto Alegre. Primeiro cotista negro formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Tenório evoca em suas histórias a formação, a religiosidade e o não-lugar dos negros no Brasil, potencializando suas narrativas ao situá-las e discuti-las na capital de um estado cultural e historicamente racista.

Dias depois do lançamento de seu segundo romance, Tenório encontrou a equipe do Nonada na Casa de Cultura Mário Quinta para conversar sobre o seu processo criativo, a invisibilidade das letras negras em eventos literários, a relação entre os papeis de professor e escritor e os desafios de ser um escritor negro em um país profundamente racista.

Glauber Cruz –  Então Jeferson, queria agradecer tu ter separado um tempinho pra dar essa entrevista pro Nonada e começando pelo Estela Sem Deus, teu novo livro, queria que tu contasse um pouco como é que nasceu, como foi a construção dele.

Jeferson Tenório – Bom, o Estela começou a ser escrito há bastante tempo, há cerca de quatro anos. Ele teve três versões, e a ideia principal era contar a história da minha mãe, que é uma cartomante, e eu queria contar a infância até a vida adulta. Mas essa primeira versão ficou muito biográfica, e eu achei que estava pouco literária. Fiz uma segunda reescritura e ela ficou já um pouco distanciada, até que eu cheguei nessa terceira versão que, ao invés de ser uma cartomante, é uma menina de 13 anos que quer se tornar filósofa. É uma menina negra, a história é contada em primeira pessoa e acontece em Porto Alegre e depois no Rio de Janeiro. A história é a trajetória dessa menina, dos 13 até os 16 anos, com essa ideia fixa de se tornar filósofa.

Glauber – A protagonista do Estela e o protagonista do O beijo na parede, teu primeiro romance, são duas crianças né. Por que escrever pelo olhar de uma criança?

Jeferson – Porque eu acho que o pensamento infantil é muito poderoso, atinge as pessoas de maneira muito mais contundente do que um adulto falando. Elas são mais sinceras, são mais honestas. Também ainda estão protegidas de uma certa ingenuidade. Escolher esse tipo de personagem, que me agrada bastante, sobre a questão do aprendizado, da educação sentimental que eles vão tendo ao longo da narrativa. Por isso, eu fico com vontade mesmo de fazer esse tipo de personagem. Diferente já dos contos que eu tenho escrito, que já passam por um outro olhar,  que é mais adulto. Mas nos romances eu gosto desse olhar mais pueril.

Glauber – E qual é dificuldade, quais são os desafios de se escrever como uma criança, para não parecer que é um adulto querendo falar com uma criança?

Jeferson – É, o desafio é imenso. No primeiro livro, O beijo na parede, o menino que começa a contar com 10 anos e termina com 11 anos. É necessário se colocar no lugar de uma criança, voltar à infância e ter uma espécie de alteridade também. Mas acho que o principal desafio é quanto à linguagem. Como fazer uma linguagem que seja infantil e ao mesmo tempo profunda? Para isso, eu busquei uma referência para mim, que é o Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa, em que a gente tem ali um sertanejo bastante humilde e simples, mas que é capaz de fazer reflexões muito profundas. Então eu busquei isso nos meus personagens, principalmente no João, n’O beijo na parede. Como diz a Clarice, “dá muito trabalho fazer o simples”. Eu sempre busco uma linguagem que seja fluída, simples, enfim, um livro que fale de coisas profundas, mas de maneira mais simples.

Glauber – Já são cinco anos [desde O beijo na parede], hoje qual é o teu olhar pra ele? Como que tu vê ele? É da mesma forma que tu via quando tu lançou?

Jeferson – Ontem mesmo eu fui numa escola falar sobre O beijo na parede. Eu fico impressionado, porque a cada lugar que eu vou falar do livro, é sempre um olhar diferente, alguém sempre chama atenção pra alguma coisa que eu não tinha percebido, é sempre surpreendente rever o livro. Eu não costumo reler O beijo na parede, só quando tenho que fazer uma edição nova, mas eu não gosto de ler porque eu corro o perigo de querer fazer uma modificação, mudar alguma coisa que eu não gostei… mas sempre muda, não é mais a mesma coisa de quando eu publiquei olhando agora pra esse livro. Parece que é sempre um livro novo.

