ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA
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especial
Nesta sexta, uma cesta
de Nélida Piñon!
Aos 85 anos, a premiada
escritora não para de produzir
Eu não confio no Estado.
Eu confio na vigilância da sociedade.
O afeto é uma espada no peito.
Nélida Piñon (Nélida Cuíñas Piñon) nasceu no Rio de janeiro, na Vila Isabel, em 3 de maio de 1937. É esccritora e já presidiu a Academina Brasileira de Letras.
Seus pais, o comerciante Lino Piñon Muíños e Olívia Carmem Cuíñas Piñon são originários da Galícia, do conselho de Cotobade, na Espanha.
Formou-se em jornalismo pela PUC-Rio e foi editora e membro do conselho editorial de várias revistas no Brasil e exterior. Também ocupou cargos no conselho consultivo de diversas entidades culturais.
Estreou na literatura com o romance Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo, publicado em 1961, que tem como temas o pecado, o perdão e a relação dos mortais com Deus.
Em 1963 publicou seu segundo livro Madeira Feito Cruz. Em 1965, viajou para os Estados Unidos com a bolsa “Leader Grant”, concedida pelo Governo norte-americano.
No romance A República dos Sonhos, baseado em uma família de imigrantes galegos no Brasil, ela faz reflexões sobre a Galícia, a Espanha e o Brasil.
Nélida Piñon é, também, acadêmica correspondente da Academia das Ciências de Lisboa como também, em outubro de 2014, entra na Real Academia Galega.
Eleita em 27 de julho de 1989 para a cadeira que tem por patrono Pardal Mallet, da qual é a quinta ocupante. Tomou posse em 3 de maio de 1990, recebida por Ledo Ivo.
Foi a primeira mulher a se tornar presidente da Academia Brasileira de Letras, entre 1996 e 1997.
Ainda criança era estimulada para a leitura e escrevia pequenas histórias. Com 4 anos mudou-se para Copacabana. Em seguida morou no Botafogo, quando estudou no Colégio Santo Amaro.
Com nove anos, Nélida já frequentava o Teatro Municipal. Com 10 anos fez sua primeira viagem à terra de seus pais, onde ficou durante quase dois anos.
Na adolescência, morou no Leblon. Com 20 anos perdeu o pai, grande responsável por sua formação como escritora.
Entre 1966 e 1967, Nélida trabalhou como editora assistente da revista Cadernos Brasileiros.
Em 1970 inaugurou e foi a primeira professora da cadeira de Criação Literária da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Entre 1976 e 1993 foi membro do Conselho Consultivo da revista Tempo Brasileiro.
Entre 1990 e 2003, foi titular da Cátedra Henry Kin Stanford em Humanidades, da Universidade de Miami, onde realizou cursos, debates, encontros e conferência.
Nélida foi escritora-visitante da Universidade de Harvard, da Columbia, de Georgetown, de Johns Hopkins, entre outras.
Ao longo de sua carreira, Nélida colaborou com diversas publicações nacionais e estrangeiras. Seus contos foram publicados em diversas revistas e fazem parte de antologias brasileiras e estrangeiras.
A obra de Nélida Piñon foi traduzida para diversos países, como Alemanha, Espanha, Itália, Estados Unidos, Cuba, União Soviética e Nicarágua.
Em 9 de novembro de 2011, em sua homenagem foi inaugurada em Salvador, Bahia, a Biblioteca Nélida Piñon, a primeira biblioteca do Instituto Cervantes que recebeu o nome de um escritor de língua não hispânica.
Em outubro de 2014 por iniciativa do Concello de Cotobade, com a colaboração da Conselleria de Cultura, Educación e Ordenación Universitaria da Xunta de Galícia, foi lançado o “Prêmio Nélida Piñon”.
Em outubro de 2015 foi inaugurada em Cotobade, Galícia, terra de sua família. A Casa de Cultura Nélida Piñon.
