Sexta, 22 de novembro de 2019




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA PRESSA





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especial

Nesta sexta, uma cesta
de Truman Capote!


O romancista de Nova York





“Uma vantagem da masturbação é que você não tem de se vestir para ela”


Precisa legenda?



Quantas bobagens escrevem hoje e chamam de "new journalism". Teriam que ler "A Sangue Frio"
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Truman Capote publicou o perfil de Marlon Brando, intitulado "O duque em seus domínios", que é citado como o primeiro texto de new journalism






O dinheiro não tem a mínima importância, desde que a gente tenha muito"








"A vida é uma peça de teatro razoavelmente boa com um terceiro ato mal escrito”






Truman Streckfus Persons, conhecido como Truman Capote nasceu em New Orleans nos Estados Unidos, em 30 de setembro de 1924. Filho de pais separados viveu parte de sua infância na casa de parentes no Alabama.
Após sua mãe se casar novamente com o industrial cubano Joseph Garcia Capote, Truman adotou o sobrenome do padrasto e mudou-se para Nova York. Estudou na Trinity School e na St. John’s Academy.
Truman começou sua carreira em 1940 como colunista social da revista The New Yorker. A partir de 1943, passou a publicar em outras importantes revistas suas primeiras histórias, entre elas, “A Mink of One’s Own”, “Miriam”, “My Side of the Mather” e “The Walls are Cold”.
Em 1948, lançou seu primeiro livro, "Other Voices, Other Rooms", no qual incorpora elementos autobiográficos e conta a história de um menino que procura desesperadamente seu pai. O romance ficou na lista dos mais vendidos da New York Times, por nove semanas, vendendo mais de 26 mil cópias.
Além de construir fama nos círculos culturais, levava uma vida de excessos entre festas na alta sociedade, regadas a álcool, e realizava viagens ao redor do mundo na companhia do escritor Jack Dunphy. Passou grande parte da década de 50 na Europa.
Escreveu contos, romances, novelas e peças teatrais, entre elas: “A Tree of Night and Other Stories” (1949), “The Grass Harp” (1951), “The Muses are Heard” (1956), uma narrativa sobre a turnê da ópera Porgy and Bess na União Soviética, o musical “House of Flowers” e a novela "Breakfast at Tiffany’s" que o popularizou, graças à adaptação para o cinema, em 1961, (Bonequinha de Luxo), com Audrey Hapbum no papel principal.
Durante seis anos de uma minuciosa pesquisa, Capote publicou o célebre romance “In Cold Blood" (A Sangue Frio), em 1966, obra que o consagrou como um escritor de fama internacional, no qual reconstitui de forma documental o assassinato de uma família do Kansas. O livro revolucionou a literatura criando o gênero jornalismo literário e tornou-se um best-seller.
Também merece destaque o romance deixado inacabado "Answered Prayers" (Súplicas Atendidas). Escrito em prosa, o texto criou uma polêmica por revelar segredos da alta sociedade de Nova York. A publicação custou a Capote a amizade e o apoio de muita gente influente e poderosa, mas a alta sociedade que ele tanto gostava lhe virou as costas. Capote nunca mais se recuperou.
Truman Capote faleceu em Los Angeles, Califórnia, no dia 25 de agosto de 1984. Estava com 59 anos. Teve um câncer de fígado. A causa da morte foi “doença hepática complicada por flebite e múltipla intoxicação de drogas”. Ele morreu na casa de sua velha amiga Joanne Carson, ex-esposa do apresentador de televisão Johnny Carson, em cujo programa Capote foi um convidado frequente.

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TRÊS OBRAS FUNDAMENTAIS

A SANGUE FRIO 

A obra publicada em 1966 conta a história do assassinato de uma família inteira em 1959, no oeste do Kansas (Estados Unidos). Escrito como uma grande reportagem, o livro mostra como os assassinos bolaram o crime e acompanha o julgamento dos mesmos, até a sua condenação.
Capote se dedicou profundamente à trama, que começou como um artigo para a revista New Yorker. É um dos primeiros títulos do new journalism.

BONEQUINHA DE LUXO

O famoso romance, que foi publicado originalmente em 1958, conta a história de uma jovem que se muda para Nova York (Estados Unidos). A obra ganhou popularidade com sua adaptação para o cinema, em 1961, tendo como protagonista a atriz Audrey Hepburn. Em uma de suas cenas clássicas, a protagonista Holly Golightly toma café da manhã em frente a uma famosa loja de joias.