Glauber – Tanto O beijo quanto o Estela se passam no Rio e em Porto Alegre, o que conversa muito com a tua trajetória de vida. O quanto do Jeferson que tem nesses dois livros, especialmente nesses dois livros que são romances que falam sobre crianças?

Jeferson – Tem tudo. Ou muita coisa. Eu sempre digo que o escritor que diz que escreve um livro e não tem nada da sua vida ali está mentindo. A diferença é que o escritor transfigura, traduz a experiência. A literatura é uma tradução de experiências. Essa transição, [com] personagens que estão sempre indo para um lugar, fez parte da minha vida, essa vinda do Rio de Janeiro para Porto Alegre. Na Estela é o contrário, ela sai de Porto Alegre e vai pro Rio de Janeiro. Me interessam muito esses personagens que transitam, que vão de um lugar para o outro, porque a minha infância e adolescência também foi essas idas e vindas. Porto Alegre, Rio de Janeiro, passar por muitas casas, muitos bairros, principalmente os bairros da região metropolitana, os subúrbios por onde eu caminhei e é por onde esses personagens também caminham, também passam.

Glauber – Tu vai ser o anfitrião da FestiPoa Literária, o que significa pra ti ser um escritor negro em Porto Alegre hoje?

Jeferson – Olha, eu acho que é meio solitário. No ano passado, houve aquele problema com a Feira do Livro em que chamavam poucos autores negros. Enfim, eu faço literatura no mínimo há 10 anos, 12 anos, e ano passado foi a primeira vez que eu fui chamado pra participar de um evento da Feira do Livro de Porto Alegre. Eu moro aqui em Porto Alegre há mais de 20 anos. Parece que o reconhecimento demora, é mais tardio. Se a gente for pensar na Conceição Evaristo, por exemplo, ela faz literatura desde a década de 1970, nos Cadernos Negros. E ela começa a ser reconhecida depois dos 70 anos de idade. Então tem alguma coisa errada aí. Mas principalmente em Porto Alegre, pelos lugares que eu frequento não ter muitos artistas ou escritores negros, isso faz com que eu tenha um profundo sentimento de solidão mesmo, de não reconhecer os meus pares. Então é nesse sentido, acho que é de solidão mesmo.

Glauber – Nesse sentido, tem algum prenúncio de mudança assim nesse cenário? Agora se discute muito literatura negra, a FestiPoa Literária vai ser focada nesse viés, tu acredita que há uma mudança começando?

Jeferson – Eu acho que muito lentamente. Acho que a FestiPoa é um grande evento que está dando destaque pra isso, não é de agora, já faz alguns anos que o Fernando Ramos, que é o organizador, já vem pensando nisso e já vem modificando algumas coisas. Nós não precisamos fazer um evento e dizer que “agora a gente vai falar de literatura negra”. A gente precisa olhar pra aquele evento e ver que há pessoas negras assim como há pessoas brancas, naturalizar as pessoas negras nesses espaços, nesses eventos. Mas enquanto isso não é naturalizado, é preciso marcar espaço, é preciso dizer, pra que as pessoas percebam “existem escritores negros né, existem poetas negras”. Mas eu acho que ainda está longe ainda da gente chegar num ideal ainda de evento literário.

Glauber – Falando não só de Porto Alegre, mas de Brasil, em que momento que a gente está na história da literatura negra?

Jeferson – Eu acho que está muito numa questão de celebração, de descoberta e celebração. Mas pouca leitura crítica. Se descobrem os autores, se celebra esses autores em alguns lugares, mas não há assim uma leitura mais séria, mais honesta, uma leitura que seja profunda desses autores. Me parece que é muito superficial. Então, é escritor negro, então a gente tem que falar dele ou tem que celebrar esse autor. Mas a leitura mesmo, a leitura mais crítica acho que falta.

Glauber – Voltando um pouco pra tua obra, o eu lírico do novo livro, e também do primeiro, é de uma menina, de uma criança. Como tu lida com essas questões de alteridade, de empatia, de lugar de fala que esse discute muito hoje, nas tuas obras?