Prêmios Literários
Prêmio Walmap com o romance “Fundador” (1970)
Prêmio Mário de Andrade com o romance “A Casa da Paixão” (1973)
Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte
Prêmio Ficção Pen Clube com o romance “A República dos Sonhos” (1985) Prêmio Golfinho de Ouro pelo conjunto da Obra (1990)
Prêmio Jabuti – Melhor Romance de 2005 e Melhor Livro do Ano na Categoria Geral (2005) por “Vozes do Deserto”Prêmio Juan Rulfo, no México
Prêmio Jorge Isaacs, na Colômbia
Prêmio Rosalia de Castro, na Espanha
Prêmio Gabriela Mistral, no Chile
Prêmio Puterbaugh, nos Estados Unidos
Prêmio Menéndez Pelayo da Espanha
Prêmio Príncipe de Astúrias pelo Conjunto da Obra (2005)
Doutor Honoris Causa
Doutor Honoris Causa da Universidade de Poitiers, França
Doutor Honoris Causa da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha
Doutor Honoris Causa da Florida Atlantic University, EUA
Doutor Honoris Causa da Universidade de Montreal, Canadá
Doutor Honoris Causa da Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre
Obras de Nélida Piñon
Guia-Mapa de Gabriel Arcanjo (1961)
Madeira Feita Cruz (1963)
Tempos das Frutas: contos (1966)
Fundador (1969)
A Casa da Paixão (1972)
Tebas do Meu Coração (1974)
A Força do Destino (1977)
O Calor das Coisas (1980)
Sala das Armas (1983)
A República dos Sonhos (1984)
Canção de Caetana (1987)
O Pão de Cada Dia (1994)
Até Amanhã, Outra Vez (1999)
A Roda do Vento (1998)
Vozes do Deserto (2004)
Aprendiz de Homero; ensaio (2008)
Coração andarilho: memória (2009)
Livro das Horas: memória (2012)
A Camisa do Marido (2014)
Filhos da América (2016)
...às vezes, tem ciência de acertar, de atingir por momentos o ápice da narrativa. O raro instante em que, ao atingir a corda sensível do enredo, não lhe cabe recuar ou abdicar dos ingredientes que, apaixonadamente enlaçados, determinam seu desfecho.
NO DIA DE SEU ANIVERSÁRIO
3 DE MAIO DE 2022 - JORNAL DE BRASÍLIA
Nós nascemos pobres, mas com ilusões.
ENTREVISTA PARA REVISTA CÂNDIDO, EM ABRIL DE 2022
Uma das mais importantes vozes da literatura brasileira contemporânea, Nélida Piñon tem muito o que contar. Na sua obra, os afetos, a imaginação e as memórias se entrecruzam num mosaico narrativo singular, de envergadura mítica, épica. Ler seus livros é embarcar em travessias embaladas por uma prosa elaborada e de ritmo quase musical em que as palavras soam como instrumentos perfeitamente harmonizados de uma orquestra a um só tempo múltipla e intimista que, não raro, dá à sequência de páginas um caráter de sinfonia. Reverenciada dentro e fora do Brasil, tendo recebido diversos prêmios importantes, como o Juan Rulfo, em 1995, e o prestigioso Principe de Astúrias, em 2005, Nélida estreou na literatura em 1961 com Guia mapa de Gabriel Arcanjo e, desde então, publicou duas dezenas de livros, entre romances, memórias, coletâneas de contos, de ensaios e de crônicas, além do infantojuvenil A roda do vento. Após lançar seus Melhores contos, pela editora Global, seu novo livro está a caminho. Trata-se de A camisa do marido, uma reunião de contos inéditos em que a escritora e imortal da Academia Brasileira de Letras se debruça sobre a complexidade das relações e dos sentimentos em torno do complexo núcleo familiar. O livro será lançado em 6 de novembro, durante uma sessão de autógrafos numa livraria do Rio de Janeiro. A seguir, os principais momentos da conversa, feita no apartamento da escritora.
Seu próximo lançamento é o livro de contos A camisa do Marido. Você já fez belíssimas incursões pelo formato, como em O calor das coisas, Tempo das frutas e aquele que, pessoalmente, me marcou mais, Sala de armas, em especial o conto “Colheita”, para mim uma pequena obra-prima, em que você tece uma metáfora da condição da mulher e da relação do mundo com a voz feminina. O que podemos esperar de A camisa do marido?
Estou quase dizendo que esperem (risos). Meu editor, Carlos Andreazza, está fascinado com a violência dos sentimentos, com a violência das relações humanas no livro. E quem acabou de fazer uma apresentação pequena, mas brilhante, foi a Lya Luft. O livro seria maior, mas cortei alguns contos de propósito. Eu quis me fixar no núcleo familiar. A família, afinal, é a sociedade. Eu falo do fracasso e dos desacordos das relações, do depauperamento das realidades e, ao mesmo tempo, da coragem de revelar sentimentos árduos, duros, primitivos... Há uma tonalidade primitiva em muitos contos. Acho muito importante ser capaz de conjugar esse lado primitivo dos sentimentos, que, de verdade, pautam as sociedades cosmopolitas, que pensam que estão ausentes disto e não estão. Ninguém está protegido. Nenhum véu, nenhum enigma nos protege da nossa própria brutalidade afetiva.
