Sexta, 24 de out. de 2025

 


NESSA SEXTA
a cesta do João Paulo






JOÃO PAULO DA FONTOURA é de Taquari-RS. É escritor e historiador diletante, membro da ALIVAT – Academia Literária do Vale do Taquari, titular da cadeira nº 26.





Ulisses  - James Joyce 

  Ulisses é, complicado, brilhante, interminável, sublime, exaustivo, barroco, 
louco, valioso, um porre, uma leitura inesquecível



Há três anos, quando completou 100 anos do lançamento do livro Ulysses (foi lançado em dois de fevereiro de 1922, em Paris), obra maior do genial e controverso escritor irlandês James Joyce, a editora Companhia das Letras lançou por aqui uma edição especial, com tradução revisada de Caetano W. Galindo, 848 páginas, ao "módico" preço de 190 reais.
Há tempos eu queria atravessar esse oceano de palavras, mas não conseguia encontrá-lo com amigos ou em bibliotecas. Alguém já disse, "ler Ulisses equivale aos doze trabalhos de Hércules – juntos". Quando falava da minha intenção, só ouvia risos de escárnio seguidos de palavras pouco incentivadoras tipo, "duvido que passes da página 20!"
Consegui-o, usado, via internet.
Um calhamaço com 852 páginas, traduzido pelo nada mais nada menos que Antônio Houaiss, ‘o cara’, editado pela Abril em 1980. Paguei pouco. Reconheço, é uma leitura nada fácil. Mas segui firme e o abati em uns suados 20 dias.


(Eu sempre me invoquei com a letra doida – pero lindíssima – da música do grupo inglês Procol Harum, ‘A Whiter Shade of Pale’, composta por Gary Brooker, recém falecido, mas agora entendo – ele certamente leu Ulisses!)


Não sou um hermeneuta, e nem mesmo tenho uma exegese à altura da obra, mas, com meus (parcos) conhecimentos e (muita) ousadia, vamos lá a uma petite analyse da genial, confusa, e revolucionária obra do genial, confuso, alcoólatra e quase cego escritor irlandês.
Introduzo, dizendo que esse malucão é a mais completa enciclopédia humana em termos de literatura, teatro, canto, música, línguas, história, ciência, etc. O cara tudo leu e tudo conhece. Das línguas vivas (inglês, francês, italiano, espanhol, etc.) ele conhece mais de 20, além do latim, sânscrito e grego arcaico. Ele vai escrevendo, neologizando, contrapondo cognatismos com polissemias e mandando muitos termos chulos, senão pornográficos, como, por exemplo: "... Ela hesita em meio a fragrâncias, música, tentações. Ela o conduz para os degraus, atraindo-o pelo odor dos sovacos, o viço dos seus olhos pintados, o frufru de sua camisola em cujas pregas sinuosas se enrosca o fartum leonino de todos os brutos e machos que a possuíram."
E o incauto leitor que se vire.
Já na primeira página do primeiro capítulo ele tasca um "Introibo ad altere Dei". A complexidade da linguagem é tal que há na internet uma espécie de ‘busca’ que explica cada termo ou mesmo frase em que o leitor empaca desesperado. Como são vários os termos indelineáveis, essa busca tem mais que o dobro de palavras contidas no livro. Se a cada dúvida formos consultar esse compilado explicativo, esqueçam dos meus 20 dias, a leitura levará meses, ou mais!



O lançamento em 1922 foi uma loucura total.
Nos Estados Unidos, mais de 500 livros queimados, na Inglaterra, outros tantos.
A intenção do gênio era muito clara, provocar, instigar, chacoalhar a acomodada sociedade vitoriana e sua cínica moralidade – mas, convenhamos, não precisava tanto.
Teve o mesmo, ou maior, impacto do que o russo Igor Stravinsky com sua "Sagração da Primavera", ou o Cubismo de Picasso e Dalí, ou mesmo o "Encouraçado Potemkim" de Eisenstein.
Não havia meio termo, ou se amava ou se odiava.
Virginia Woolf, contemporânea de Joyce, sabe-se lá se por despeito, em seu diário registrou à posteridade: "Terminei Ulisses, acho que é um fracasso. Gênio, certamente, mas água menos virtuosa. O livro é difuso, lamacento, pretensioso e vulgar."
Acaba explodindo em termos de consagração mundial com sua liberação em 1933, 12 anos após seu tumultuado lançamento.



Um pouco do livro, ou do que entendi
A ação do romance transcorre em um único dia em Dublin, Irlanda, numa quinta-feira de 16 de junho de 1904 (essa data, Bloomsday, é festejada anualmente há vários anos por milhares de admiradores do escritor e da sua obra maior, em todo o mundo).
Digamos ser uma paródia em forma de paralelismo com a Odisséia do grego Homero.


(Mas essa comparação, paralelismo, eu a repito aqui mais por comodismo, inércia, medo de querer parecer um expert no tema, coisa que certamente não o sou. A mim, o romance do irlandês Joyce nada tem a ver com o fio lógico dos mais de 12 mil versos da obra homérica!)

