O LIVRO QUE NÃO FOI ESCRITO
Recebo:
Texto do consagrado jornalista Fernando Albrecht que assina a coluna Começo de Conversa do Jornal do Comercio.
Publicado no imperdível livro "Na Ponta da Agulha" do grande Claudinho Pereira. Vale muito a leitura.
O FERNANDO |
Nos tempos em que a juventude dourada curtia à noite de Porto Alegre com novas formas de diversão, que não apenas as reuniões dançantes, a região da Avenida Independência concentrava a jeunesse dorée. Mas, o silêncio ainda era sagrado. O cantor e compositor Rubens Santos mantinha na Rua Garibaldi, em sociedade com Lupicínio Rodrigues, o Clube dos Cozinheiros, com música ao vivo. Era proibido bater palmas, substituídas por estalo de dedos, para não atentar contra a moral e os bons costumes daqueles anos 60. Porto Alegre era uma festa. Silenciosa.
Eu sempre tive minhas dúvidas sobre esse binômio ser tão arraigado assim. Sabiam até os espirais mata-mosquitos que a esbórnia imperava naquele tempo. Fingia-se o pundonor. O garçom Zezinho, que hoje trabalha no restaurante Gambrinus, no Mercado Público, passou pela imortal Tia Dulce, na Avenida Independência 827. Quando as boates e os bares fechavam, madrugada alta, íamos para a Tia Dulce comer – ou tomar – uma sopa de cebola. Tia Dulce, a proprietária, era casada com o seu Cassel, que lutou na II Guerra Mundial, e que para os íntimos mostrava discretamente um 45, para o caso de estourar a terceira guerra.
Perambulava eu pela Avenida Independência quando encontro o pioneiro das boates, Carlos Heitor Azevedo. Ele começou com o Crazy Rabbit na Garibaldi e depois abriu a Baiuca, em frente ao Tia Dulce, rebatizado anos depois para Vila Velha. Então estamos falando de um especialista. Ele ia e vinha tripulando um jipe do tempo da guerra do seu Cassel. Papo vem, papo vai, ele falou:
- Vou escrever minhas memórias. E pretendo contar tudo. Mas tudo mesmo, e sobre todo o mundo, o que vi e ouvi. Vai ser um livro-bomba.
E aí era literal, porque Carlos Heitor foi soldado boina-azul da ONU na Faixa de Gaza, no inicio dos anos 60. E qual seria o nome desse atentado?
- “Fatos que presenciei, pessoas que conheci.”
Vocês sabem que todos nós temos que ajudar o próximo, seja para expiar maldades feitas, seja par ter habeas corpus para maldades futuras. Afinal, nós católicos mal nascemos e já estamos com saldo devedor no cheque especial que acabamos de receber, cortesia do seu Adão que não obedeceu as regras do condomínio.
Então fiz minha opção. Perguntei se o nome dele ainda constava no guia telefônico.
- Sim, disse um curioso Carlos Heitor.
- Então, amanhã passa o dia colado no telefone. Não arreda dele.
No dia seguinte, escrevi no Informe Especial que o conhecido homem da noite Carlos Heitor escreveria suas memórias, recheadas de episódios picantes. Dei o título e sugeri que armários seriam escancarados. De noite, liguei para ele. Estava feliz da vida.
- Rapaz, tu não sabes o que recebi de telefonemas e quantos amigos tenho! Todos querendo saber se eu pretendia voltar a ter uma casa noturna ou qualquer outro negócio, e que dinheiro não seria problema. A propósito, qual era mesmo o título da autobiografia?
Em resumo, em apenas um dia apareceram mais mecenas do que pulgas em cão de mendigo e dólares na conta bancária do Elke Batista. Foi um milagre de Natal fora de época, o que levou o escritor a adiar sua obra.
Foi o livro não escrito que mais vendeu.
Para o Claudinho Pereira e Fernando Albrecht: o último point do Carlos Heitor, no mesmo lugar da Baiuka e Vila Velha foi o restaurante Milho Verde, onde os jornalistas que dormiam tarde (não há boêmios em POA, segundo Ibsen Pinheiro) se reuniam após o fechamento dos jornais, em especial a Folha da Manhã e, mais tarde, a Folha da Tarde. O Walter Galvani tem boas histórias de nossos jantares quando a atração especial era o Tatata Pimentel. O Carlos Heitor tinha um garçon, o Nenê, um garoto disputado pelos clientes gays. CH não gostava do assédio sobre o jovem... O Milho Verde quando fechou encerrou uma fase da vida noturna de POA. Rogério Mendelski
ResponderExcluirO livro que não foi escrito é do Fernando Albrecht, o matarial está praticamente pronto no "A vida como ela foi".
ResponderExcluirBem que a Editora da Cidade, Secretaria Municipal da Cultura, poderia se interessar, seria mais um verdadeira resgate de Porto Alegre.
Paulo Pruss