Nélida, nos conhecemos há anos e sempre tive curiosidade em lhe fazer uma pergunta: em que momento exatamente surgiu o seu primeiro impulso de escrever?
Eu acho que surgiu quando comecei a ler. Porque o livro tem uma dinâmica tão extraordinária quando você, sobretudo, é pequena, que te alça a uma categoria de exceção. Então eu me sentia uma pequena heroína, alguém capaz de singrar os mares. Eu me imaginava o Sinbad, eu sempre me imaginei uma aventureira, porque eu queria desfrutar das sensações que os aventureiros narravam nos livros. Tendo em vista, então, essa situação de prazer que a leitura me propiciava e, sobretudo, me animando a ser uma outra pessoa, a aderir ao corpo do outro e ser uma aventureira, decidi que também deveria escrever para sentir as emoções do autor. Porque eu supunha que o autor tinha vivido tudo o que ele contava. Tudo começou aí: a minha ânsia em relação à literatura e o meu enamoramento pela narrativa.
Uma história muito interessante é a que cerca a publicação do seu primeiro livro, Guia Mapa de Gabriel Arcanjo. Conte um pouco a respeito.
Pela minha formação intelectual e familiar, eu oscilava muito entre leituras libertárias e até libertinas, por assim dizer, porque eu tinha acesso a qualquer tipo de literatura. E, ao mesmo tempo, tinha uma boa formação teológica para a minha idade, por ter estudado em colégio alemão de freiras beneditinas e também por vir de uma família de cunho religioso. Eu era muito atraída pelo pecado no que ele buscava tangenciar a realidade. Sentia que o pecado não era o pecado que merecesse a condenação. Era o pecado que você o praticando se transformava em uma via de liberdade. Então, eu criei uma personagem feminina atrevida — eu já era uma feminista sem saber —, a Mariela. Ela se dá conta de que o pecado é um transtorno para a liberdade do ser humano. Há um grande debate teológico e poético entre essa voz feminina e um anjo, que de certo modo, é engolfado pela voltagem poética e pelos debates teológicos da moça. Acho que nesse livro exercito uma liberdade poética sem limites, porque eu estava à margem de todo o sistema literário, não convivia com escritores. Então, fiz esse meu livro sem pensar nas consequências. A estética não pautava as minhas decisões estéticas. A estética estava onde devia estar no texto e na minha paixão de averiguar o que era compor uma história, o que era imprimir a essa linguagem uma suposta originalidade que o próprio texto exigia. A estética era uma exigência do texto e não uma exigência da escritora.
De que forma o fato de você ter nascido no Brasil, vinda de uma família que emigrara da Galícia, afetou a sua produção literária?
Foi extraordinário, porque eu convivia com duas realidades. As pessoas, normalmente, convivem com os limites da sua casa. É difícil transbordar, passar para outros estágios dentro da sua própria casa. Então, eu convivia com comidas brasileiras e, ao mesmo tempo, comia polvo que chegava da Europa. Desde pequena escutava falarem da Galícia como uma terra que fatalmente eu iria conhecer; havia territórios fora do Brasil que eu teria obrigação de conhecer. Portanto, arrastava na minha sensibilidade, na minha imaginação e no meu imaginário, não só a Galícia, mas a Espanha, a Europa, e isso me levou muito cedo a entender os gregos, que são a minha paixão, os romanos, os hebreus, eu cruzava sempre todos os séculos e adorava saber como estavam os gregos no Século VIII a.C., como era o Oriente Médio neste mesmo período... Isso fez com que eu não aceitasse mais limites, me deu uma liberdade extraordinária. Um dos méritos do escritor, afinal, é reivindicar a liberdade no texto e no pensamento. E me deu também o sentimento de línguas porque vi como eu era antiga. Essa foi uma das maiores conquistas de ser filha da imigração. Daí um raciocínio que faço muito: para você ser moderna, você tem que ser arcaica, você tem que ter frequentado as Argólidas gregas, por exemplo, você deve ter convivido com Agamenon. Por isso que Homero é uma pessoa que eu amo.
Ainda sobre suas origens, vejo você como uma pessoa de cabeça aberta e um imaginário profundamente cosmopolita. É como se nada no mundo lhe fosse estranho. Essa vivência entre os dois lados do Atlântico contribuiu para isso?