Jeferson – Especificamente mais na Estela, quando eu comecei a escrever, há quatro anos, a expressão “lugar de fala” não era uma expressão que eu tinha ouvido falar ou que circulava. Acho que há uns três anos que começou a circular mais essa expressão. Eu fui pesquisar, li a respeito e comecei a me dar conta de que eu estava construindo uma personagem, uma menina de 13 anos e que eu estava me colocando no lugar desse personagem, o que me deixou extremamente preocupado. Muitas vezes, eu hesitei em dar ponto final na história por não me sentir seguro quanto a isso. Por outro lado, foi bom porque sentir insegurança na hora de escrever é fundamental. Nós não podemos ter certezas absolutas quando se escreve. Também quis me colocar uma barreira, uma dificuldade pra fazer o livro, porque eu acho que a dificuldade faz com que teu texto fique complexo. Eu preciso de certa forma lutar com a literatura ou lutar contra a literatura. Isto é, me impôr dificuldades pra que a partir delas eu consiga situações complexas. Foi isso que eu tentei fazer com a Estela.

Mas antes dele ser publicado, eu passei pra algumas pessoas lerem. A Priscila Pasko foi uma que leu, a  Aline Vanim, a Ediane Gheno, enfim, várias pessoas, várias mulheres leram esse texto e a partir dessas leituras críticas eu refiz o texto, fui refazendo algumas cenas, até chegar no momento que bom: é preciso dar um ponto final. Ainda assim, me sinto inseguro. Não é uma personagem que eu fique confortável. Eu sei que estou num campo chamado ficção, literatura, em que se permite que nós transitemos em identidades, então eu posso me colocar no lugar de uma mulher, posso me colocar no lugar de uma criança, posso me colocar no lugar de um velho, então a literatura permite essas coisas. Nesse sentido que eu acho que eu consigo produzir uma obra como a Estela.

Glauber – Partindo agora mais pro lado do Jeferson leitor. Tu citou Guimarães Rosa e Grande Sertão: Veredas, quais são os títulos e autores que contribuíram muito pra construção do Jeferson escritor?

Jeferson – Acho que dois livros que me causaram uma profunda transformação, um deles é o Dom Quixote. Eu li ele muito tarde, já estava na faculdade quando eu li, e foi um momento de iluminação. O outro livro foi o Grande Sertão: Veredas, que me deixou muito impactado. E depois ter conhecido a Carolina Maria de Jesus, Quarto de Despejo, que foi também uma outra iluminação que eu tive. Eu considero que esses três livros tenham feito muita diferença na minha formação. E depois outros autores, Clarice Lispector, gosto muito do que ela escreve, releio muitas vezes; Caio Fernando Abreu, a própria Conceição Evaristo. Enfim, são muitos autores que eu gosto e acabam fazendo parte da minha trajetória.

Glauber – E quais são as principais diferenças – se tem diferença – do Jeferson leitor antes de escrever e publicar romances e contos pro Jeferson de depois?

Jeferson – Ah, ficou muito mais difícil escrever depois. Quando eu li Grande Sertão: Veredas,  eu disse “nossa, eu nunca vou me atrever a escrever alguma coisa porque olha só o que o cara já fez né, com essa linguagem toda”. Mas é uma espécie de humilhação que a gente passa quando  a gente percebe que há uma coisa tão grandiosa e tu te colocar nesse lugar de também fazer coisas grandiosas é muito difícil. Parece que tu tem que baixar um pouco o teu ego assim né, e a partir então disso tu começa então a escolher o teu caminho e aí fazer uma literatura, uma voz né, encontrar a tua voz pra fazer isso. Então, depois da leitura ficou muito difícil, começar a escrever, enfim, depois de tudo que já foi produzido.

Glauber – E tem algum nome recente, título o autor, que tu acredite que daqui pra frente seja referência pra alguém também?

Jeferson – Na verdade, enquanto eu estou fazendo o meu doutorado eu não tenho conseguido ler muitos contemporâneos. Mas eu sei de alguns autores. A Cidinha da Silva, que mora em Minas Gerais; a própria Eliane Marques que é uma poeta aqui de Porto Alegre, foi vencedora do Açorianos no ano passado; a gente tem o Allan da Rosa, que mora em São Paulo que é um grande escritor. Essas são as minhas referências mais contemporâneas nesse sentido. E literatura africana que eu acabo lendo direto, o Mia Couto, a Paulina Chiziane, o Agualusa, o Ondjaki. Esse é o meu universo. Sem contar também autores que sempre me acompanham, volta e meia sempre acabo relendo esses autores que são os canônicos né, digamos assim. Machado de Assis, Dostoiévski,  autores que acabam sempre aparecendo e que eu preciso reler.

