Sexta, 9 de setembro de 2022

 

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Todos podem fazer críticas, a mim, a qualquer pessoa ou instituição. Desde que SE IDENTIFIQUE. Não apenas com o primeiro nome. Claro que existem pessoas que conheço e que não necessito dessas informações. MAS NÃO VOU PUBLICAR CR[ÍTICAS FEROZES OU BRINCADEIRAS DE PÉSSIMO GOSTO. NADA DE OFENSAS, NEM ASSINANDO!! 

E não esqueça: mesmo os "comentaristas anônimos" podem ser identificados pelo IP sempre que assim for necessário. Cada um é responsável pelo que escreve.


especial

Nesta sexta, uma cesta
de Jack London! 



Um dos mais famosos no mundo e,
por isso, acumulou grande fortuna






Um osso para o cão não é caridade. A caridade é o osso compartilhado com o cão, quando você está tão faminto como o cão.


A vida? Não tem valor nenhum. Entre as coisas baratas é a mais barata.


A verdadeira função do homem é viver, não existir.




Jack London

John Griffith Chaney, conhecido como Jack London. nasceu em São Francisco (USA) em 12 de janeiro de 1876. Foi jornalista, escritor e ativista social. Pioneiro no mundo das revistas de ficção, foi um dos primeiros autores a obter fama mundial e, por isso, acumulou grande fortuna. Dentre suas obras mais conhecidas, estão O Chamado da Natureza, Antes de Adão, Caninos Brancos e O Lobo do Mar.


Consta que seu pai é o astrólogo William Chaney. A mãe, Flora Wellman, uma professora de música e espiritualista que alegava receber o espírito de um chefe indígena Vivia com Chaney em São Francisco e engravidou. Conforme um relato de Flora, registrado pelo San Francisco Chronicle de 4 de junho de 1875, Chaney exigiu que ela fizesse um aborto.


Quando se recusou, Chaney negou qualquer responsabilidade pela criança. Ela, em desespero, atirou em si própria, ficando superficialmente ferida. Logo que o bebê nasceu, Flora entregou-o à ex-escrava Virginia Jenny Prentiss, que seria uma figura por toda a vida de London.


No final de 1876, Flora Wellman se casou com John London, um veterano da Guerra da Secessão parcialmente incapacitado, e trouxe seu filho John ainda bebê, que mais tarde seria conhecido como Jack, para viver com ela e seu novo marido. A família se mudou várias vezes na área da Baía de São Francisco, até se fixar em Oakland, onde London completou seus estudos.

Em 1897, aos 21 anos e estudando na Universidade da Califórnia, em Berkeley, London procurou e encontrou as notícias de jornal sobre a tentativa de suicídio de sua mãe e o nome de seu suposto pai biológico.


London escreveu para William Chaney, que então vivia em Chicago. Em 4 de junho de 1899, Chaney respondeu que não poderia ser o pai por ser impotente, dando a entender que sua mãe tivera relações com outros homens e que ela o caluniara ao dizer que ele insistira em um aborto.

London ficou arrasado com a carta. Meses depois, ele deixou a Universidade em Berkeley e foi para o Klondike. Uma observação: a certidão de nascimento de Jack London parece ter sido destruída nos diversos incêndios que se seguiram ao terremoto de São Francisco de 1906, e assim é impossível saber o nome de quem aparecia no documento como sendo o pai dele.

London nasceu próximo às ruas Terceira e Brannan em São Francisco. A casa queimou em um incêndio após o terremoto de 1906 em São Francisco. A Sociedade Histórica da Califórnia instalou uma placa no local em 1953. Embora fosse uma família de classe trabalhadora, não era tão pobre quanto London alegaria em relatos posteriores. 

Em 1885, ele leu Signa, o longo romance vitoriano de Ouida. Segundo ele, essa foi a semente de seu sucesso literário. E em 1886, na Biblioteca Pública de Oakland, ele encontrou uma simpática bibliotecária, Ina Coolbrith, que o encorajou a aprender (mais tarde, ela se tornaria a primeira poetisa premiada da Califórnia e figura importante na comunidade literária de São Francisco).

Em 1889, London começou a trabalhar de 12 a 18 horas por dia na fábrica de enlatados Hickmott's. Buscando uma saída, pegou dinheiro emprestado com sua mãe adotiva negra, Virginia, comprou o pequeno barco a vela Razzle-Dazzle de um pirata de ostras chamado French Frank e se tornou ele próprio um pirata de ostras. Em seu romance John Barleycorn, ele alega ter roubado a amante de French Frank, Mamie. Após alguns meses, o barco ficou avariado demais para ser reparado. London foi contratado como membro da Patrulha Pesqueira da Califórnia.

Em 1893, depois de ter lido Moby Dick, de Herman Melville, se alistou para embarcar na escuna Sophie Sutherland, em viagem para a costa do Japão. Ao retornar, seu país vivia tempos turbulentos, com a crise de trabalho atingindo proporções desastrosas.

Oakland era assolada por agitações trabalhistas. Após trabalhos extenuantes em uma fábrica de juta e numa usina de força para bondes, London se uniu à marcha de protesto de trabalhadores desempregados conhecida como Exército de Kell e começou uma carreira como andarilho. Revelou-se um mestre na arte de viajar de trem de ferro como clandestino.


Em 1894, passou 30 dias na penitenciária do condado de Erie, em Buffalo, por vadiagem. Em  A Estrada ou Vagabundos Cruzando a Noite, escreveu:

"O açoite era meramente, de fato, um dos horrores menores e impublicáveis da penitenciária do condado de Erie. Eu digo 'impublicáveis', mas deveria dizer mesmo indescritíveis. Para mim, eram impensáveis até que os vi, mesmo não sendo eu nenhum novato nos caminhos do mundo, nem nos horrendos abismos da degradação humana. Seria preciso um mergulho profundo para chegar ao recôndito da penitenciária do condado de Erie, mas me restrinjo à leveza das coisas superficiais e jocosas, conforme as vi."

Após várias experiências como vagabundo e marinheiro, London retornou a Oakland e se matriculou no Ginásio Oakland, contribuindo com diversos artigos para o jornal acadêmico, o Aegis. Seu primeiro trabalho publicado foi Tufão nas Costas do Japão, em que contava suas experiências de marinheiro. A história ganhou o primeiro lugar num concurso literário patrocinado pelo jornal San Francisco Call e lhe rendeu 25 dólares.

London queria cursar a Universidade da Califórnia, em Berkeley. Em 1896, após um verão de estudo intenso para passar nos exames de admissão, foi admitido. Circunstâncias financeiras forçaram-no a deixar a universidade em 1897 e ele nunca se formou.


Em 12 de julho de 1897, London, então com 21 anos, e seu cunhado James Shepard embarcaram para tomar parte na Corrida do Ouro do Klondike, que se tornaria o cenário de suas primeiras histórias de sucesso. A passagem de London pelo Klondike, contudo, prejudicou sua saúde. Como tantos outros homens mal alimentados nas lavras de ouro, London desenvolveu escorbuto. Suas gengivas incharam, fazendo com que perdesse seus quatro dentes da frente.


Uma dor agonizante constante afligia seus quadris e os músculos de suas pernas e seu rosto ficou vincado por marcas que sempre o lembrariam de sua luta no Klondike. O padre William Judge, O Santo de Dawson, tinha instalações em Dawson onde oferecia abrigo, alimento e qualquer remédio que pudesse obter para London e outros. Seus esforços inspiraram um dos contos de London, A Fogueira, que muitos críticos consideram o seu melhor.


Seus patrões em Dawson eram os engenheiros de minas Marshall Latham Bond e Louis Whitford Bond, irmãos educados em Yale e Stanford e cujo pai, o juiz Hiram Bond, era um rico investidor em mineração. Os Bond, especialmente, Hiram, eram Republicanos ativos. O diário de Marshall Bond menciona contendas amistosas com London sobre questões políticas à guisa de passatempo.

London deixou Oakland com uma consciência social e inclinações socialistas e retornou para se tornar um ativista do socialismo, concluindo que sua única esperança de escapar à "armadilha" do trabalho era se educar e "vender seu cérebro". Para ele, escrever era um negócio, sua passagem para fora da pobreza e, esperava, um meio de vencer a abastança em seu próprio jogo. Ao retornar à Califórnia em 1898, London começou a trabalhar deliberadamente para ser publicado, um esforço que descreveu em seu romance Martin Eden.

Sua primeira história publicada foi To the Man On Trail, frequentemente incluída em antologias. Quando o The Overland Monthly ofereceu somente 5 dólares por sua história e demorou a pagar, London quase abandonou sua carreira de escritor. Em suas palavras, "fui salvo literalmente e literariamente" quando o The Black Cat aceitou sua história Um milhar de mortes, pagando 40 dólares.

London foi feliz ao escolher o momento de iniciar sua carreira de escritor. Foi justamente nessa época que novas tecnologias possibilitaram o surgimento de revistas com produção de baixo custo. Isso resultou em uma explosão de revistas populares voltadas para um grande de público e um forte mercado para contos. Em 1900, London ganhou 2.500 dólares escrevendo, algo em torno de 65.000 dólares em valores atuais. Sua carreira estava em bom caminho.

