Sexta, 25 de junho de 2021 - parte 2

 


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...

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especial

Nesta sexta, uma cesta 
de 
João do Rio! 


REPÓRTER DE VERDADE




Tudo se transforma, tudo varia - o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.





Quando se encanta a alma, não há coração que resista.





A rua nasce como o homem. do soluço, do espasmo. Há suor humanos na argamassa do seu calçamento.



João do Rio (João Paulo Emílio Cristóvão dos Santos Coelho Barreto)  nasceu, óbvio, no Rio de Janeiro em 5 de agosto de 1881. Jornalista, escritor, cronista, tradutor e teatrólogo, foi membro da Academia Brasileira de Letras. Morreu muito jovem (39 anos), em 23 de junho de 1921.

Filho de Alfredo Coelho Barreto, professor de matemática e positivista, e da dona de casa Florência dos Santos Barreto, Paulo nasceu na rua do Hospício, 284 (atual rua Buenos Aires, no Centro da cidade). Estudou Português no Colégio São Bento, onde começou a escrever, e aos 15 anos prestou concurso de admissão ao Ginásio Nacional (hoje, Colégio Pedro II).

Em 1 de junho de 1899, com 17 anos incompletos, teve seu primeiro texto publicado em O Tribunal, jornal de Alcindo Guanabara. Assinado com seu próprio nome, era uma crítica intitulada Lucília Simões sobre a peça Casa de Bonecas de Ibsen, então em cartaz no teatro Santana (atual Teatro Carlos Gomes).


Entre 1900 e 1903 colaborou sob diversos pseudônimos com vários órgãos da imprensa carioca, como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió. Em 1903 foi indicado por Nilo Peçanha para a Gazeta de Notícias, onde permaneceu até 1913. Foi neste jornal que, em 26 de novembro de 1903, nasceu João do Rio, seu pseudônimo mais famoso, assinando o artigo "O Brasil Lê", uma enquete sobre as preferências literárias do leitor carioca. Como João do Rio produziu todos os seus livros e é como conquista fama.


Paulo Barreto representou o surgimento de um novo tipo de jornalista no início do século XX. Até então, o exercício do jornalismo e da literatura por intelectuais era encarado como "bico", uma atividade menor para pessoas que possuíam muitas horas vagas à disposição (como funcionários públicos, por exemplo). Paulo Barreto move a criação literária para o segundo plano e passa a viver disso, empregando seus pseudônimos (mais de onze) para atrair diversos públicos e leitores. Foi diretor da revista Atlantida (1915-1920) e colaborou na revista Serões (1901-1911).


Entre 22 de fevereiro e abril de 1904, realizou uma série de reportagens intituladas As Religiões no Rio, que além de seu caráter de "jornalismo investigativo", constituem-se em importantes análises de cunho antropológico e sociológico, cedo reconhecidas como tal, particularmente no tocante as quatro matérias pioneiras sobre os cultos africanos na Pequena África.                                                  

A série de reportagens despertou tamanha curiosidade que Paulo Barreto a publicou em livro, tendo vendido mais de oito mil exemplares em seis anos. A proeza é ainda mais impressionante levando-se em conta o restrito público leitor da época, num país com elevadas taxas de analfabetismo.

Alguns biógrafos criticam o cronista pelo fato de que, ao perceber o filão representado pela publicação de coletâneas (algo que se tornaria comum na segunda metade do século XX), Paulo tenha descoberto uma "fórmula" para inflacionar a própria bibliografia. Todavia, uma análise das coletâneas publicadas ao tempo de sua curta vida repele tal afirmação. Primeiro, ele fazia uma seleção dos textos que iriam ser publicados; e, segundo, os textos selecionados possuíam unidade entre si, concordante com o título geral da obra e previamente justificados por um parágrafo introdutório.


Eleito para a Academia Brasileira de Letras em sua terceira tentativa, em 1910, Paulo Barreto foi o primeiro a tomar posse usando o hoje famoso "fardão dos imortais". Anos depois, com a eleição de seu desafeto, o poeta Humberto de Campos, ele se afastou da instituição. Conta-se que, quando informada de sua morte, a mãe avisou expressamente que o velório não poderia ser feito lá, pois o filho não aprovaria a ideia.


A orientação sexual de Paulo Barreto desde cedo constituiu-se em motivo de suspeita (e posteriormente, de troça) entre seus contemporâneos. Solteiro, sem namorada ou amante conhecidas, muitos de seus textos deixam transparecer uma inclinação homoerótica bastante explícita. As suspeitas praticamente se confirmaram quando ele se arvorou em divulgador na terra brasileira, da obra do "maldito" Oscar Wilde, de quem traduziu várias obras.

Figura ímpar, que se vestia e se comportava como um "dândi de salão", Paulo jamais ousou desafiar os estereótipos com os quais a sociedade rotula os homossexuais. Todavia, ao se propôr a defender novas ideias nos campos político e social, sua figura "volumosa, beiçuda, muito moreno, lisa de pelo" (como registrou Gilberto Amado) tornou-se um alvo perfeito para toda sorte de ataques, dentre os quais se destaca Humberto de Campos.