Glauber – Falando também um pouco do Jeferson professor, qual a é a influência do teu trabalho como autor na tua vida como professor e vice-versa? Tem alguma conversa entre esses dois?

Jeferson – Ah, totalmente. Eu acho que eu não conseguiria fazer O beijo na parede nem Estela se eu não fosse professor. Os meus alunos acabam sendo material estético dos meus personagens. Eu trabalho com adolescentes de 15 anos, nessa faixa de idade. Então a observação dos conflitos dessas crianças, desses adolescentes, me ajuda muito na hora de construir esses personagens. Nós discutimos muito literatura também. Impressionante porque às vezes eu aprendo muito mais com eles ali, discutindo coisas, do que numa sala de pós-doutorado ou de doutorado. As crianças dizem coisas muito mais contundentes, mais impactantes do que na academia.

Glauber – Nesse sentido, pra ti como professor e tendo esse contato com eles assim, qual é a potência da literatura na formação de uma criança?

Jeferson – Olha, a potência é bastante forte e necessária. Os meus alunos percebem que eu gosto muito de literatura e eu tento passar isso pra eles, Quando eles percebem que a literatura é importante, eu percebo que há uma mudança de atitude em relação à visão que eles têm do mundo, da vida. Eu explico pra eles que a literatura não é de ordem prática, ela é de ordem introspectiva, ela é interna, ela é demorada, ela precisa ser saboreada. Então é um processo de sensibilização mesmo. É um instrumento muito potente pra compreender o mundo, compreender a vida.

Glauber – Pegando gancho nisso que tu falou como que a gente pode ver a literatura como uma ferramenta de mudança social, que ajude a acabar com as desigualdades raciais e sociais?

Jeferson – Acho que diretamente a literatura não pode fazer muita coisa. A literatura não salva ninguém, o que salva é o que a gente faz com a literatura, que são coisas diferentes. Agora, colocar isso que a literatura pode ser responsável por mudanças sociais, acho que pode ser algo muito superficial. Acho que o sujeito imbuído de literatura pode fazer alguma coisa nesse sentido. Por exemplo, ontem me perguntaram por que os meus personagens são tão tristes, parece que não tem saída. E eu quis dizer que a tristeza que aparece nos livros não é uma tristeza melancólica como a dos portugueses. Ela é uma tristeza como um método de sobrevivência. O que é esse método de sobrevivência? Significa que quem é triste nos meus livros, é porque discorda da vida, eles são inconformados com as coisas. Essa tristeza então aparece como uma forma de luta, não é uma tristeza que te paralisa. Te faz ser inconformado com as coisas. Então, eu acho que se o leitor consegue se dar conta disso, a partir disso ele pode fazer alguma coisa, porque não é garantia. Acho que a literatura vai nesse sentido, de instrumentalizar as pessoas para fazer alguma coisa.

Glauber – E como tu vê, nesse sentido, um evento com a FestiPoa e, tu deu o exemplo da Feira do Livro do ano passado, como tu vê esses espaços? Eles podem ser de ordem mais prática ou não também?

Jeferson – É que existe uma diferença. Eu produzir uma obra literária com um intuito de fazer alguma coisa de ordem prática, outra coisa é tu elaborar um livro em que essas temáticas aparecem naturalmente. Então tu tem um tipo de literatura diferenciada. Agora em relação aos espaços, esses eventos literários, eu acho que tem que ser de ordem prática mesmo, a gente tem que colocar pessoas negras ali dentro porque a gente tá vendo que não existe. Nesse sentido, as coisas têm que ser mais claras, elas têm que aparecer ali né. E parece que isso só é, só acontece quando há uma pressão, que foi o caso do ano passado na Feira do Livro. Houve uma pressão, minha e do Ronald Augusto, em que nós escrevemos uma série de artigos e aí sim que Feira do Livro tomou alguma atitude. Mas parece que é preciso sempre haver uma pressão externa, senão não funciona.