Entre os trabalhos que vendeu para revistas estava um conto conhecido tanto como Batard quanto Diable, em duas edições de basicamente uma mesma história. Um franco-canadense cruel brutaliza seu cachorro. O cachorro reage e mata seu dono. London disse a alguns de seus críticos que as ações dos homens são a principal causa do comportamento de seus animais e que mostraria isso em outro conto.

Em 26 de janeiro de 1903, Jack London entregou o manuscrito concluído de The Call of the Wild ao The Saturday Evening Post. Em 12 de fevereiro, o editor concordou em comprar a história se London cortasse até cinco mil palavras e desse seu preço. Jack concordou e estabeleceu o preço em 0,03 dólar por palavra. Em 3 de março, recebeu um cheque de 750 dólares. Dois dias depois, a editora Macmillan comprou os direitos do livro por 2.000 dólares, com a promessa de promover uma extensa publicidade. Na época, pareceu um acordo muito sensato.

Os livros anteriores de London não chegaram à lista dos mais vendidos e nem ele, nem o editor da Macmillan em Nova York, George Platt Brett, poderia prever se The Call of the Wild seria muito melhor. Se naquela época Jack soubesse que seu livro se tornaria um clássico da literatura norte-americana, cujos royalties o fariam rico, a barganha teria sido diferente.

Ainda assim, sem o extenso programa promocional, aquele poderia facilmente ter sido apenas mais um livro sobre cães. Isso nunca se saberá, mas Jack jamais se arrependeu de sua decisão, percebendo que a promoção extra da Macmillan fora um fator fundamental para seu sucesso.

A história começa em uma propriedade no Vale Santa Clara e tem como personagem um mestiço de São Bernardo com Pastor Escocês, chamado Buck. A cena de abertura descreve a fazenda da família Bond, que London uma vez visitara. Buck foi inspirado em um cão que os irmãos Bond emprestaram a London em Dawson.

Quando morava em uma vila alugada no lago Merritt em Oakland, London conheceu o poeta George Sterling e, com o tempo, eles se tornaram amigos. Em 1902, Sterling ajudou London a encontrar uma casa mais perto da sua, próxima a Piedmont. Em suas cartas, London chama Sterling de "Grego", devido a seu nariz aquilino e perfil clássico, assinando-as "Lobo". Mais tarde, descreveria Sterling como Russ Brissenden em sua novela autobiográfica Martin Eden (1909) e como Mark Hall em The Valley of the Moon (1913).

Em sua vida madura, London se permitiu uma ampla gama de interesses, acumulando uma biblioteca pessoal de 15 mil volumes.


London se casou com Elizabeth Maddern, ou Bessie, em 7 de abril de 1900, no mesmo dia em que O filho do lobo foi lançado. Bessie fizera parte de seu círculo de amizades por alguns anos.


Durante o casamento, London continuou sua amizade com Anna Strunsky, sendo coautora de The Kempton-Wace Letters, um romance epistolar que contrasta duas filosofias do amor. Anna, escrevendo as cartas de Dane Kempton, defendia uma visão romântica do casamento, enquanto London, escrevendo as cartas de Herbert Wace, argumentava por uma visão científica, baseada no darwinismo e na eugenia. No romance, a personagem de ficção contrastava com a mulher que London conhecia.



O nome carinhoso de London para Bessie era Mamãezinha e o de Bessie para London, "Papaizinho". Sua primeira filha, Joan, nasceu em 15 de janeiro de 1901 e a segunda, Bessie (mais tarde chamada de Becky), em 20 de outubro de 1902. Ambas nasceram em Piedmont, Califórnia. Ali, London escreveu um de seus trabalhos mais elogiados, A Chamada da selva.

O casamento passava por dificuldades. London reclamava com seus amigos Joseph Noel e George Sterling que "Bessie é devotada à virtuosidade. Quando digo a ela que moralidade é apenas sinal de baixa pressão sanguínea, ela me odeia. Ela venderia a mim e as crianças em nome de sua maldita virtuosidade. É terrível. Toda vez que volto para casa depois de passar a noite fora, ela não me deixa ficar no mesmo quarto que ela". Parece que Bessie receava que Jack estivesse se envolvendo com prostitutas e adquirisse alguma doença.

Em 24 de julho de 1903, London disse a Bessie que estava saindo de casa. Em 1904, London e Bessie negociaram os termos de um divórcio, que foi concedido em 11 de novembro de 1904.


London havia sido apresentado a Charmian Kittredge por seu editor da MacMillan, George Platt Brett, quando Kittredge era sua secretária. Após se divorciar de Bessie Maddern, London se casou com Kittredge, em 1905. Ela tornou-se sua companheira inseparável em cavalgadas e pescarias, passando a acompanhar também a criação e o desenvolvimento dos seus originais. Enquanto estiveram juntos, viajaram diversas vezes, incluindo um cruzeiro no iate Snark para o Havaí e a Austrália. Muitas das histórias de London se baseiam em suas visitas ao Havaí, a última delas por dez meses, começando me dezembro de 1915.

O casal também visitou Goldfield, Nevada, em 1907, onde foram hóspedes dos irmãos Bond, os chefes de London em Dawson. Os irmãos Bond trabalhavam em Nevada como engenheiros de minas.

Seu nome carinhoso para Charmian era "companheira". A tia e mãe adotiva de Charmian, uma discípula de Victoria Woodhull, a criara sem puritanismo. Todos os biógrafos aludem à sexualidade desinibida de Charmian. London descobriu em Charmian Kittredge não somente uma parceira sexualmente ativa e aventurosa, mas sua futura companhia para toda a vida. O casal tentou ter filhos. Uma criança morreu no parto e outra gravidez foi abortada espontaneamente.

Em 1906, London publicou na revista Collier's seu testemunho do terremoto de São Francisco.

Em 1905, London comprou um rancho de mil acres (4 km²) Glen Ellen, condado de Sonoma, Califórnia, por 26.450 dólares, escrevendo que "Juntamente com minha esposa, o rancho é a coisa que mais prezo neste mundo." Ele tentou fazer do rancho um empreendimento comercial bem-sucedido. Escrever, que sempre fora um empreendimento comercial para London, então se tornara mais ainda um meio para um fim:

"Escrevo com nenhum outro propósito senão fazer crescer a beleza que agora pertence a mim. Escrevo um livro por nenhum outro motivo que não seja acrescentar três ou quatro centenas de acres à minha magnífica propriedade."

Após 1910, seus trabalhos literários eram, na maioria, mundanos, escritos para atender à necessidade de receita para o rancho.

Estudou manuais de agricultura e científicos, concebendo um sistema de administração rural que hoje seria elogiada por sua sensatez ecológica. London tinha orgulho de ser proprietário do primeiro silo de concreto na Califórnia, um chiqueiro circular projetado por ele, e esperava adaptar a filosofia da agricultura sustentável asiática aos Estados Unidos. Para tanto, contratou pedreiros italianos e chineses, cujas diferenças marcantes de estilo são óbvias.

O rancho foi um fracasso econômico. Sempre com falta de dinheiro e com despesas crescentes, London, regressou ao lucrativo tema do Alasca em contos como Lost Face, Burning Daylight (história de Daylight, homem de tremenda energia que arranca uma fortuna nas minas do Klondike para e seguida renunciar idealistiamente à riqueza tão arduamente conseguida) e Smoke Bellew (1912). A sua longa viagem marítima deu origem ao autobiográfico O cruzeiro do Snark, e a uma sucessão de histórias e romances sobre o Pacífico: When God Laughs, Adventure, South Sea Tales, A Son of the Sun e The House of Pride.

Em 1912 contornou o cabo Horn no veleiro Dirigo, viagem que deu origem ao soturno romance The Mutiny of the Elsinore. Charmian sofreu o segundo aborto e assim se desvaneceram as possibilidades de ele vir a ter um rapaz.


A sua última desgraça foi perder uma mansão de pedra de 1.400 m² (a Casa do Lobo) que havia mandado construir em sua propriedade e na qual já havia gasto 80.000 dólares (1.930.000 em valores atuais). Quando já estava pronta, um incêndio, possivelmente criminoso, destruiu boa parte da mansão, consumindo tudo o que era em madeira.


Alguns de seus melhores contos foram escritos nos tempos de declínio, particularmente os de The Strength of the Strong (1914). Outras coleções de histórias foram The Night Born e The Turtles of Tasman. Prosseguiu com os seus romances sobre boxe com The Abysmal Brute e com a ficção científica em A Praga Escarlate de 1915. Contudo, a sua obra mais extraordinária em termos de imaginação foi o romance sobre a vida prisional e viagens no tempo, O Andarilho das Estrelas.

A última visita de London ao Havaí, no início de dezembro de 1915, durou oito meses. Durante a visita, London se encontrou com o duque Kahanamoku, o príncipe Jonah Kūhiō Kalaniana’ole, a rainha Lili’uokalani e muitos outros, antes de retornar ao seu rancho em julho de 1916. Na época, sofria de falha renal, mas continuava a trabalhar.