Muito. É interessante que quando fiz minha primeira viagem à Galícia, pensei que minha ida era diferente da viagem do meu pai que, ao chegar ao Brasil no início da sua vida, perdeu metade do coração, pois uma parte ficou na Espanha. Eu, ao contrário, quando atravessei o Atlântico e lá cheguei pela primeira vez, ganhei corações que me faltavam. Tornei-me uma camponesa. Tenho, até hoje, uma sensibilidade aguda em relação ao campo. Sou uma mulher cosmopolita, mas a minha raiz essencial, que é um dos fundamentos da minha sobriedade, uma sobriedade que contrasta com a minha efervescência narrativa, é o fato de eu haver sido uma camponesa, de haver sido alguém que tinha como fundamento a terra, a colheita, o arado, as vacas, os animais eternos. Tenho uma nostalgia do eterno, de tudo que veio de muito longe e lá ficou, mas que vem para a minha contemporaneidade quando eu resgato. Sou responsável pela tarefa de resgatar imagens perdidas.
Como você enxerga a leitura no Brasil de hoje? Acredita que os brasileiros estão lendo mais, como se tem afirmado?
Não vejo isso. Talvez eu esteja equivocada, espero estar. O que vejo é um empobrecimento intelectual no cotidiano, na compreensão dos fenômenos humanos, na dificuldade de se exprimir. Há uma carência léxica muito grande. Mas sinto também, por outro lado, que há uma curiosidade intensa. E que talvez nós estejamos numa fase de formação que deveríamos ter tido muito antes. O Estado brasileiro foi irresponsável e de certo modo, nos manteve nessa apatia intelectual. A educação no Brasil é de extraordinária precariedade, portanto eu fico impressionada quando dizem que aumentou o índice de leitura. Talvez tenha aumentado o índice de curiosidade e as pessoas, devagar, estejam tentando ler aquilo que no início elas não entendiam. Porque a leitura tem um drama. Ela é tão extraordinária, ler é tão revolucionário, que modifica a sua cabeça, afeta o seu coração, alarga os seus sentidos, o seu sexo... Seu sexo enriquece muito mais com o erotismo da leitura. Talvez estejamos vivendo essa experiência única, estejamos nos dando conta do que é que nos faltava: era a leitura.
Qual a sua avaliação sobre o ensino de literatura nas escolas brasileiras? Um ponto polêmico: Machado de Assis, nosso grande mestre das letras, costuma ser mal recebido por alunos nas carteiras escolares, que encontram dificuldades em mergulhar em sua obra. Como estudiosa e amante da literatura, o que você proporia para que as nossas escolas efetivamente formassem leitores com genuíno gosto pelos livros? Machado, com bons mediadores de leitura, seria uma alternativa?
Não. Eu não sou favorável a que antecipem os feitos e os fatos. Machado é o grande gênio brasileiro e tenho paixão por ele, mas ele exige uma sensibilidade intelectual muito apurada. Nós não podemos arriscar em estabelecer incompatibilidades entre os jovens leitores e Machado, senão eles vão odiá-lo pelo resto da vida, como nós, quando jovens, odiávamos análise sintática. Acho que tudo tem sua hora. Machado merece ser amado e não que se ponha sobre ele um estigma de autor impossível.
Um trecho de seu mais recente livro, Livro das Horas, me impactou sobremaneira. Dele, destaco a sequência: “Habituei-me a sofrer dos demais uma avaliação estética que redunda em perdas, em desmoralização pessoal(...) Querem à força afugentar o leitor que se aventure a me ler”. Como é a sua relação com a crítica literária? Você enfrentou ou ainda enfrenta preconceitos na sua carreira?
Enfrentei muitos. Mas quero que saibam que digo isso sem ressentimento, sem mágoa. Foi a primeira vez (em Livro das horas) que mencionei isso em todas essas décadas. Vocês hão de convir que fui muito discreta e muito reservada. Mas achei que era o momento de dizer, até para ajudar os jovens, mostrar como é necessário dar combate àqueles que tentam silenciar você. Porque o que sofri foi uma espécie de condenação ao silêncio, ao mutismo, para eu não continuar a escrever. Em compensação, tive estímulo de outras pessoas, que foram maravilhosas comigo. Talvez eu gere um certo incômodo por ser mulher. Não querem aceitar uma mulher que seja capaz de fazer uma obra séria, de labor intelectual sério e que tenha competência literária. Ainda hoje é difícil para as mulheres serem reconhecidas. Condenar uma obra ao hermetismo é a melhor forma de calar você para sempre se você for fraca.