MÚSICA PARA CAMALEÕES 

Publicado em 1980, o livro surgiu após uma crise de Capote. O autor havia finalizado A Sangue Frio e buscava novas formas de escrever sem se repetir. Neste trabalho, ele expõe diferentes figuras, mas acaba sendo ele mesmo o personagem central de todas as tramas. Ele volta a unir jornalismo e literatura, mas de uma forma mais livre. Uma das melhores histórias relembra a conversa divertida que ele teve durante o velório da atriz inglesa Constance Collier, em 1955, com sua amiga Marylin Monroe.





De 1941, "Lucy" é um dos "Primeiros Contos de Truman Capote", encontrados em 2013 pelo editor suíço Peter Haag em meio aos arquivos do autor na Biblioteca Pública de Nova York
O volume, com histórias inéditas que Capote escreveu entre o fim da adolescência e o começo da vida adulta, saiu no Brasil pela José Olympio, em março de 2006.


Lucy era realmente o produto do amor de minha mãe pela culinária sulista. Eu estava passando o verão no Sul quando minha mãe escreveu a minha tia pedindo que encontrasse uma mulher de cor que soubesse cozinhar de verdade e estivesse disposta a vir para Nova York.

Depois de explorado o território, o resultado foi Lucy. Sua pele era de um azeitonado profundo, e seus traços eram mais finos e leves que os da maioria dos negros. Ela era alta e razoavelmente arredondada. Fora professora na escola de crianças de cor. Mas parecia dotada de uma inteligência natural, não formada por livros, e, sim, uma filha da terra com profunda compreensão e compaixão por todos os seres vivos. Como a maioria dos negros do Sul, era muito religiosa e ainda hoje consigo vê-la sentada na cozinha lendo sua Bíblia, declarando muito séria que era uma "filha de Deus"..

De modo que ganhamos Lucy, e quando ela desceu do trem naquela manhã de setembro na estação Pensilvânia, o orgulho e o sentimento de triunfo transpareciam no seu olhar. Ela me disse que a vida inteira quisera vir para o Norte, em suas palavras, "viver como um ser humano". Naquela manhã, sentia que nunca mais na vida desejaria ver pela frente Jim Crow, com seu fanatismo religioso e sua crueldade.

Na época, morávamos num apartamento na Riverside Drive. De todas as janelas da frente tínhamos uma excelente vista do rio Hudson e dos Penhascos de Jersey, erguendo-se majestosos para o céu. Pela manhã, eles pareciam arautos saudando o alvorecer e, ao cair da noite no pôr do sol, quando a água era tingida pela confusão de tons rubros, os penhascos cintilavam magnificamente, como sentinelas de um mundo antigo.

Às vezes, ao por do sol, Lucy sentava junto à janela do apartamento e ficava contemplando amorosamente o espetáculo do cair da noite na maior metrópole do mundo.

- Hum, hum - dizia então, se Mamãe e George estivessem aqui para ver isto.

E no início ela gostava das luzes fortes e de todo aquele ruído. Quase todo sábado me levava à Broadway e nós fazíamos uma farra teatral. Ela adorava os vaudevilles, e o luminoso da Wrigley por si só já era um espetáculo.

Lucy e eu estávamos sempre juntos. Às vezes, de tarde, depois da escola, ela me ajudava no dever de matemática, pois era muito boa em matemática. Lia bastante poesia,mas não entendia muito do assunto, apenas gostava do som das palavras e às vezes dos sentimentos por trás delas. Foi por causa dessas leituras que percebi o quanto ela sentia saudades de casa. Quando eram poemas com um tema ligado ao Sul, ela os lia lindamente, com um sentimento de compaixão único. Com sua voz suave, recitava os versos com ternura, claramente, e, se eu desse uma olhada rápida, podia ver que havia um iniciozinho de lágrima brilhando no intenso negrume daqueles olhos. E então ela dava uma risada, se eu tocasse no assunto, e dava de ombros.

- Mas foi lindo, não foi?

Quando estava trabalhando, Lucy sempre acompanhava o que fazia cantando suavemente um blues  do mais puro. Eu gostava de ouvi-la cantando. Certa vez, fomos ver Ethel Waters, e ela passou vários dias andando pela casa imitando Ethel, e acabou anunciando que ia participar de um concurso amador. Eu nunca vou esquecer esse concurso. Lucy ficou em segundo lugar, e eu, com as mãos doendo de tanto aplaudir. Ela cantou "It's De-Lovely, It's Delicious, It's Delightful". Até hoje eu lembro a letra, de tantas vezes que a ensaiamos. Ela morria de medo de esquecer os versos e, quando subiu ao palco, sua voz tremia só um pouquinho, exatamente para ficar parecendo com Ethel Waters.