O rancho (as ruínas da Casa do Lobo) é hoje um Marco Histórico Nacional e protegido no Parque Histórico Estadual Jack London.

Alguns afirmam que ele se suicidou. Essa conjectura parece ser um rumor, ou especulação baseada em incidentes em seus escritos ficcionais. Sua certidão de óbito declara a causa da morte como uremia, após cólica renal aguda, um tipo de dor descrita como "a pior dor jamais experimentada", causada por cálculos renais. Uremia também é conhecida como envenenamento urêmico.

Jack London morreu em 22 de novembro de 1916, em uma varanda de um chalé de seu rancho. Sentia dores extremas e tomava morfina, sendo possível que uma sobredose de morfina, acidental ou deliberada, tenha causado sua morte.

A ficção de London descrevia suicídio. Em sua novela autobiográfica Martin Eden, o protagonista comete suicídio por afogamento. Em seu romance autobiográfico John Barleycorn, ele alega uma vez, quando jovem e bêbado, ter cambaleado e caído ao mar na Baía de São Francisco, "subitamente obcecado por um vago pensamento de me deixar levar pela maré". London disse que ficou à deriva e quase conseguiu se afogar, antes de recuperar a sobriedade e ser resgatado por pescadores. No desenlace de “The Little Lady of the Big House”, a heroína, confrontada com a dor de um tiro mortal, comete suicídio com morfina, com ajuda de um médico.

London era um homem robusto, mas sofreu com diversas doenças graves, inclusive o escorbuto no Klondike. Na época de sua morte, sofria de disenteria e uremia. Durante viagens no Snark, ele e Charmian podem ter contraído infecções tropicais não especificadas. A maioria dos biógrafos, incluindo Russ Kingman, hoje concorda que London morreu de uremia agravada por uma dose acidental de morfina.

As cinzas de London foram sepultadas, juntamente com as de sua segunda mulher, Charmian (que morreu em 1955), no Parque Histórico Estadual Jack London, em Glen Ellen, Califórnia. Apenas uma rocha coberta de musgo marca o local da simples sepultura.



A verdadeira função do homem é viver, não existir. Eu não gastarei os meus dias a tentar prolongá-los. Usarei o meu tempo.


Como me tornei um socialista


*Alinhando-se para um café da manhã gratuito no East End de Londres. Pelas lentes de Jack London, 1902.

Posso dizer que me tornei um socialista de modo bastante semelhante ao dos pagãos teutônicos quando tornaram-se cristãos — isto é, a marteladas. Não somente eu não buscava o socialismo na época da minha conversão, como estava mesmo em guerra com ele. Eu era jovem e inexperiente, não sabia nada de coisa alguma e, embora jamais tivesse ouvido falar de uma escola de nome “Individualismo”, eu entoava o hino dos fortes com todo o sangue do meu coração.

Mas isso porque eu era realmente forte. Quando digo forte estou dizendo que tinha boa saúde e uma musculatura rija, possessões que são, ambas, facilmente superestimadas. Minha infância foi passada em fazendas da Califórnia, minha adolescência entregando jornais nas ruas de uma próspera cidade da costa oeste e finalmente minha juventude nas águas saturadas de ozônio da Baía de San Francisco e do Oceano Pacífico. Adorava a vida ao ar livre e trabalhava sob céu descoberto nas mais árduas tarefas. Sem aprender nenhum ofício, apenas saltando de emprego em emprego, eu olhava o mundo e abençoava cada pedacinho seu. É bom deixar claro que todo esse entusiasmo era devido ao fato de ser forte e saudável, não importunado por dores nem por fraquezas, nunca preterido pelo patrão por não ter uma aparência apropriada, sempre capaz de conseguir um emprego nas minas de carvão, nos mares ou em trabalhos manuais de qualquer espécie.

Por tudo isso, exultante em minha juventude, capaz de me sair bem em qualquer emprego e qualquer briga, eu era um individualista desenfreado. O que é muito natural. Eu era um vencedor. A partir daí passei a chamar este jogo, onde quer que o visse ou onde quer que pensasse que o visse jogado, de um jogo bastante apropriado para HOMENS. Ser um HOMEM era escrever em meu coração a palavra homem com letras maiúsculas. Arriscar-me como um homem, lutar como um homem, fazer o trabalho de um homem (mesmo que sob o salário de um garoto) — essas eram coisas que me tocavam e me mantinham vivo como nenhuma outra. Eu vislumbrava à minha frente o panorama deslumbrante de um infinito e tranquilo futuro, no qual, representando aquele que eu acreditava ser o jogo do HOMEM, eu continuaria a viajar sempre com uma saúde inquebrantável e transpondo todos os obstáculos com os músculos sempre novos. Esse futuro, como estou dizendo, era infinito. Só conseguia me ver zanzando vida afora como uma das feras selvagens de Nietzsche, espreguiçando-se amorosamente e conquistando tudo através da superioridade e da força.

Quanto aos desaventurados, aos fracos e doentes, velhos e aleijados, devo confessar que raramente pensava neles, exceto indistintamente quando sentia, às vezes, que, deixando de lado os imprevistos, eles podiam ser tão bons quanto eu e trabalhar igualmente tão bem, se eles realmente o desejassem. Imprevistos? Bem, eles representavam o DESTINO, também escrito com letras maiúsculas, e não havia modo de se escapar do DESTINO. Napoleão tinha sofrido um acidente em Waterloo, mas isso não acabava com o meu desejo de tornar-me um tardio Napoleão. Além do mais, o otimismo, gerado num estômago que podia digerir até farpas de ferro moído e em um corpo que florescia mesmo nas piores condições, não me permitia considerar os acidentes como algo sequer de longe relacionado à minha gloriosa personalidade.

Espero ter deixado bem claro que me sentia profundamente orgulhoso de ser um dos nobres cavaleiros armados da Natureza. A dignidade do trabalho tornara-se para mim o fato que maior impressão me causava no mundo. Sem ter lido Kipling ou Carlyle, eu arquitetava evangelhos de trabalho que varriam os deles para as sombras. O trabalho era tudo. Purificação e salvação. O orgulho que significava para mim um dia inteiro de trabalho árduo seria inconcebível para você. É quase inconcebível para mim mesmo quando volto os olhos para trás e penso no assunto. Eu era um escravo fiel do salário através do qual o capitalista me explorava. Esquivar-me ou ludibriar o homem que me pagava o salário era um pecado, antes de tudo, contra mim e, em segundo lugar, contra ele. Para mim era um crime que vinha logo atrás de traição, mas tão ruim quanto.

Em suma, meu alegre individualismo era dominado pela ética da elite ortodoxa. Eu lia os jornais da elite, assistia os oradores da elite e urrava às tremendas superficialidades dos políticos de elite. Não duvido que, se outros acontecimentos não tivessem influenciado o curso da minha vida, eu teria me transformado num fura-greves profissional e com minha cabeça e força de trabalho esmagadas definitivamente por um porrete nas mãos de algum militante sindical.

Exatamente nessa época, após uma viagem de sete meses junto aos mastros de um navio, com dezoito anos recém-completos, entrou em minha cabeça a ideia de experimentar a vida de vagabundo. Por estradas e vagões fechados eu abri caminho, a duras penas, desde o vasto Oeste onde os homens saltavam pelos campos e os empregos caçavam os homens, até os centros congestionados do Leste, onde os homens não eram senão pequeninas batatas lutando por seus empregos com toda a força que possuíam. E nesta nova aventura selvagem me descobri encarando a vida de um ângulo inteiramente novo e diferente. Tinha escorregado do proletariado para aquilo a que os sociólogos têm mania de se referir como a “porção submersa”, e fiquei perplexo ao descobrir como essa “porção submersa” era recrutada.

Lá me deparei com todas as espécies de homens, muitos dos quais já haviam sido, uma vez, tão aptos, ousados e aventureiros quanto eu; homens do mar, homens das armas, trabalhadores, todos exaustos, comidos e desfigurados pelos esforços, asperezas e acidentes imprevistos, agora deixados de lado por seus senhores como velhos cavalos. Eu me arrastei pelas ruas e mendiguei nas portas dos fundos das casas junto com eles, sentindo os mesmos calafrios em vagões e parques da cidade, ouvindo aqui e ali histórias de vidas que tinham começado tão auspiciosas quanto a minha, com estômagos e corpos tão bons ou talvez até mais fortes que os meus e que findavam ali, ante os meus olhos, na destruição do Abismo Social.