Você é uma escritora bastante celebrada no exterior, com obras traduzidas para vários idiomas, além dos muitos prêmios que recebeu, como o Juan Rulfo e o importante Príncipe de Astúrias. A literatura brasileira ainda sofre para ser mais conhecida além das nossas fronteiras?
Sem dúvida. Nós temos, de vez em quando, pequenas euforias, autores nossos que pensam que estamos conquistando algo, mas o fato é que ainda somos periféricos. Quem conhece bem o mundo europeu, o mundo americano, conhece bem os grandes tabloides, os grandes suplementos literários, vê que nós quase não aparecemos. Não deixamos ainda uma marca profunda, extensa, transformadora no mundo.
A que você atribui isso?
Primeiro, à língua portuguesa, que é muito menos estudada e conhecida do que o espanhol, por exemplo. O espanhol é uma língua que transita pelo mundo inteiro. Já há muito o grande gramático Nebrija dizia que os espanhóis eram conquistadores também na língua. Além disso, houve sempre um trânsito muito intenso entre o mundo hispânico nas Américas e Madri. Madri tinha grande prestígio intelectual, de modo que os escritores jovens tomavam o rumo da Europa. Em Madri eles encontravam língua espanhola esperando por eles encarnada numa figura histórica e eram acolhidos. Tanto que você vê que o movimento modernista de língua espanhola nas Américas ocorreu muito mais cedo do que o brasileiro.
Anseio por liberar-me das obrigações, da falsa polidez, do peso dos objetos. A solidão, que a noite acentua, é a minha salvaguarda.
COLHEITA
CONTO DE NÉLIDA
Um rosto proibido desde que crescera. Dominava as paisagens no modo ativo de agrupar frutos e os comia nas sendas minúsculas das montanhas, e ainda pela alegria com que distribuía sementes. A cada terra a sua verdade de semente, ele se dizia sorrindo. Quando se fez homem encontrou a mulher, ela sorriu, era altiva como ele, embora seu silêncio fosse de ouro, olhava-o mais do que explicava a história do universo. Esta reserva mineral o encantava e por ela unicamente passou a dividir o mundo entre amor e seus objetos. Um amor que se fazia profundo a ponto de se dedicarem a escavações, refazerem cidades submersas em lava.
A aldeia rejeitava o proceder de quem habita terras raras. Pareciam os dois soldados de uma fronteira estrangeira, para se transitar por eles, além do cheiro da carne amorosa, exigiam eles passaporte, depoimentos ideológicos. Eles se preocupavam apenas com o fundo da terra, que é o nosso interior, ela também completou seu pensamento. Inspirava-lhes o sentimento a conspiração das raízes que a própria árvore, atraída pelo sol e exposta à terra, não podia alcançar, embora se soubesse nelas.
Até que ele decidiu partir. Competiam-lhe andanças, traçar as linhas finais de um mapa cuja composição havia se iniciado e ele sabia hesitante. Explicou à mulher que para a amar melhor não dispensava o mundo, a transgressão das leis, os distúrbios dos pássaros migratórios. Ao contrário, as criaturas lhe pareciam em suas peregrinações simples peças aladas cercando alturas raras.
Ela reagiu, confiava no choro. Apesar do rosto exibir naqueles dias uma beleza esplêndida a ponto de ele pensar estando o amor com ela por que buscá-lo em terras onde dificilmente o encontrarei, insistia na independência. Sempre os de sua raça adotaram comportamento de potro. Ainda que ele em especial dependesse dela para reparar certas omissões fatais.
Viveram juntos todas as horas disponíveis até a separação. Sua última frase foi simples: com você conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher, embora os diálogos do homem a inquietassem. A partir desta data trancou-se dentro de casa. Como os caramujos que se ressentem com o excesso da claridade. Compreendendo que talvez devesse preservar a vida de modo mais intenso, para quando ele voltasse. Em nenhum momento deixava de alimentar a fé, fornecer porções diárias de carpas oriundas de águas orientais ao seu amor exagerado.
Em toda a aldeia a atitude do homem representou uma rebelião a se temer. Seu nome procuravam banir de qualquer conversa. Esforçavam-se em demolir o rosto livre e sempre que passavam pela casa da mulher faziam de conta que jamais ela pertencera a ele. Enviavam-lhe presentes, pedaços de toicinho, cestas de pêra, e poesias esparsas. Para que ela interpretasse através daqueles recursos o quanto a consideravam disponível, sem marca de boi e as iniciais do homem em sua pele.