Mas Lucy acabou abandonando a carreira musical, pois conheceu Pedro e não tinha muito tempo para outras coisas. Ele era um dos trabalhadores do prédio, e ele e Lucy viviam grudados. Lucy só estava em Nova York havia cinco meses quando isso aconteceu e, tecnicamente, ainda estava verde. Pedro era muito esperto, usava roupas espalhafatosas, e além do mais eu ficava furioso porque não conseguia mais ir aos shows. Mamãe achava graça e dizia:

- Parece mesmo que a perdemos, ela também vai virar uma nortista.

Ela nem parecia estar ligando muito, mas eu ligava.

No fim das contas, Lucy também não gostava de Pedro e então ficou mais solitária do que nunca. Às vezes eu lia sua correspondência, quando ela a deixava aberta pela casa. Eram coisas mais ou menos assim:

Querida Lucy,
é o seu Pai ele ficou doente, de cama. Mandou dar um oi pra você. A gente acha que agora que você tá aí você não tem mais tempo pra gente que é pobre. Seu irmão George ele foi pra Pensacola, ele trabalha lá na fábrica de garrafa.
A gente te ama muito,
Mamãe

Às vezes, tarde da noite, eu a ouvia chorando baixinho em seu quarto, e então entendi que ela ia voltar para casa. Nova York era uma imensa solidão. O rio Hudson ficava sussurrando "rio Alabama". Sim, rio Alabama, com suas águas barrentas avermelhadas cheias até a margem e seus pequenos afluentes pantanosos.

Todas aquelas luzes "faróis brilhando na escuridão, o canto solitário de um noitibó-oriental, um trem soltando seu grito melancólico na noite. Cimento duro, aço brilhante e frio, fumaça, coisas caricatas, o barulho abafado do metrô nos subterrâneos úmidos. Trepidação, trepidação "gramados verdes e macios" e também o sol, quente, muito quente, mas tão reconfortante, pés descalços, e um regato fresco com areia no fundo e seixos redondos e macios como sabonete. Cidade não é lugar para ninguém nesse mundo, Mamãe está me chamando de volta. George, eu sou filha de Deus.

Sim, eu sabia que ela ia voltar. De modo que, quando me disse que estava indo embora, não me surpreendi. Abri e fechei a boca e senti as lágrimas nos olhos e aquele vazio no estômago.

Ela se foi no mês de maio. Era uma noite quente e o céu sobre a cidade estava vermelho. Eu lhe dei uma caixa de doces, cerejas com cobertura de chocolate (pois eram as que ela mais gostava) e um pacote de revistas.

Mamãe e Papai a levaram de carro até a rodoviária. Quando saíram do apartamento, corri até a janela e me debrucei no parapeito para vê-los sair do prédio e entrar no carro, que lenta e suavemente foi desaparecendo.

E eu já podia ouvir Lucy contando: "Puxa vida, Mamãe, Nova York é maravilhosa, aquela gente toda, e eu vi estrelas de cinema em pessoa, puxa, Mamãe".

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SÚPLICAS ATENDIDAS


Pesquisa de Luciano Trigo.

Quando, em 1976, Truman Capote publicou os primeiros capítulos do aguardado romance Súplicas atendidas (L&PM, 176 pgs. R$15) na revista Esquire, provocou um enorme alvoroço na alta sociedade nova-iorquina – que o adotara como um espécie de mascote. O livro vinha sendo prometido desde 1966, ano da publicação do estrondoso sucesso A sangue frio, e era anunciado como uma versão moderna e americana de Em busca do tempo perdido, de Proust. Capote morreu, vítima das drogas e do álcool, antes de concluir o romance, e os capítulos faltantes nunca foram encontrados. Mesmo inacabado, contudo, Súplicas atendidas contém algumas das páginas mais corrosivas e maledicentes do escritor – que, como resumiu o crítico da New York Magazine, “mordeu as mãos que o alimentavam”. Capote nem se deu ao trabalho de trocar os nomes de alguns personagens reais, como Dorothy Parker e Montgomery Clift, numa história sobre a amoralidade da elite americana. Tennessee Williams classificou o livro como “chocantemente repugnante e completamente difamatório”. Houve quem achasse o comentário generoso.

O medo de novas e explosivas revelações sobre a vida íntima do jet-set com a publição do livro na íntegra se espalhou,  o mundinho dos ricos e famosos virou imediatamente as costas para Capote, que passou a ser rejeitado na alta roda. Vaidoso como era e patologicamente depedente do livre trânsito entre os VIPs que agora o execravam, ele ficou profundamente abalado, mas sua língua continuou ferina. Numa entrevista de 1981, reconheceu: “Acho que as pessoas simplesmente foram surpreendidas pela franqueza. Elas pensavam que eu fazia parte de seu circulo íntimo”, para em seguida voltar ao ataque: “A verdade é que estas pessoas me interessavam e, sim, eu estava com elas para uma espécie de estudo de campo, mas eu nunca estive muito próximo delas. Como poderia estar? O nível intelectual delas não é muito alto!”