E enquanto ouvia essas histórias meu cérebro começava a martelar. A mulher da rua e o homem das sarjetas aproximaram-se de mim. Eu vi a imagem do Abismo Social tão vivo e claro como se fosse uma coisa concreta, e no fundo do Abismo então eu vi — eles e, só um pouco acima, eu próprio, agarrando-me às paredes escorregadias com todo o suor e a força de minhas unhas. E confesso que um pavor se apoderou de mim. O que aconteceria quando minhas forças faltassem? Quando fosse incapaz de trabalhar ombro a ombro com os homens mais fortes que, em comparação, eram como bebês ainda malnascidos? E uma vez ou outra eu pronunciava um solene juramento. Algo mais ou menos assim: Todos os meus dias trabalhei até a exaustão com meu corpo e apesar do número de dias que trabalhei, e até por isso mesmo, estou cada vez mais perto do fundo do Abismo. Eu vou sair desse Abismo, mas não com os músculos do meu corpo. Não vou nunca mais trabalhar como trabalhei e que Deus me fulmine se um dia eu der de mim mais do que o meu corpo pode dar. Desde então ando ocupado em escapar de qualquer trabalho duro.

Uma vez, por acaso, enquanto percorria umas 10.000 milhas de Estados Unidos e Canadá, parei na cidade de Niagara Falls, fui capturado por um policial-à-cata-de-subornos, privado do direito de me declarar culpado ou inocente, sentenciado de uma hora para outra a trinta dias de prisão por não ter residência fixa, tampouco algum meio visível de sustento, algemado e acorrentado junto com um grupo de homens em circunstâncias similares, levado país abaixo até Buffalo, registrado na Penitenciária de Erie, o cabelo e o bigode raspados a zero, vestido com as roupas listradas de um condenado, compulsoriamente vacinado por um estudante de medicina que praticava em pessoas tais como nós, obrigado a marchar em bloco e a trabalhar sob as vistas de guardas armados com rifles e carabinas — tudo isso por aventurar-me um pouco como uma das feras selvagens. Quanto a maiores detalhes esta testemunha declara-se muda, embora possa-se desconfiar que o seu exultante patriotismo tenha se evaporado um pouco e vazado por alguma fresta no fundo de sua alma — pelo menos, desde que passou por essa experiência, ele já se deu conta de que se interessa muito mais por homens, mulheres e crianças do que por fronteiras geográficas imaginárias.

Mas para voltar à minha conversão. Creio que ficou evidente que o meu individualismo feroz foi eficazmente expulso de mim e que alguma outra coisa foi, tão ardorosamente quanto, introduzida. Assim como tinha sido um individualista sem sabê-lo, eu era agora um socialista sem sabê-lo, ou seja, um socialista nada científico. Tinha renascido, mas não ainda rebatizado, e estava dando voltas para descobrir que espécie de coisa eu era. Voltei para a Califórnia e abri os livros. Não me lembro quais foram os primeiros. De qualquer modo, pouco importa. Eu era isso, o que quer que isso fosse, e através dos livros descobri que isso era um socialista. Desde esse dia já abri muitos livros, mas nenhum argumento econômico, nenhuma lúcida análise acerca da lógica e da inevitabilidade do socialista me deixa tão profunda e convincentemente tocado quanto aquele dia em que pela primeira vez vi as paredes do Abismo Social fecharem-se ao meu redor e me senti escorregando para baixo, para baixo, para os destroços do fundo.

Um homem sem-teto no East End de Londres, revivido no livro de Jack London “O Povo do Abismo”. Pelas lentes do próprio Jack London, 1902.






Homens inteligentes são cruéis. Homens estúpidos são monstruosamente cruéis.