A mulher raramente admitia uma presença em sua casa. Os presentes entravam pela janela da frente, sempre aberta para que o sol testemunhasse a sua própria vida, mas abandonavam a casa pela porta dos fundos, todos aparentemente intocáveis. A aldeia ia lá para inspecionar os objetos que de algum modo a presenciaram e eles não, pois dificilmente aceitavam a rigidez dos costumes. Às vezes ela se socorria de um parente, para as compras indispensáveis. Deixavam eles então os pedidos aos seus pés, e na rápida passagem pelo interior da casa procuravam a tudo investigar. De certo modo ela consentia para que vissem o homem ainda imperar nas coisas sagradas daquela casa.
Jamais faltou uma flor diariamente renovada próxima ao retrato do homem. Seu semblante de águia. Mas, com o tempo, além de mudar a cor do vestido, antes triste agora sempre vermelho, e alterar o penteado, pois decidira manter os cabelos curtos, aparados rentes à cabeça — decidiu por eliminar o retrato. Não foi fácil a decisão. Durante dias rondava o retrato, sondou os olhos obscuros do homem, ora o condenava, ora o absolvia: porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer se devo comemorar sua morte com o sacrifício da minha vida.
Durante a noite, confiando nas sombras, retirou o retrato e o jogou rudemente sobre o armário. Pôde descansar após a atitude assumida. Acreditou deste modo poder provar aos inimigos que ele habitava seu corpo independente da homenagem. Talvez tivesse murmurado a algum dos parentes, entre descuidada e oprimida, que o destino da mulher era olhar o mundo e sonhar com o rei da terra.
Recordava a fala do homem em seus momentos de tensão. Seu rosto então igualava-se à pedra, vigoroso, uma saliência em que se inscreveria uma sentença, para permanecer. Não sabia quem entre os dois era mais sensível à violência. Ele que se havia ido, ela que tivera que ficar. Só com os anos foi compreendendo que se ele ainda vivia tardava a regressar. Mas, se morrera, ela dependia de algum sinal para providenciar seu fim. E repetia temerosa e exaltada: algum sinal para providenciar meu fim. A morte era uma vertente exagerada, pensou ela olhando o pálido brilho das unhas, as cortinas limpas, e começou a sentir que unicamente conservando a vida homenagearia aquele amor mais pungente que búfalo, carne final da sua espécie, embora tivesse conhecido a coroa quando das planícies.
Quando já se tornava penoso em excesso conservar-se dentro dos limites da casa, pois começara a agitar nela uma determinação de amar apenas as coisas venerandas, fossem pó, aranha, tapete rasgado, panela sem cabo, como que adivinhando ele chegou. A aldeia viu o modo de ele bater na porta com a certeza de se avizinhar ao paraíso. Bateu três vezes, ela não respondeu. Mais três e ela, como que tangida à reclusão, não admitia estranhos. Ele ainda herói bateu algumas vezes mais, até que gritou seu nome, sou eu, então não vê, então não sente, ou já não vive mais, serei eu logo o único a cumprir a promessa?
Ela sabia agora que era ele. Não consultou o coração para agitar-se, melhor viver a sua paixão. Abriu a porta e fez da madeira seu escudo. Ele imaginou que escarneciam da sua volta, não restava alegria em quem o recebia. Ainda apurou a verdade: se não for você, nem preciso entrar. Talvez tivesse esquecido que ele mesmo manifestara um dia que seu regresso jamais seria comemorado, odiaria o povo abundante na rua vendo o silêncio dos dois após tanto castigo.
Ela assinalou na madeira a sua resposta. E ele achou que devia surpreendê-la segundo o seu gosto. Fingia a mulher não perceber seu ingresso casa adentro, mais velho sim, a poeira colorindo original as suas vestes. Olharam-se como se ausculta a intrepidez do cristal, seus veios limpos, a calma de perder-se na transparência. Agarrou a mão da mulher, assegurava-se de que seus olhos, apesar do pecado das modificações, ainda o enxergavam com o antigo amor, agora mais provado.
Disse-lhe: voltei. Também poderia ter dito: já não te quero mais. Confiava na mulher; ela saberia organizar as palavras expressas com descuido. Nem a verdade, ou sua imagem contrária, denunciaria seu hino interior. Deveria ser como se ambos conduzindo o amor jamais o tivessem interrompido.