Na obra de Homero o personagem central, Ulisses, é o Leopold Bloom de Joyce; Penélope, a esposa casta de Ulisses, tem seu símile em Molly Bloom, a esposa não tão casta do Bloom, e, finalmente, Stephen Dedalus é o Telêmaco homérico. Há outros personagens interessantes, Buck Mulligan, um estudante de medicina, amigo e de certa forma rival de Dedalus, tem também uma participação importante no enredo. Os demais: May Dedalus, a mãe morta de Stephen; Haine, um estudante inglês, Simon, pai de Stephen, são secundários.
Joyce desenvolve seu romance em forma de um prelúdio tripartite, um núcleo em 12 capítulos, e um final também tripartido.
Inicia com o anti-herói Leopold Bloom, um fracassado vendedor de anúncios de jornais casado com uma mulher adúltera (em contraponto ao heroico Ulisses que no poema homérico luta contra tudo e todos no resgate de sua Ítaca onde sua amada Penélope, depois de 17 anos, ainda castamente aguarda seu herói.
A Ítaca do Bloom é sua casa dublinense à rua Eccles, nº 7), tomando seu café da manhã em sua casa, e, após, com seu amigo Stephen Dedalus, seguindo em sua mambembe odisseia de desilusões e fracassos.
Joyce, nessa caminhada de um dia de Bloom e de seu amigo Stephen, acaba por traçar uma espécie de linkagem com o mundo da época, relativamente moderno, suas novidades científicas, as questões sociais, os avanços das artes, os problemas religiosos, esotéricos, sociais, etc.

E o romance termina com o monólogo interior de Molly Bloom, sem pontuação, mas com redenção (aliás, da página 797 à 857 tudo é sem pontuação ou nova linha, loucura total): "... e como ele me beijou debaixo da muralha moura eu disse a mim mesmo atrás dele tão bem quanto qualquer outro e então pedi-lhe com os olhos para perguntar novamente sim e então ele me perguntou se eu queria dizer sim minha flor da montanha e primeiro ele colocou meus braços em volta dele sim e eu o puxei para mim para que ele pudesse cheirar meus seios perfumados sim e seu coração estava batendo feito louco e sim eu disse sim eu quero sim"
Finalizando, não dá para negar (remember, "João, tu não vais passar da página 20") que a leitura de Ulisses pode ser decepcionante para um incauto, não iniciado, um nêmesis literário muito difícil de ser vencido.
Eu estava preparado.
Antes da hercúlea tarefa, já havia lido a biografia de Joyce, um calhamaço de 916 páginas (obra de Richard Ellmann, publicada em 1959 e revisada em 1982, considerada por muitos a biografia definitiva do autor irlandês) que esmiúça ao limite essa extraordinária figura humana que, pra mim, sem um átomo de dúvida, foi o maior personagem da literatura do século XX.
Nesta biografia, é revelado que, finalizando sua obra, ele (Joyce) lança um repto provocativo aos intelectuais literatos tipo "quero ver vocês decifrarem este meu enigma!"
E de enigmas – literários, científicos, históricos, comportamentais – o romance é prenhe.
Acabo aqui essa minha resenha, ensaio, citando um (enigma) que, por eu gostar de história, consegui entender sem grandes esforços ou busca no google. Como já posto, ‘Joyce não explica as coisas, não pega ninguém pela mão e diz, é isso, ou, vai por aqui, o caminho é esse!’. De repente pinta como citação o ano 1849, claro que sem contexto. Saquei perfeitamente: este ano é o da grande fome na Irlanda, quebra da safra das batatas que provocou uma maciça migração de irlandeses aos Estados Unidos, entre eles um faminto Patrick Kennedy que vem a ser o bisavô do 35º presidente dos Estados Unidos, o primeiro católico, John F. Kennedy.


That’s All, Folks!


Algumas frases, conceitos, observações sobre Joyce e Ulisses retirados da web:



- Intraduzível é o adjetivo mais comumente associado a ULISSES, romance que revolucionou a literatura com intrincados jogos de linguagem, fluxos de consciência labirínticos e um diálogo inusitado com a ODISSEIA de Homero;


- O poeta e tradutor Augusto de Campos, elogiou a disposição de Houaiss para "subverter o idioma para corresponder às invenções do original". Erudita, a tradução do filólogo já foi acusada de ser mais complicada do que o original em inglês;


- Ulysses é um romance cômico, dotado de uma capacidade quase infinita de ternura, que não dá as costas ao sofrimento. Escandalosamente carnavalizado, mudou a história da literatura ao afirmar o afeto e o riso. Não é pouca coisa. Ele nos propõe um muito menos trágico, pós-religioso, anárquico e pacifista, movido pelo interesse, pela curiosidade e pela tolerância. (Palavras do tradutor Caetano W. Galindo – Cia das Letras, lançado em 2012.);


- A narrativa do livro contém inúmeras referências à história, debates intelectuais e cultura irlandesa do século XIX, que podem (e são) ser difíceis de entender sem um conhecimento aprofundado do contexto;


- Muitos leitores que abandonaram a obra relataram sentir que Joyce se deleitava com a própria inteligência, tornando a leitura uma experiência árdua e frustrante, em vez de divertida.



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