Fazendo uma Fogueira


O dia tinha já rompido frio e cinzento, extremamente frio e cinzento, quando o homem deixou o trilho principal do Yukon e subiu pela alta margem de terra, onde um trilho muito leve, pouco pisado, se dirigia para Leste por entre uma floresta de grossos abetos. A margem era íngreme e ele parou para tomar fôlego, olhando o relógio para justificar aquela paragem perante si próprio. Não havia sol, nem vestígios dele, embora não houvesse uma só nuvem no céu. Estava um dia claro, e contudo parecia haver um manto intangível a cobrir todas as coisas, uma subtil melancolia que tornava o dia escuro e que se devia à ausência do sol no céu. Isso não preocupava o homem. Já estava habituado à falta do sol. Já não o via há alguns dias e sabia que mais alguns se passariam antes que a alegre esfera, a cumprir o seu percurso a Sul, espreitasse apenas acima do horizonte para logo desaparecer da vista. 
O homem lançou um olhar para trás, para o caminho que trouxera. Lá estava o Yukon, uma milha de largura, escondido sob um metro de gelo. E sobre este gelo outro tanto de neve. Era toda uma brancura imaculada, rolando em suaves ondulações nos sítios onde a congelação tinha formado montes de gelo. Para Norte e para Sul, até onde a vista alcançava, era tudo de uma brancura ininterrupta, salvo uma fina linha escura que em curva se afastava da ilha coberta de abetos em direção ao Sul, e que curvava depois para Norte e desaparecia por detrás de outra ilha coberta de abetos. Esta fina linha escura era o trilho — o trilho principal — que levava até ao Chilcoot Pass, Dyea, e à água salgada, quinhentas milhas mais adiante; e que para Norte ia até Dawson, a setenta milhas, e ainda mais para Norte até Nulata, a mil milhas, e finalmente até St.Michael, no Mar de Bering, mil e quinhentas milhas mais adiante. 
Mas nada disto — nem a misteriosa linha do trilho a perder de vista, nem a ausência do sol, nem o tremendo frio, nem a singularidade ou o carácter estranho de tudo aquilo — deixava qualquer impressão no homem. Não que ele já estivesse há muito habituado a eles. Ele era novo naquelas terras, um chechaquo, e este era o seu primeiro inverno naquelas paragens. O problema dele era a falta de imaginação. Era esperto e estava atento às coisas da vida, mas apenas às coisas e não ao significado delas. Cinquenta graus negativos significavam oitenta e tal graus de congelação. Tal facto, para ele, significava frio e desconforto, e apenas isso. Não o levava a meditar sobre a sua fragilidade como criatura de temperatura que era, ou sobre a fragilidade do homem em geral, apenas capaz de viver dentro de certos limites muito estreitos de calor e frio; e não o levava, daí para a frente, para o campo das conjecturas sobre a imortalidade e sobre o lugar do homem no universo. Cinquenta graus negativos representavam uma picada do frio, que faz doer e de que a gente se deve resguardar usando luvas, lobos de orelha, botas quentes de pele e meias grossas. Cinquenta graus negativos, para ele, eram apenas e só cinquenta graus negativos. Nunca lhe passara pela cabeça que pudessem ser mais alguma coisa. 
Quando se virou para prosseguir o seu caminho, cuspiu, distraído a refletir. Ouviu um estalido agudo que o despertou. Cuspiu outra vez. E outra vez, no ar, antes de cair na neve, o cuspo estalou. Ele sabia que a cinquenta graus abaixo de zero o cuspo estalava na neve, mas este cuspo tinha estalado no ar. Não havia dúvida de que estava mais frio do que cinquenta abaixo de zero — quanto é que ele não sabia. Mas a temperatura não importava. Ele dirigia-se à velha concessão no braço esquerdo da bifurcação do Henderson Creek, onde os rapazes já se encontravam. Eles tinham vindo da região do Indian Creek, atravessando as montanhas, enquanto que ele tinha feito um desvio para ver das possibilidades de retirar os toros de madeira das ilhas do Yukon na Primavera. Ia lá chegar pelas seis horas; um pouco tarde, realmente, mas os rapazes lá estariam, já teriam uma fogueira e uma refeição quente pronta. Quanto ao almoço, apalpou o volume que sobressaía por baixo do casaco. Estava também por baixo da camisa, embrulhado num lenço contra a pele nua. Era a única maneira de conservar as bolachas sem congelarem. Sorriu para si próprio quando pensou naquelas bolachas, abertas uma a uma e embebidas na gordura do bacon e cada uma delas com uma generosa fatia de bacon frito. 
Mergulhou na floresta, no meio dos enormes abetos. O trilho estava muito sumido. Já tinham caído trinta centímetros de neve desde a última passagem de um trenó, e ainda bem que ele não trazia um trenó, e ia assim tão leve. De facto, ele não trazia senão o almoço embrulhado num lenço. Estava era surpreendido com o frio. Estava realmente muito frio, concluiu, enquanto esfregava, com a mão enluvada, o nariz e as faces dormentes. Ele usava suíças, mas aqueles pelos não lhe protegiam a parte frontal da cara e o nariz ansioso, que se espetava agressivamente no ar gelado. 
A trote e na peugada do homem, vinha um cão, um cão grande arraçado de lobo, daqueles com que andam os esquimós, e em nada diferente, física ou temperamentalmente do seu irmão, o lobo selvagem. O animal estava abatido, daquele frio tremendo. Ele sabia que não era altura para andar a viajar. O instinto fornecia-lhe uma informação mais real do que aquela que o homem obtinha através da sua própria avaliação. Na verdade, aquele frio não era só de cinquenta graus abaixo de zero; era de mais de sessenta ou setenta graus abaixo de zero. Era de setenta e cinco graus abaixo de zero. Como o ponto de congelação é de trinta e dois graus acima de zero, a temperatura chegara portanto aos cento e sete graus abaixo do ponto de congelação*. O cão não sabia nada de termómetros. Provavelmente não havia no seu cérebro qualquer noção exata do frio como a que havia no do homem. Mas o animal tinha o seu instinto e sentia uma vaga mas ameaçadora apreensão que o dominava e o fazia seguir na peugada do homem e o fazia questionar ansiosamente cada um dos seus movimentos menos habituais como se estivesse à espera que ele fosse acampar ali ou fosse procurar abrigo algures e fazer uma fogueira. Ele aprendera a conhecer as fogueiras e precisava de uma fogueira, ou então de escavar um buraco sob a neve para se aquecer aninhando-se ao abrigo da atmosfera exterior. 
O orvalho resultante da respiração fixava no pelo na forma de um fino pó de gelo, e em especial o queixo, o focinho e as pestanas estavam brancos do seu bafo cristalizado. A barba e o bigode ruivos do homem estavam igualmente congelados, mas mais solidamente, tendo aqui a forma de gelo mesmo e aumentando a cada uma das suas expirações quentes e húmidas. Além disso, o homem ia a mascar tabaco e o gelo que lhe cobria a boca firmava-lhe os lábios de tal maneira que ele não conseguia limpar o queixo quando expelia o suco. O resultado era uma barba cristalizada da cor e da consistência do âmbar e que ia aumentando de tamanho no queixo. Se ele caísse, aquilo estilhaçava-se como vidro. Mas aquele apêndice não o preocupava. Era o preço a pagar por aqueles que mascavam tabaco naquelas terras, e ele já tinha tido duas experiências idênticas. O frio não era tanto, ele sabia-o, mas pelo termómetro de álcool em Sixty Mile ele soubera que se tinham registado temperaturas de cinquenta e cinquenta e cinco. 
Continuou por uma extensão plana de floresta durante algumas milhas, atravessou uma vasta planície coberta de moitas e depois meteu por uma encosta abaixo em direção ao leito gelado de um pequeno ribeiro. Era o Henderson Creek, e ele sabia que estava a dez milhas da bifurcação. Consultou o relógio. Eram dez horas. Estava a fazer quatro milhas por hora e calculou que devia chegar à bifurcação ao meio-dia e meia. Resolveu que almoçaria lá para comemorar o acontecimento. 
O cão continuava a segui-lo num desânimo de cauda pendente enquanto o homem gingava ao longo do leito do ribeiro. O sulco do velho rasto de trenó era bem visível, mas alguns centímetros de neve cobriam as marcas de patins mais recentes. Há um mês que ninguém passava, para cima ou para baixo, naquele ribeiro silencioso. O homem prosseguiu determinado. Ele não era muito dado a pensar, e particularmente naquela ocasião não tinha nada em que pensar a não ser em que iria almoçar na bifurcação e que às seis horas estaria no acampamento com os rapazes. Não havia ninguém com quem falar; e, se houvesse, teria sido impossível falar por causa da mordaça de gelo que lhe cobria a boca. Assim, continuou monotonamente a mascar tabaco e a fazer crescer a sua barba de âmbar. 
De vez em quando vinha-lhe à ideia o terrível frio que fazia, e que nunca sentira tal frio. À medida que caminhava ia esfregando a cara e o nariz com as costas da mão enluvada. Fazia isto mecanicamente, mudando de mão de quando em vez. Mas por muito que esfregasse, assim que deixava de o fazer os malares ficavam logo dormentes e depois também a ponta do nariz. A cara ia certamente ficar gelada; ele sabia isso, e era com grande angústia que se arrependia de não ter arranjado uma proteção para o nariz do género da que o Bud usava durante as vagas de frio. Essas proteções passavam também pela cara e protegiam-na. Mas, afinal, também não importava muito. Qual era o problema de ter a cara gelada? Um pouco doloroso, só isso; nunca era coisa muito grave. 
Vazia de ideias como a sua cabeça era, o homem era, porém, muito observador, e reparou nas mudanças do ribeiro, as lombas, as curvas e os ramos de árvore, e tinha sempre o cuidado de ver onde punha os pés. Uma vez, depois de uma curva, recuou abruptamente, como um cavalo assustado, desviou-se do sítio por onde tinha vindo a caminhar e retrocedeu alguns passos no trilho. O ribeiro sabia ele que estava gelado até ao fundo — nenhum ribeiro podia ter água naquele inverno polar — mas também sabia que havia nascentes que borbulhavam nas encostas dos montes e cuja água corria encosta abaixo sob a neve e por cima do gelo do ribeiro. Ele sabia que mesmo as mais rigorosas vagas de frio nunca conseguiam congelar estas nascentes, e conhecia igualmente o seu perigo. Eram armadilhas. Escondiam poças de água, debaixo da neve, que podiam ter um centímetro ou um metro de profundidade. Às vezes estavam cobertos por uma fina camada de gelo de três centímetros, que, por sua vez, estava coberta de neve. Outras vezes, havia camadas alternadas de água e gelo, de modo que, quando uma se quebrava, as outras começavam a quebrar-se por ali abaixo e a pessoa podia ficar metida na água até à cintura. 
Esta a razão por que ele recuara tão assustado. Tinha sentido o gelo a ceder sob os seus pés e ouviu o estalido da camada de  gelo escondida sob a neve. E molhar os pés com tal temperatura significava perigo e problemas iminentes. Significava na melhor das hipóteses um atraso, porque seria obrigado a parar para acender uma fogueira cujo calor lhe permitisse ficar descalço enquanto secava as botas e as meias. Ficou a estudar o ribeiro e as margens e concluiu que a água vinha da direita. Reflectiu por momentos, esfregando a cara e o nariz, depois desviou-se para a esquerda, a caminhar cautelosamente e a experimentar a firmeza do piso passo a passo. Passado o perigo, meteu na boca mais um bocado de tabaco para mascar e lá prosseguiu no seu ritmo de quatro milhas por hora. 
No decurso das duas horas seguintes, deparou com várias destas armadilhas. Geralmente a neve que escondia as poças tinha um aspecto cavado, de açúcar cristalizado, que anunciava o perigo. E mais uma vez escapou por um triz; e uma das vezes, desconfiando do perigo, obrigou o cão a ir na frente. O cão não queria ir. Foi ficando para trás até que o homem o enxotou para a frente, e depois atravessou rapidamente a superfície branca. Subitamente o gelo quebrou e o cão debateu-se por momentos, desequilibrado para um dos lados, mas depois conseguiu sair para piso mais firme. Tinha molhado as patas e pernas da frente, e quase imediatamente a água que ficara agarrada ao pelo transformou-se em gelo. Fez rápidos esforços para o remover lambendo as pernas e depois sentou-se na neve começando a morder o gelo que se tinha formado entre os dedos para o tirar também. Fez isto apenas por instinto. Deixar ficar o gelo significaria pés em ferida e ele não sabia isso. Apenas obedeceu à misteriosa indicação vinda das profundezas ocultas do seu ser. Mas o homem compreendeu-o, depois de avaliar a questão, e tirou a luva da mão direita e ajudou-o a remover as partículas de gelo. Não expôs os dedos ao ar mais do que um minuto, e ficou espantado com a rapidez com que o entorpecimento os atingiu. Estava realmente muito frio. Calçou rapidamente a luva e começou a bater ferozmente com a mão no peito. 
Às doze horas o dia atingia a sua claridade máxima. Mas o sol andava tão para sul na sua viagem invernal que não conseguia clarear o horizonte. O bojo da terra interpunha-se entre ele e o Henderson Creek, onde o homem caminhava sob um céu limpo, ao meio dia, sem projetar qualquer sombra. Ao meio-dia e meia, pontualmente, chegava ele à bifurcação do ribeiro. Estava satisfeito com o andamento que conseguira. Se o conseguisse manter estaria certamente com os rapazes pelas seis horas. Desabotoou o casaco e a camisa e tirou o almoço para fora. Esta tarefa não lhe demorou mais de um quarto de minuto, mas esse curto espaço de tempo foi suficiente para que os dedos expostos ao ar lhe ficassem dormentes. Não calçou a luva, em vez disso começou a bater repetidamente com os dedos nas pernas. Depois sentou-se num tronco coberto de neve para comer. O formigueiro nos dedos, depois de ter batido com eles nas pernas, cessou tão depressa que ele ficou sobressaltado. Não tinha tido qualquer possibilidade de dar uma única dentada nas bolachas. Bateu com os dedos repetidamente e calçou a luva, descalçando a outra mão para comer. Tentou uma dentada de boca cheia, mas a mordaça de gelo impediu-o. Esquecera-se de fazer uma fogueira para derreter o gelo. Riu-se da sua insensatez, e enquanto ria começou a notar a dormência a subir-lhe pelos dedos nus acima. E notou também que o formigueiro que começara a sentir nos dedos dos pés quando se sentara já estava a passar. Não sabia bem se os dedos dos pés estavam quentes ou dormentes. Mexeu dentro das botas e concluiu que estavam dormentes. 
Calçou a luva rapidamente e pôs-se de pé. Começava a ficar um tanto assustado. Começou a bater com os pés até o formigueiro voltar. Só pensava que estava realmente muito frio. Aquele homem de Sulphur Creek tinha razão quando lhe falou do muito frio que às vezes se fazia sentir na região. E ele nessa altura rira-se do homem! Isto mostrava que não devemos ter tanta certeza das coisas. Não havia qualquer dúvida sobre isso, estava mesmo frio. Começou a andar energicamente de um lado para o outro, batendo com os pés e sacudindo os braços até conseguir que aquecessem. Depois pegou nos fósforos e começou a fazer uma fogueira. Nas moitas, onde a água da primavera anterior tinha deixado um monte de galhos secos, arranjou ele a lenha. Começando cuidadosamente de um pequeno lume, depressa conseguiu chamas grandes a crepitar, sobre as quais derreteu o gelo da cara e ao calor das quais comeu as suas bolachas. Por enquanto o ar frio estava vencido. O cão aproveitou bem a  fogueira, estendendo-se suficientemente perto para receber o calor e suficientemente longe para não ficar chamuscado. 
Depois de acabar de comer, o homem encheu o cachimbo e ficou a fumá-lo confortavelmente. Depois calçou as luvas, apertou bem os lobos de orelhas e tomou o trilho esquerdo da bifurcação. O cão ficou desapontado e olhava, nostálgico, para a fogueira. Este homem não conhecia o frio. Possivelmente nenhuma geração dos seus antepassados conheceu o frio, o verdadeiro frio, o frio de cento e sete graus abaixo do ponto de congelação. Mas o cão conhecia-o; todos os seus antepassados o conheceram, e ele herdara esse conhecimento. E sabia que não era bom andar por fora com aquele frio terrível. O tempo estava bom era para se estar metido num buraco da neve, bem aconchegado, e esperar que uma cortina de nuvens se viesse descerrar sobre o espaço exterior donde vinha aquele frio. Por outro lado, também não havia grande intimidade entre o cão e o homem. O primeiro era escravo do segundo, e as únicas carícias que alguma vez recebia eram as do chicote e dos sons guturais que eram já uma ameaça de chicote. E por isso o cão não fez qualquer esforço para dar a conhecer ao homem a sua apreensão. Ele não estava preocupado com o bem estar do homem; era apenas por ele próprio que ele sentia aquela nostalgia da fogueira. E o homem assobiou e falou-lhe em tom de chicote, e o cão lá seguiu na sua peugada. 