Ela o beijou também com cuidado. Não procurou sua boca e ele se deixou comovido. Quis somente sua testa, alisou-lhe os cabelos. Fez-lhe ver o seu sofrimento, fora tão difícil que nem seu retrato pôde suportar. Onde estive então nesta casa, perguntou ele, procure e em achando haveremos de conversar. O homem se sentiu atingido por tais palavras. Mas as peregrinações lhe haviam ensinado que mesmo para dentro de casa se trazem os desafios.
Debaixo do sofá, da mesa, sobre a cama, entre os lençóis, mesmo no galinheiro, ele procurou, sempre prosseguindo, quase lhe perguntava: estou quente ou frio. A mulher não seguia suas buscas, agasalhada em um longo casaco de lã, agora descascava batatas imitando as mulheres que encontram alegria neste engenho. Esta disposição da mulher como que o confortava. Em vez de conversarem, quando tinham tanto a se dizer, sem querer eles haviam começado a brigar. E procurando ele pensava onde teria estado quando ali não estava, ao menos visivelmente pela casa.
Quase desistindo encontrou o retrato sobre o armário, o vidro da moldura todo quebrado. Ela tivera o cuidado de esconder seu rosto entre cacos de vidro, quem sabe tormentas e outras feridas mais. Ela o trouxe pela mão até a cozinha. Ele não se queria deixar ir. Então, o que queres fazer aqui? Ele respondeu: quero a mulher. Ela consentiu. Depois porém ela falou: agora me siga até a cozinha.
— O que há na cozinha?
Deixou-o sentado na cadeira. Fez a comida, se alimentaram em silêncio. Depois limpou o chão, lavou os pratos, fez a cama recém-desarrumada, tirou o pó da casa, abriu todas as janelas quase sempre fechadas naqueles anos de sua ausência. Procedia como se ele ainda não tivesse chegado, ou como se jamais houvesse abandonado a casa, mas se faziam preparativos sim de festa. Vamos nos falar ao menos agora que eu preciso?, ele disse.
— Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a terra, sabe, e além do mais…
Eu sei, ela foi dizendo depressa, não consentindo que ele dissertasse sobre a variedade da fauna, ou assegurasse a ela que os rincões distantes ainda que apresentem certas particularidades de algum modo são próximos a nossa terra, de onde você nunca se afastou porque você jamais pretendeu a liberdade como eu. Não deixando que lhe contasse, sim que as mulheres, embora louras, pálidas, morenas e de pele de trigo, não ostentavam seu cheiro, a ela, ele a identificaria mesmo de olhos fechados. Não deixando que ela soubesse das suas campanhas: andou a cavalo, trem, veleiro, mesmo helicóptero, a terra era menor do que supunha, visitara a prisão, razão de ter assimilado uma rara concentração de vida que em nenhuma parte senão ali jamais encontrou, pois todos os que ali estavam não tinham outro modo de ser senão atingindo diariamente a expiação.
E ela, não deixando ele contar o que fora o registro da sua vida, ia substituindo com palavras dela então o que ela havia sim vivido. E de tal modo falava como se ela é que houvesse abandonado a aldeia, feito campanhas abolicionistas, inaugurado pontes, vencido domínios marítimos, conhecido mulheres e homens, e entre eles se perdendo pois quem sabe não seria de sua vocação reconhecer pelo amor as criaturas. Só que ela falando dispensava semelhantes assuntos, sua riqueza era enumerar com volúpia os afazeres diários a que estivera confinada desde a sua partida, como limpava a casa, ou inventara um prato talvez de origem dinamarquesa, e o cobriu de verdura, diante dele fingia-se coelho, logo assumindo o estado que lhe trazia graça, alimentava-se com a mão e sentia-se mulher; como também simulava escrever cartas jamais enviadas pois ignorava onde encontrá-lo; o quanto fora penoso decidir-se sobre o destino a dar a seu retrato, pois, ainda que praticasse a violência contra ele, não podia esquecer que o homem sempre estaria presente; seu modo de descascar frutas, tecendo delicadas combinações de desenho sobre a casca, ora pondo em relevo um trecho maior da polpa, ora deixando o fruto revestido apenas de rápidos fiapos de pele; e ainda a solução encontrada para se alimentar sem deixar a fazenda em que sua casa se convertera, cuidara então em admitir unicamente os de seu sangue sob condição da rápida permanência, o tempo suficiente para que eles vissem que apesar da distância do homem ela tudo fazia para homenageá-lo, alguns da aldeia porém, que ele soubesse agora, teimaram em lhe fazer regalos, que, se antes a irritavam, terminaram por agradá-la.
— De outro modo, como vingar-me deles?