O título é uma citação a Santa Teresa ‘Ávila: “Mais lágrimas são derramadas pelas súplicas atendidas do que pelas não atendidas”. Nada mais verdadeiro. Neste livro Truman Capote projetou o melhor e o pior de si mesmo: inimitável como escritor e assumidamente desprezível como indivíduo. Ironicamente, hoje ele mais lembrado e mitificado por suas excentricidades, sua homossexualidade e seu caráter ambíguo do que pela sua obra literária propriamente dita. Foi o preço que pagou por se render ao canto da sereia da celebridade e dos excessos.

LEIA UM TRECHO DO LIVRO:

“Foi nessa época que eu devia ter me mudado para o campo.
Mas comprei uma passagem de ônibus e fui para Nova York de Greyhound. Eu tinha uma maleta sem quase nada dentro – só roupas de baixo, camisas, produtos de higiene pessoal e vários cadernos de anotações onde eu rabiscava uns poemas e contos. Eu tinha dezoito anos, era outubro; e eu nunca esqueci o brilho de Manhattan quando o ônibus foi chegando pelos pântanos fedorentos
de Nova Jersey. Como Thomas Wolfe, um ídolo admirado ontem e esquecido hoje, poderia ter escrito: Ah, as promessas ocultas nas janelas! – frias e candentes no esplendor trêmulo de um pôr do sol no outono.
Desde então eu me apaixonei por várias cidades, mas só um orgasmo ininterrupto de uma hora poderia ultrapassar a alegria que senti no meu primeiro ano em Nova York. Infelizmente, resolvi casar.
Talvez a minha noiva ideal fosse a própria cidade, onde estava a minha alegria, o meu sentimento de fama inevitável, de bem-aventurança. Mas, ah, casei com uma garota.


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O poder da narrativa:
A sangue frio, de Truman Capote

De Mabel Pedra

Numa mescla de ficção e documentário literário, Capote recria de forma dramática e intensa o crime que deu origem ao seu mais famoso livro, A sangue frio


Referência e marco indiscutível da literatura norte-americana do século XX, A sangue frio inaugura – ou assim pretendia seu autor – o que se convencionou chamar de romance de não-ficção. Se os textos de Joseph Mitchell e John Reed, entre outros, já adiantavam tal tendência, é Truman Capote quem alarga, e definitivamente, essa trilha. Em texto vigoroso, e que encanta o leitor pela habilidade com que mescla com apuro técnicas ficcionais e jornalísticas,  Capote tematiza algumas das grandes questões da condição humana: solidão, incomunicabilidade, miséria moral. Traz ainda a debate o problema da pena de morte em todas as suas implicações, especialmente no que se refere à legitimação da banalização da vida e à denúncia da inocuidade de um castigo em que se igualam executores e executados.

Em texto de grande força narrativa, assomam, engrandecidas e humanizadas, as personagens – reais – de um aparentemente trivial homicídio ocorrido em uma cidadezinha a extremo oeste do estado americano do Kansas, no já remoto ano de 1959.

“A casa era tremenda com aquele luar”. Assim traduz Perry Smith, um dos assassinos, o impacto que lhe causa o cenário do crime, impacto que já anuncia, em sua força incontrolável, um assassinato igualmente tremendo: amarrados e amordaçados, quatro membros de uma próspera família de fazendeiros são mortos a tiros de espingarda. Ao Sr. Herbert Clutter, marido de Bonnie e pai de Nancy e Kenyon, cabe a violência adicional de ter a garganta cortada. O produto do roubo é ínfimo: entre quarenta e cinquenta dólares. Estimulados pelas histórias fantasiosas de um antigo companheiro de cela – histórias que falavam da existência, na casa dos Clutter, de um grande cofre cheio de dinheiro -, os assassinos, Perry Smith e Richard Hickock, ex-presidiários em liberdade condicional, planejam meticulosamente o assalto; frustrados, contudo, por não encontrarem mais do que um punhado de dólares, liquidam barbaramente a família.


A Sangue Frio é uma obra que suscita grande inquietação: o crime nele narrado exerce, sobre o autor (segundo seu biógrafo, Gerald Clarke), “perversa atração”. Tal atração se estende ao leitor e, envolvendo-o, transforma a leitura em requintado e prazeroso exercício de crueldade, uma vez que os fatos ali apresentados vão desenhando uma realidade espantosa, tornada fascinante pelo recurso a um estilo sóbrio e elegante que reinventa, a cada linha, a arte da escrita e da grande reportagem.