O homem meteu mais uma porção de tabaco na boca e iniciou a construção de uma nova barba âmbar. E o seu bafo húmido depressa lhe pulverizou de branco o bigode, as sobrancelhas e as pestanas. Neste trilho esquerdo da bifurcação do Henderson, parecia não haver tantas nascentes, e durante meia hora o homem não viu vestígios de nenhuma. Mas depois aconteceu. Num sítio onde não havia quaisquer sinais, onde a neve macia e ininterrupta parecia indiciar alguma solidez por baixo, o piso cedeu. Não parecia muito fundo. O homem molhou-se até meio dos tornozelos antes de, a debater-se, conseguir saltar para terra firme. 
Ficou irritado e amaldiçoou a sua pouca sorte em voz alta. Tivera a esperança de chegar ao acampamento onde estavam os rapazes pelas seis horas, e isto ia atrasá-lo uma hora, porque ia ter de acender uma fogueira para secar as botas, as meias e os pés. Com aquela temperatura, isto tornava-se imperativo — até aí sabia ele; e dirigiu-se para a margem, que começou a trepar. Lá em cima, emaranhado na vegetação rasteira à volta dos troncos de pequenos abetos, estava um monte de lenha, deixado pela subida da água — principalmente paus e galhos, mas também grandes pedaços de ramos secos e boas canas secas do ano anterior. Atirou vários destes últimos para baixo, para cima da neve. Isto era para servir de base e evitar que as primeiras chamas se afogassem na neve, que de outra maneira se derreteria. O lume conseguiu-o ele friccionando um fósforo num bocado de casca de vidoeiro que tirou do bolso. Isto ardia ainda melhor do que o papel. Pô-lo sobre a base e foi alimentando o fogo com tufos de erva seca e com os galhos mais finos. 
Trabalhava devagar, com muito cuidado e muito atento ao perigo em que estava. Pouco a pouco, à medida que as chamas cresciam, ia aumentando o tamanho dos ramos com que as estava a alimentar. Agachou-se na neve, a desemaranhar os ramos e ia atirando diretamente para a fogueira. Ele sabia que não podia falhar. Quando a temperatura está a setenta e cinco graus abaixo de zero, um homem não pode falhar na primeira tentativa para acender uma fogueira — quer dizer, se tiver os pés molhados. Se tiver os pés secos e falhar pode correr meia milha pelo trilho fora para restabelecer a circulação. Mas a circulação nos pés molhados e gelados não se pode restabelecer correndo, quando estão setenta e cinco graus abaixo de zero. Por mais depressa que corra, os pés molhados gelarão cada vez mais. 

Tudo isto o homem sabia. Aquele veterano em Sulphur Creek tinha falado nisto no outro outono e agora é que ele estava a dar valor ao conselho. Já não sentia os pés. Para fazer a fogueira tinha sido obrigado a descalçar as luvas, e os dedos ficaram logo dormentes. O seu andamento de quatro milhas por hora tinha-lhe mantido o coração a bombear sangue para toda a superfície do corpo e para todas as extremidades. Mas no momento em que ele parou, a ação da bomba, abrandou. O frio do espaço atacou a ponta desprotegida do planeta, e estando ele nessa ponta desprotegida, recebeu o golpe em toda a sua força. O sangue do corpo retraiu-se perante o ataque. O sangue estava vivo, como o cão, e tal como o cão, queria recolher-se  e proteger-se daquele frio terrível. Enquanto andasse a quatro milhas por hora, o coração, quisesse ou não, bombeava esse sangue para a superfície; mas agora o sangue refluiu e alojou-se nos recessos do corpo. As extremidades foram as primeiras a sentir a sua ausência. Os pés molhados eram os que gelavam mais depressa, e os dedos nus eram os que adormeciam mais depressa, embora ainda não tivessem começado a gelar. O nariz e a cara já estavam a começar a gelar, enquanto a pele por todo o seu corpo arrefecia com a perda do sangue. 
Mas estava salvo. Os dedos dos pés, o nariz e a cara só seriam ligeiramente afectados pela congelação, porque a fogueira estava a começar a arder bem. Ele estava a alimentá-la com ramos da espessura de um dedo. Mais um instante e poderia começar a alimentá-la com ramos da espessura do pulso, e então já poderia descalçar-se e, enquanto secava as botas e as meias, poderia manter os pés descalços quentes à fogueira, esfregando-os primeiro, claro, com neve. A fogueira foi um sucesso. Estava salvo. Lembrou-se do conselho do veterano em Sulphur Creek e sorriu. O veterano tinha falado muito a sério quando lhe ditou a regra segundo a qual ninguém deve viajar sozinho no Klondike com temperaturas abaixo dos cinquenta graus. E ali estava ele; tinha tido aquele acidente; estava sozinho e tinha-se salvo. Aqueles velhos veteranos eram muito maricas, alguns deles, pensou. O que era preciso era não perder a cabeça, e assim as coisas correriam bem. Qualquer homem que seja homem pode viajar sozinho. Mas era espantosa a rapidez com que a cara e o nariz estavam a gelar. E nunca imaginara que os dedos pudessem ficar sem vida em tão pouco tempo. E estavam de facto, sem vida, porque ele mal os podia mexer para agarrar um ramo, e parecia-lhe que estavam afastados do corpo e dele próprio. Quando tocava num ramo, tinha de olhar para ver se o estava a agarrar ou não. As comunicações entre ele e as pontas dos dedos estavam bastante fracas. 
Mas nada disto contava muito. Estava ali a fogueira a estalar e a crepitar, uma promessa de vida a dançar em cada labareda. Começou a desapertar as botas. Estavam cobertas de gelo; as grossas meias alemãs pareciam bainhas de ferro até meio da perna; e os atacadores das botas pareciam varetas de aço, todas torcidas e cheias de nós como em resultado de uma explosão. Durante um bocado ainda tentou puxá-los com a mão, mas depois, percebendo o disparate que estava a fazer pegou na navalha. 

Mas antes de poder cortar os atacadores, aconteceu aquilo. A culpa, ou melhor, o erro foi seu. Não devia ter feito a fogueira por baixo do abeto. Devia tê-la feito numa clareira. Mas assim tinha sido mais fácil puxar os ramos e pô-los diretamente sobre o fogo. Ora, a árvore sob a qual ele a fizera tinha uma grande carga de neve sobre os ramos. Há semanas que não corria vento nenhum, e todos os ramos estavam carregados de neve. Enquanto estivera a fazer a fogueira, de cada vez que puxava um ramo transmitia uma ligeira agitação à árvore — uma agitação imperceptível para ele, mas a bastante para provocar o desastre. Um ramo no topo da árvore cedeu e deixou cair a neve sobre os ramos que lhe ficavam por baixo, os quais, por sua vez, cederam também. Este processo continuou, estendendo-se a toda a árvore. A neve cresceu como uma avalanche e acabou por cair sobre o homem e sobre a fogueira e o fogo apagou-se! No sítio da fogueira estava agora apenas um monte de neve fresca. 