Glauber – Falando um pouco do Jeferson Jeferson, e falando desse teu trajeto Rio de Janeiro e Porto Alegre. Hoje tu se vê como um carioca que mora no Rio Grande do Sul,  ou se vê como um gaúcho que não é mais tão carioca? Como que tá essa situação?

Jeferson – É um conflito de identidades. Ontem saiu uma nota no jornal [sobre o lançamento do livro “Estela Sem Deus] dizendo “escritor carioca lança romance”. Eu achei aquela frase tão esquisita porque eu não tenho mais o vínculo com o Rio de Janeiro né. Eu só nasci lá e fiquei 13, 12 anos lá. Mas ao mesmo tempo quando eu estou aqui às vezes eu me sinto estrangeiro, em função de ser negro né, e não porque eu morava no Rio de Janeiro. Me sinto um pouco estrangeiro e num conflito de identidade. Sou gaúcho, sou carioca. Então, não há uma definição.

Glauber – E como lidar com essa situação de solidão de escritor negro em Porto Alegre e lidar com essa sensação de ser um estrangeiro nesse espaço?

Jeferson – Quando eu vim pra cá, e falando um pouco do João d’O beijo na parede, tem um momento que ele diz que Porto Alegre é uma cidade triste, ele não sabe dizer porquê. E é a mesma sensação que eu tenho, talvez seja o inverno, não sei o que, mas eu lembro que quando eu cheguei aqui eu tive essa sensação. De sair de uma cidade super alegre, pra cima, praia… e aí chegar aqui e descobrir que as pessoas vão pra praia uma vez por ano e que há toda uma expectativa pra isso, a praia é o grande evento. E no Rio de Janeiro não é. Tá, pega um ônibus e em 1h, sei lá 30 minutos, dependendo de onde tu mora tu tá na praia. Acho que ficar longe do mar dá um pouco de tristeza. Acho que é isso.

Glauber – Jeferson as perguntas eram essas, tu quer acrescentar mais alguma coisa?

Jeferson – Não acho que é isso. Queria agradecer ao Nonada também. Sei das grandes dificuldades que o jornalismo alternativo tem e acho que é super importante continuar porque a gente tem uma mídia que infelizmente não dá conta dessa produção que fica à margem e aí vocês estão lá. Eu acompanho isso e fico muito contente de ter sido convidado por vocês e dar essa entrevista. Agradeço todos vocês.




2 comentários:

  1. Prévidi,

    O Jeferson, nosso homenageado nesta cesta literária, tem um paralelo com outro negro, este de origem norte-americana, Malcolm Little, conhecido por Malcolm X, em relação a decepções com professores.
    Quando jovem, formando-se na escola de sua cidade, sua professora passa a inquirir os alunos em relação à profissão que almejam para o futuro.
    ‘Quero ser médica’, diz uma lourinha de olhos azuis. Muito bem, muito bem, Ellen; ‘eu quero ser engenheiro da Nasa’, diz outro menino, também louro, também de olhos azuis, ao que a professorinha bisa um ‘muito bem, parabéns’. Quando foi a vez do nosso futuro líder pelo viés não pacífico do Movimento Pelos Direitos Civis Dos Cidadãos Americanos Negros (em contraponto a Martin L. King, este um pacifista), um alegre Malcolm X responde, advogado, ao que a professorinha, também branquinha, também de belos olhos azuis, responde-lhe, ‘Malcolm, quem sabe tu escolhes algo mais razoável a tua condição, tipo pedreiro, motorista de ônibus, gari...
    Isso é vero, está na biografia dele. Lamentavelmente, morreu muito jovem, assassinado por um membro da seita religiosa que professava, em 1965, com apenas 40 anos.
    Parabéns ao querido Jeferson, um jovem de 44 anos e todo um largo caminho pela frente. Mais sucesso ainda, cara!

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  2. "E é a mesma sensação que eu tenho, talvez seja o inverno, não sei o que, mas eu lembro que quando eu cheguei aqui eu tive essa sensação. De sair de uma cidade super alegre, pra cima, praia… e aí chegar aqui e descobrir que as pessoas vão pra praia uma vez por ano e que há toda uma expectativa pra isso, a praia é o grande evento. E no Rio de Janeiro não é."

    Como é que esse cara ainda não ganhou o Nobel? Impressionante...

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