É nesse contexto que se insere seu suposto "flirt" com Isadora Duncan, que apresentou-se no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1916. Duncan e Barreto já haviam se conhecido anteriormente, em Portugal, mas foi somente durante a temporada no Rio que se tornaram íntimos. O grau dessa intimidade é um mistério. Especula-se que tudo poderia não ter passado de uma "jogada de marketing" para atrair a atenção da imprensa, embora outras fontes citem um suposto diálogo em que a bailarina teria interpelado Barreto sobre sua pederastia, ao que ele teria respondido: Je suis très corrompu ("Sou muito corrompido").


Em 1920, Paulo Barreto fundou o jornal A Patria (chamado ironicamente de A Mátria por seus detratores), no qual buscou defender os interesses dos "poveiros", pescadores lusos oriundos em sua maioria de Póvoa de Varzim, e que abasteciam de pescado a cidade do Rio de Janeiro. Ameaçados por uma lei de nacionalização do governo brasileiro, que exigia que a pesca fosse exercida apenas por nacionais, e os obrigava a naturalizar-se para poder continuar na profissão, os "poveiros" entraram em greve.

A atividade de Barreto em prol da colônia portuguesa fez com que ganhasse grande quantidade de inimigos, um sem-número de ofensas morais ("manta de banha com dois olhos" foi uma das mais leves) e até mesmo um covarde episódio de agressão física, quando, surpreendido enquanto almoçava sozinho num restaurante, foi surrado por um grupo de nacionalistas.

Obeso, Paulo Barreto sentiu-se mal durante todo o dia 23 de junho de 1921. Ao pegar um táxi, o mal-estar aumentou e ele pediu ao motorista que parasse e lhe trouxesse um copo d'água. Antes que o socorro chegasse, no entanto, ele faleceu, vítima de um enfarte do miocárdio fulminante.

A notícia de que João do Rio havia morrido espalhou-se por toda a cidade rapidamente. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas tenham comparecido para o último adeus ao escritor que certa feita, sob o pseudônimo de Godofredo de Alencar, havia registrado sua opção preferencial pela diversidade:

Nas sociedades organizadas interessam apenas: a gente de cima e a canalha. Porque são imprevistos e se parecem pela coragem dos recursos e a ausência de escrúpulos. (Gomes, 1996, p. 29).

Os restos de João do Rio encontram-se sepultados em uma magnífica tumba de mármore italiano e bronze, erguida por ordem de sua mãe, no Cemitério de São João Batista, no bairro de Botafogo. Também por ordem de sua mãe, a biblioteca de João do Rio foi doada ao Real Gabinete Português de Leitura, onde ainda hoje pode ser vista uma placa comemorativa do ato. O túmulo de João do Rio é considerado um dos mais belos trabalhos de arte funerária no Rio de Janeiro e atrai muitos visitantes.


O nome Paulo Barreto batiza uma rua inexpressiva no Botafogo. Como apontou Graciliano Ramos, "a homenagem que lhe tributaram é modesta: ofereceram-lhe uma rua curta" (Gomes, 1996, p. 11). A Póvoa de Varzim, em Portugal, também deu o seu nome a uma pequena rua mesmo no centro da cidade, junto à Câmara Municipal. Em Lisboaencontra u, Portugal, o seu nome foi dado a uma praça onde se m pequeno monumento em sua honra contendo as suas seguintes palavras: "Nada me devem os portugueses por amar e defender portugueses, porque assim amo, venero e quero duas vezes a minha pátria".


OBRAS

As Religiões no Rio

O Momento Literário

A Alma Encantadora das Ruas

Era uma vez...

Cinematographo: crônicas cariocas

Fados, canções e danças de Portugal

Dentro da noite

A profissão de Jacques Pedreira

Psicologia urbana: O amor carioca; O figurino; O flirt; A delícia de mentir; Discurso de recepção.

Vida vertiginosa

Portugal d'agora

Os dias passam....

A Bela Madame Vargas

Eva. Rio de Janeiro: Villas Boas

Crônicas e frases de Godofredo de Alencar. 

Pall-Mall Rio: o inverno carioca de 1916

Nos tempos de Venceslau

Sésamo

A correspondência de um estação de cura

A mulher e os espelhos

Na conferência da Paz

Adiante!

Ramo de loiro: notícias em louvor

Rosário da ilusão...

Celebridades, desejo. Ed. póstuma



Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte.



A PESTE

E de súbito, um indizível pavor prega-me ao banco. É um dia brumosamente invernal. O azul do céu parece tecido de filamentos de brumas. O sol como que desabrocha, entre as brumas. O ar, um pouco úmido e um pouco cortante, congela as mãos, tonifica a vegetação, e o mar, que se vê à distância num recanto de lodo, tem reflexos espelhentos de grandes escaras de chagas, de óleo escorrido de feridas, à superfície quase imóvel. O cheiro de desinfecção e ácido fênico, o movimento sinistro das carrocinhas e dos automóveis galopando e correndo pela rua de mau piso, aquela sujeira requeimada e manchada das calçadas, o ar sem pingo de sangue ou supremamente indiferente dos empregados da higiene, a sinistra galeria de caras de choro que os meus olhos vão vendo, põem-me no peito um apressado bater de coração e na garganta como um laço de medo. A bexiga! A bexiga! É verdade que há uma epidemia… E eu vou para lá, eu vou para o isolamento, eu!