O homem ficou abalado. Era como se acabasse de ouvir a sua própria sentença de morte. Ficou sentado por momentos a olhar para o sítio onde ainda há pouco ardia a fogueira. Depois ficou muito calmo. Talvez o velho veterano de Sulphur Creek tivesse razão. Se tivesse ali consigo um companheiro, não estaria agora em perigo. O companheiro podia fazer a fogueira. Mas assim era ele que tinha de fazer a fogueira de novo, e desta vez não podia falhar. Mesmo que conseguisse, ia certamente ficar sem alguns dedos dos pés. Os pés deviam estar agora gravemente congelados e a segunda fogueira ainda ia demorar a fazer. 
Era isto que ele estava a pensar, mas não se deixou ficar parado. Esteve sempre em atividade enquanto estes pensamentos lhe ocorriam. Construiu uma nova base para a fogueira, desta vez numa clareira, onde nenhuma árvore traiçoeira a poderia apagar. A seguir, juntou ervas secas e alguns galhos do monte deixado pela subida das águas. Não conseguia apertar os dedos para os puxar, mas conseguiu juntá-los às mãos cheias. Mas desta maneira arrastou também muitos galhos podres e bocados de musgo indesejáveis, mas era o melhor que conseguia fazer. Trabalhava metodicamente, juntando mesmo uma braçada de ramos maiores que serviriam mais tarde quando o fogo já estivesse mais forte. E enquanto isto, o cão estava sentado a observá-lo com uma certa ansiedade nostálgica no olhar, porque o estava a ver como o fazedor de fogueiras, e a fogueira tardava. 
Quando já estava tudo pronto, o homem procurou no bolso uma segunda casca de vidoeiro. Ele sabia que a casca lá estava e, embora não a pudesse sentir com os dedos, ouvia o seu ruge-ruge enquanto tentava desajeitadamente agarrá-la. Por muito que tentasse, não conseguia agarrá-la. E durante todo o tempo, ele sabia, bem no fundo do seu consciente, que os pés lhe estavam a congelar momento a momento. Esta ideia inclinava-o para o pânico, mas lutou contra isso e manteve a calma. Com os dentes, calçou as luvas e começou a balançar os braços para a frente e para trás batendo com as mãos nas pernas com toda a sua força. Estava a fazer isto sentado e depois levantou-se; e durante este tempo, o cão continuava sentado na neve, com a cauda de lobo enroscada à volta das patas anteriores, as orelhas pontiagudas de lobo viradas intencionalmente para a frente enquanto observava o homem. E o homem, enquanto balançava os braços e batia com as mãos, foi invadido por um enorme sentimento de inveja ao ver aquela criatura que estava quente e segura na sua proteção natural. 

Algum tempo depois começou a sentir os primeiros sinais muito longínquos de sensibilidade nos dedos. O ligeiro formigueiro aumentou até se transformar em picadas muito dolorosas, mas que o homem abençoou com satisfação. Tirou a luva da mão direita e meteu-a no bolso a buscar a casca de vidoeiro. Os dedos expostos ao ar começaram logo a adormecer outra vez. A seguir tirou um punhado de fósforos. Mas aquele frio tremendo já arrancara a vida aos dedos outra vez. No seu esforço para separar um fósforo dos outros, caíram-lhe todos na neve. Tentou apanhá-los mas não conseguiu. Os dedos mortos não lhes conseguiam tocar nem agarrá-los. Ele agia com muito cuidado. Afastou do pensamento a ideia da cara e dos pés e do nariz que estavam a gelar, devotando toda a sua alma aos fósforos. Ficou a observar, usando o sentido da visão em vez do tacto, e quando viu os dedos um de cada lado do maço de fósforos apertou-os — ou melhor, quis apertá-los, porque as comunicações estavam cortadas e os dedos não obedeciam. Calçou a luva da mão direita e bateu com ela violentamente contra o joelho. Depois, com ambas as mãos enluvadas servindo como que de colher apanhou o punhado dos fósforos juntamente com muita neve e depositou tudo sobre o colo. Contudo as coisas não melhoraram muito. 

Depois de alguma manipulação, conseguiu agarrar o maço de fósforos juntando as palmas das mãos enluvadas e desta maneira levou-o até à boca. O gelo estalou e partiu-se quando num violento esforço ele abriu a boca. Recolheu o maxilar inferior e enrolou o lábio superior para abrir espaço e esgadanhou o molho com os dentes de cima para separar um fósforo. Conseguiu apanhar um, que deixou cair no colo. Mas mesmo assim as coisas não melhoraram. Não conseguia agarrá-lo. Então pensou numa maneira. Pegou-lhe com os dentes e friccionou-o na perna. Vinte foram as vezes que ele repetiu o movimento até conseguir acendê-lo. Quando isso aconteceu, levou-o, sempre nos dentes, até à casca de vidoeiro. Mas o enxofre foi-lhe para as narinas e para os pulmões e fê-lo tossir convulsivamente. O fósforo caiu na neve e apagou-se. 
O velho veterano de Sulphur Creek tinha razão, pensou ele durante aqueles momentos de desespero controlado que se seguiram: abaixo dos cinquenta negativos um homem deve viajar sempre acompanhado de um parceiro. Bateu com as mãos, mas não conseguiu provocar nelas qualquer sensação. Subitamente descalçou as luvas, puxando-as com os dentes. Pegou no molho todo com a parte posterior das palmas das mãos juntas. Os músculos dos braços não estavam gelados, o que lhe permitia apertar as mãos contra os fósforos. Depois friccionou todo o molho na perna. Os setenta fósforos acenderam-se todos! Não havia vento para os apagar. Virou a cabeça para o lado para evitar os gases sufocantes e pôs os fósforos acesos junto da casca de vidoeiro. Enquanto assim fazia, começou a sentir a mão. Estava a queimá-la. Sentia bem o cheiro. Bem lá no fundo, abaixo da superfície, ele sentia-a. A sensação transformou-se em dor aguda. Mas aguentou, mantendo a chama dos fósforos desajeitadamente junto da casca que só não pegou logo porque as mãos se interpunham absorvendo a maior parte da chama. 

Por fim, quando já não aguentava mais, sacudiu as mãos. Os fósforos acesos caíram, a crepitar, na neve, mas a casca ficou a arder. Começou a pôr canas secas e os galhos mais finos sobre a chama. Não os podia escolher, porque tinha de pegar neles entre as mãos. Alguns pequenos pedaços de ramos podres e de musgo verde vinham agarrados aos galhos e ele arrancou-os o melhor que pôde com os dentes. Tratou da fogueira desajeitadamente, mas com muito cuidado. Aquele fogo significava vida, não podia morrer. Agora a retração do sangue da superfície do corpo fê-lo começar a tremer e ele ficou ainda mais desajeitado. Um grande bocado de musgo verde caiu mesmo em cima da pequena fogueira. Tentou empurrá-lo com os dedos, mas as tremuras fizeram com que o seu movimento fosse fundo demais e ele acabou por desfazer o núcleo da pequena fogueira, e as canas e os pequenos galhos a arder separaram-se e espalharam-se. Tentou juntá-los de novo, mas apesar da tensão do esforço, as tremuras dominavam-no e os galhos ficaram irremediavelmente espalhados. Os galhos deitaram uma fumaça e apagaram-se. O fazedor de fogueiras falhara. Ao olhar apático à sua volta, deu casualmente com os olhos no cão sentado na neve à sua frente, do outro lado dos restos da fogueira, fazendo movimentos impacientes com o corpo, erguendo ligeiramente ora uma ora outra das patas dianteiras e mudando o peso do corpo de uma para a outra numa ansiedade melancólica. 