Através de exaustivas entrevistas, de minuciosas pesquisas locais, da investigação de detalhes do crime, do levantamento da vida das vítimas e de seus assassinos (enforcados depois de passarem seis anos no corredor da morte) e do contato pessoal e epistolar do autor com estes, imbricam-se personagens e fatos, conversas de vizinhos e amigos, depoimentos de policiais encarregados do crime, laudos psicológicos e procedimentos jurídicos e legais. Da combinação de todos esses dados o autor extrai a extraordinária matéria com que constrói seu relato; o que seria um aparentemente simples caso de homicídio se transforma em um texto especial pelo tratamento formal que recebe, pela perspicácia e agudeza na interpretação do perfil psicológico dos envolvidos e pela esmerada seleção, avaliação e organização dos fatos.

As pequenas ações realizadas pela família Clutter naquele sábado e os preparativos dos assassinos, que se põem a caminho, são narrados passo a passo e vão convergindo para o desfecho inesperado. Dramática e inapelavelmente delineia-se o encontro com a tragédia: o índice metafórico a anunciá-la é o velho Chevrolet negro que, usado pelos assaltantes, corta velozmente as estradas do Kansas. Consumado o assassinato, descobertos os corpos, altera-se o tom da narrativa – a despreocupada marcha que sublinha a crônica dos acontecimentos corriqueiros de um sábado igualmente corriqueiro ganha acordes sombrios e, a exemplo daquela quietude noturna brutalmente destruída, rompe-se o equilíbrio: o anúncio do crime tira do prumo a pacata e segura vida dos conservadores fazendeiros da região.

A perplexidade que atinge um dos assassinos ante a visão da casa de suas vítimas é tão intensa quanto a que perpassa toda a narrativa, e ganha especial destaque no contraponto que se estabelece entre Perry Smith e Nancy Clutter. Precoce e segura, de caráter firme e possuidora de inúmeros dons, o que a torna admirada por todos, Nancy é a imagem irretocável da jovem bem ajustada e de futuro brilhante. Perry Smith, mestiço, inequivocamente desequilibrado, com mãe e irmãos alcoólatras, inseguro e estigmatizado, e dono, segundo sua própria avaliação, de talentos inaproveitados, é o anti-herói trágico, simples coadjuvante promovido, ironicamente por sua ação mais reprovável, à posição de personagem principal. É a partir do compassivo e minucioso exame desse contraponto que Capote oferece ao leitor a melancólica visão de existências que não se cumpriram, e desvela a amargura do american dream, pondo a nu, e com grande vigor, duas pontas de um sonho controverso.

O que emerge da narrativa e nos envolve é um sentimento agudo de inconformismo e de profundo desconforto face ao desperdício de vidas que se viram brutalmente encerradas. Essa percepção nos fascina, e desperta, a um só tempo, sentimentos de piedade, angústia, perplexidade, compaixão e ternura: a gratuidade do crime e as personagens implicadas tocam-nos, especialmente quando nelas reconhecemos, destacados e ampliados, seres humanos que poderíamos facilmente reconhecer bem próximos a nós.

A sangue frio deixa-nos ainda a sensação intrigante de um mistério não de todo desvendado, a angustiante impressão de que as verdadeiras razões daquele ato cruel permanecerão para sempre incompreensíveis, inatingíveis, inalcançáveis. Trata-se, pois, de um livro obsedante: terminada a sua leitura, volta-se a ele uma vez mais, e outra ainda. Resta-nos, então, rendermo-nos ao seu apelo e, a respiração suspensa, retornar àquela remota cidadezinha do Kansas onde, em noite fria e de lua cheia e brilhante, o vento assovia a canção do carrasco – seis destinos se tocam, e todos os sonhos ecoam uma só certeza: nunca mais.


Um comentário:

  1. Aos cinéfilos,
    Já houve filmes tão bons, ou talvez melhores, como Bonequinha de Luxo (Breakfast Tiffany's), mas não teve - certamente - um que conjugasse três fatores tão destacados num só filme: trilha musical (Moon Rivers); enredo fenomenal baseado numa premissa simplória, 'uma prostituta que sonhava ser atriz de HollyWood; e por fim a mais bela atriz, o rosto mais angelical, a voz mais suave que o cinema produziu até hoje, Audrey Hepburn.
    Tudo isso está presente em Bonequinha de Luxo. Estou errado?

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