Recolhia os donativos, mesmo os poemas, e deixava as coisas permanecerem sobre a mesa por breves instantes, como se assim se comunicasse com a vida. Mas, logo que todas as reservas do mundo que ela pensava existirem nos objetos se esgotavam, ela os atirava à porta dos fundos. Confiava que eles próprios recolhessem o material para não deteriorar em sua porta.
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua espera, um cotidiano que em sua boca alcançava vigor, que temia ele interromper um só momento o que ela projetava dentro da casa como se cuspisse pérolas, cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele havia vivido sozinho. Pois quanto mais ela adensava a narrativa, mais ele sentia que além de a ter ferido com o seu profundo conhecimento da terra, o seu profundo conhecimento da terra afinal não significava nada. Ela era mais capaz do que ele de atingir a intensidade, e muito mais sensível porque viveu entre grades, mais voluntariosa por ter resistido com bravura os galanteios. A fé que ele com neutralidade dispensara ao mundo a ponto de ser incapaz de recolher de volta para seu corpo o que deixara tombar indolente, ela soubera fazer crescer, e concentrara no domínio da sua vida as suas razões mais intensas.
À medida que as virtudes da mulher o sufocavam, as suas vitórias e experiências iam-se transformando em uma massa confusa, desorientada, já não sabendo ele o que fazer dela. Duvidava mesmo se havia partido, se não teria ficado todos estes anos a apenas alguns quilômetros dali, em degredo como ela, mas sem igual poder narrativo.
Seguramente ele não lhe apresentava a mesma dignidade, sequer soubera conquistar seu quinhão na terra. Nada fizera senão andar e pensar que aprendeu verdades diante das quais a mulher haveria de capitular. No entanto, ela confessando a jornada dos legumes, a confecção misteriosa de uma sopa, selava sobre ele um penoso silêncio. A vergonha de ter composto uma falsa história o abatia. Sem dúvida estivera ali com a mulher todo o tempo, jamais abandonara a casa, a aldeia, o torpor a que o destinaram desde o nascimento, e cujos limites ele altivo pensou ter rompido.
Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela primeira vez em tanto tempo explicava sua vida, tinha prazer de recolher no ventre, como um tumor que coça as paredes íntimas, o som da sua voz. E, enquanto ouvia a mulher, devagar ele foi rasgando o seu retrato, sem ela o impedir, implorasse não, esta é a minha mais fecunda lembrança. Comprazia-se com a nova paixão, o mundo antes obscurecido que ela descobriu ao retorno do homem.
Ele jogou o retrato picado no lixo e seu gesto não sofreu ainda desta vez advertência. Os atos favoreciam a claridade e, para não esgotar as tarefas a que pretendia dedicar-se, ele foi arrumando a casa, passou pano molhado nos armários, fingindo ouvi-Ia ia esquecendo a terra no arrebato da limpeza. E, quando a cozinha se apresentou imaculada, ele recomeçou tudo de novo, então descascando frutas para a compota enquanto ela lhe fornecia histórias indispensáveis ao mundo que precisaria apreender uma vez que a ele pretendia dedicar-se para sempre. Mas de tal modo agora arrebatava-se que parecia distraído, como pudesse dispensar as palavras encantadas da mulher para adotar afinal o seu universo.
Nélida é um anagrama de Daniel, nome de seu avô.
ResponderExcluirEu também não confio no estado, nos seus integrantes.
ResponderExcluirSempre que podem tratam de abocanhar mais um naco para si.
Nossa sociedade precisa evoluir muito em termos de controle sobre a ação estatal .
Se "controle sobre a ação estatal" for reduzi-la a somente o absolutamente necessário, concordo contigo. No entanto, é muito mais provável o controle vir desse próprio estado sobre nossas vidas.
ExcluirQuem fala contra o Estado,no
Excluirfundo quer acabar com as
Forças Armadas e a Polícia.
ENTENDERAM????
Não entendemos assim. Explica melhor, santa.
ExcluirEu não confio no Estado.
ResponderExcluirEu confio na vigilância da sociedade.
!Perfeito!
Frase afiada como espada samurai!
Você é a favor de acabar com a
Excluirpolícia???A bandidagem está
com você e não abre.kkkkkk
Anônimo das 23:53 é mais um exemplo da geração Paulo Freire.
ExcluirNélida tem ascendência Galega, legal!
ResponderExcluirA Galícia é onde, há 800 anos, formou-se a nossa amada língua portuguesa, a 'última flor do Lácio, inculta e bela, és a um tempo ...'.
Esquerdopatas, deixam essa beleza em paz!