Ao ver o cão, ocorreu-lhe uma ideia louca. Lembrou-se daquela história do homem que, apanhado numa tempestade de neve, matou um boi e depois se arrastou para dentro da carcaça do animal, assim se salvando. Matava o cão e enfiava as mãos no corpo quente do animal até a dormência passar. Depois já podia fazer outra fogueira. Falou para o cão, chamando-o; mas a voz saiu-lhe com um estranho tom de medo que assustou o animal, que nunca ouvira o homem a falar-lhe daquela maneira. Alguma coisa se passava, e a sua natureza desconfiada pressentiu perigo — não sabia exatamente que perigo, mas algures no seu cérebro havia uma certa apreensão em relação ao homem. Ao ouvir o homem, achatou as orelhas e os movimentos impacientes do corpo e das patas acentuaram-se; mas não se chegou a ele. O homem pôs-se de joelhos e, apoiado nas mãos, gatinhou em direção ao cão. Esta sua invulgar posição também levantou suspeitas e o animal, a andar de lado, começou a afastar-se. 
O homem sentou-se, por momentos, na neve a procurar acalmar-se. Depois calçou as luvas com os dentes e pôs-se de pé. Primeiro olhou para baixo para ver se de facto estava de pé, porque a falta de sensibilidade nos pés deixava-o desligado do solo. Esta sua posição fez com que as suspeitas do cão se começassem a desvanecer; e quando ele falou em tom peremptório, com aquele som de chicote na voz, o cão retomou a sua habitual postura de lealdade e encaminhou-se para ele. Quando chegou perto, o homem perdeu o controle. Estendeu os braços para o cão e teve uma verdadeira surpresa quando verificou que as mãos não conseguiam agarrar, que os dedos não se dobravam e não sentiam. Esquecera-se por momentos de que tinha as mãos geladas e que continuavam a gelar cada vez mais. Tudo isto aconteceu muito depressa e antes que o animal pudesse fugir, ele rodeou o corpo com os braços. Sentou-se no chão e segurou assim o cão, que entretanto rosnava, gania e se debatia. 
Mas o homem não podia fazer mais nada, apenas podia mantê-lo seguro, abraçando-lhe o corpo, e continuar sentado. Compreendeu que não conseguiria matar o cão. Não tinha maneira de o fazer. Com as mãos naquele estado não conseguia pegar na navalha nem segurá-la na mão, e também não conseguia estrangular o animal. Soltou-o e ele afastou-se furiosamente com um salto, rabo entre as pernas e sempre a rosnar. Parou uns dez metros mais à frente e olhou o homem intrigado, de orelhas espetadas. O homem olhou para as mãos para as localizar e viu-as pendentes dos braços. E achou esquisita a sensação de ter de olhar para ver onde estavam as próprias mãos. Começou a balançar os braços para um lado e para o outro batendo com as mãos enluvadas nas pernas. Esteve a fazer isto durante cinco minutos, violentamente, e o coração bombeou para a superfície do corpo sangue suficiente para ele deixar de tremer. Mas a sensibilidade das mãos não voltava. Sentia as mãos como se fossem pesos pendurados na extremidades dos braços, mas quando tentou que essa impressão descesse, não a encontrou. 
Um certo medo da morte, opressivo e entorpecedor, começou a apossar-se dele. Este medo depressa se tornou pungente quando ele se apercebeu de que a questão já não era só o facto de as mãos e os dedos dos pés estarem a gelar ou de vir a ficar sem eles, mas uma questão de vida ou de morte e de que as hipóteses estavam todas contra ele. Isto deixou-o em pânico e voltou-se e começou a correr pelo leito do ribeiro seguindo o velho trilho já meio apagado. O cão seguiu-o. Correu cegamente, sem destino, acossado por um medo que nunca sentira na vida. Gradualmente, à medida que ia sulcando a neve aos tropeções, começou a ver as coisas outra vez — as margens do ribeiro, os velhos montes de ramos, os choupos despidos de folhas e o céu. A corrida fê-lo sentir-se melhor. Já não tremia. Se continuasse a correr, quem sabe, talvez os pés descongelassem; e em qualquer dos casos, se corresse bastante chegaria ao acampamento onde estavam os rapazes. Ia ficar sem alguns dedos das mãos e dos pés e uma parte da cara; mas os rapazes iam tratar dele e salvar o que dele restasse quando lá chegasse. Mas ao mesmo tempo tinha na cabeça um outro pensamento que lhe dizia que nunca chegaria ao acampamento dos rapazes; que o acampamento ficava a muitas milhas de distância e que a congelação tinha um grande avanço sobre ele e em breve estaria hirto e morto. Esta ideia estava em fundo e ele recusava-se a considerá-la. Às vezes ela vinha à tona e exigia a sua atenção, mas ele empurrava-a de novo para baixo para pensar noutras coisas. 

Ficou muito admirado de ainda poder correr, com os pés assim tão gelados que nem os sentia quando eles tocavam o chão e suportavam o peso do corpo. Tinha visto uma vez, algures, um Mercúrio alado, e perguntava-se se o Mercúrio se sentiria como ele, assim a planar sobre a terra.
A sua ideia de ir a correr até ao acampamento tinha um senão: faltava-lhe a resistência. Tropeçou várias vezes e por fim cambaleou, não resistiu e acabou por cair. Quando tentou levantar-se, não conseguiu. Resolveu sentar-se a descansar e depois caminhar simplesmente e manter o andamento. Depois de se sentar e de ter recuperado o fôlego, notou que se estava a sentir quente e bem disposto. Não estava a tremer, e até lhe parecia sentir uma réstia de calor a penetrar-lhe o peito e o tronco. Mas quando tocava no nariz ou na cara não sentia nada. A corrida não lhes provocava o degelo. Nem às mãos ou aos pés. E então pensou que a congelação do corpo devia estar a alastrar. Tentou afastar este pensamento, esquecê-lo, pensar noutra coisa qualquer; tinha plena consciência do pânico que aquela ideia lhe provocava, e ele receava o pânico. Mas aquele pensamento instalou-se e persistiu até lhe produzir uma imagem do corpo completamente gelado. Isto era demais, e encetou uma nova corrida desenfreada pelo trilho fora. Abrandou uma vez para voltar a andar a passo, mas aquela ideia da congelação a avançar fê-lo começar a correr outra vez. 
E o cão sempre atrás dele, na sua peugada. Quando caiu uma segunda vez, o animal enrolou a cauda sobre as patas dianteiras e sentou-se à sua frente, virado para ele, curiosamente ansioso e atento. O calor e a segurança do animal encolerizaram-no, e começou a amaldiçoá-lo até que o animal, apaziguador, achatou as orelhas. Desta vez as tremuras voltaram mais depressa. Estava a perder a sua luta contra o gelo. A congelação, vinda de todos os lados, avançava-lhe pelo corpo. Esta ideia fê-lo continuar, mas não correu mais do que trinta metros e logo vacilou e se estatelou ao comprido. Era o seu derradeiro pânico. Quando recobrou o fôlego e o controle, sentou-se e começou a elaborar no seu espírito a ideia de encontrar a morte com dignidade. Contudo, esta concepção não lhe ocorreu nestes termos. A sua ideia era que tinha andado a fazer papel de parvo ao lançar-se naquela correria, qual galinha sem cabeça — foi esta a imagem que lhe veio à ideia. Bem, como, de qualquer maneira, estava condenado a ficar todo gelado, podia ao menos aceitar o facto com alguma decência. Com esta paz de espírito recém descoberta chegaram também os primeiros sinais de sonolência. Uma boa ideia, pensou ele, dormir até morrer. Era como tomar um anestésico. Gelar não era afinal tão mau como se pensava. Havia muitas maneiras de morrer bastante piores. 
Imaginou os rapazes a encontrarem o corpo no dia seguinte. E subitamente viu-se a si próprio a ir com eles pelo trilho à sua procura. E, ainda com eles, depois de uma curva, deparou com o próprio corpo deitado na neve. Já não era parte de si mesmo, porque mesmo nessa altura ele estava fora de si próprio, ali com os rapazes à procura de si próprio. Estava realmente muito frio, foi o que pensou. Quando voltasse para os Estados Unidos, já podia dizer aos amigos o que era o verdadeiro frio. Passou desta imagem para uma visão do velho veterano de Sulphur Creek. Via-o distintamente, muito confortável e quente, a fumar cachimbo. 
— Tinhas razão, velho amigo, tinhas toda a razão — sussurrou para o velho veterano de Sulphur Creek. 
Depois o homem caiu naquilo que lhe pareceu ser o mais confortável e restaurador dos sonos que jamais experimentara. O cão continuava sentado a olhar para ele, à espera. O curto dia aproximava-se do fim num crepúsculo longo e lento. Não havia sinais de que se fosse fazer qualquer fogueira, e além disso, nunca na sua experiência o cão conhecera homem nenhum que ficasse sentado na neve sem fazer uma fogueira. À medida que o crepúsculo avançava, o seu desejo por uma fogueira aumentava, e, mexendo-se muito e trocando constantemente a posição das patas dianteiras, começou a ganir baixinho e depois achatou as orelhas, a antecipar os ralhos do homem. Mas o homem continuava calado. Depois o cão começou a ganir alto, e a seguir rastejou até junto do homem, mas cheirou-lhe a morte. Isto fê-lo eriçar-se e recuar. Ficou ainda um pouco a uivar sob as estrelas, que saltitavam e dançavam brilhantes no céu frio. Depois voltou-se e começou a trotar pelo trilho adiante em direção ao acampamento que ele conhecia e onde estavam os outros alimentadores e fazedores de fogueiras.   


Eu não vivo para o que o mundo pensa de mim, mas para o que eu penso de mim mesmo.


2 comentários:

  1. Gênio, gênio, gênio. Li vários dos seus livros, sendo que o melhor é o 'Chamado Selvagem', em que ele desenvolve o romance na 'pessoa do cão', muito bom! Ele também escreveu um romance baseado em sua vida, mas que não é autobiográfico, no qual há um claro prenúncio do suicídio que viria.
    Parabéns, Prévidi, na mosca!

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  2. Tinha uma vigorosidade para viver e para escrever muito semelhante a de Hemingway.

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