Um mês antes ria dessa epidemia. Para que pensar em males cruéis, nesses males que deformam o físico, roem para todo o sempre ou afogam a vida em sangue podre? Para que pensar? E Francisco, o meu querido Francisco, a quem eu amava como a melhor coisa do mundo, pensava todo o dia, lia os jornais, tomava informações. “A média de casos fatais é de trinta por dia. Ela vem aí, a vermelha”, dizia. E já organizara um regime, tomara quinino, tinha o quarto cheio de anti-sépticos, os bolsos com pedras das farmácias para afastar o vírus. Coitado! Era impressionante. Eu bem lhe dizia:

Mas criatura, não tenhas medo. Andamos todo o dia pelas ruas, vamos aos teatros. Qual varíola! Vê como toda gente ri e goza. Deixa de preocupações.

De manhã, porém, nós líamos juntos, ao almoço, os jornais. Para que mentir? Havia, havia sim! A sinistra rebentava em purulências toda a cidade. Um dia em que passava por uma igreja, Francisco ouviu os sinos a badalar sinistramente. Teve a curiosidade de saber por quem tão tristes badalavam e perguntou a um velho.

É promessa, meu senhor, é para que Santo António não mate a todos nós de bexiga.

Francisco ficou como desvairado. Ao jantar encontrou-se comigo.

Ah!, filho, falta-me o apetite. Estamos perdidos. É impossível lutar. Ela está aí.

Acabas doido.

Antes! – fez, no orgulho da sua beleza.

Há uma semana, indo por uma rua de subúrbio, encontrou com gritos e imprecações um bando de gente que arrastava ao sol um caixão. Era uma pobre família levando à igreja o cadáver de uma criança em holocausto, para que Deus tivesse piedade e misericórdia. A impressão prostrou-o. Chegou à casa ainda mais assustado.

Sabes! Estamos perdidos. A polícia já deixa arrastarem os variolosos pela rua. Dentro em pouco só lepra, a lepra de dentro encherá as ruas. Cada dia aumenta mais, cada dia aumenta. Quando chegará a nossa vez?

Mas vai embora, homem, sobe a montanha, afasta-te…

E comecei eu também a indagar, a querer saber. Então, continuava? Como era? Como se morria de bexigas? As pessoas ficavam muito coradas, sentiam febre. Havia várias espécies. A pior é a que matava sem rebentar, matava dentro, dentro da gente, apodrecendo em horas! Palavra, não era para brincadeiras. O Francisco abalara para o Corcovado, uma noite, sem me falar, sem me dar um abraço, e de repente naquela manhã, hoje, sabia por uma nota que ele estava no São Sebastião, com bexiga também, talvez morto! Deu-me um grande ímpeto! Covarde! Fora o medo. E agora? Era preciso vê-lo, não era possível deixa-lo morrer sem um amigo ao lado. Nunca tive medo de moléstias, morre quem tem de morrer. Depois a cidade estava tão alegre, tão movimentada, tão descuidosa. Tomei o tramway quase tranqüilo. Mas ali, tudo indica a morte, a angústia, o horror, ali é impossível, e eu sentia um frio, um frio…

“Estamos no ponto terminal; não salta?” diz-me o condutor, virando os bancos. Faço um esforço, salto. E vou. Vou devagar, vou não querendo ir. A impressão de fim, de extinção violenta! Aquele recanto, aquele hospital com ar de cottage inglês aviltado por usinas de porcelana, é bem o grande forno da peste sangrenta. Como deve morrer gente ali, como devem estar morrendo naquele instante. Desço a rua atordoado, com um zumbido nos ouvidos. O mar é um vasto coalho de putrefações, de lodo que se bronzeia e se esverdinha em gosmas reluzentes na praia morna. O chão está todo sujo, e passam carroças da Assistência, carroças que vêm de lá, que para lá vão. Quase não há rumor. É como se os transeuntes trouxessem rama de algodão nos pés. Só as carroças fazem barulho. E quando param – como elas param! – é o pavor de ver descer um monstro varioloso, desfeito em pus, seguindo para a cova… Espero que não haja nenhuma carroça à porta, precipito-me pela alameda que sobe ao hospital. Vou quase a correr, paro à porta de uma sala que parece escritório.

O diretor?

É alguma coisa de urgente? – indaga um jovem.

É. É e não é.

Vou preveni-lo. Sente-se. O senhor está pálido.

Caio numa cadeira. Sinto as mãos frias. As pernas tremem. Eu tenho medo, oh! muito medo… E aquele trecho da secretaria não é para acalmar o destrambelhamento dos meus nervos. Tudo é branco, limpo, asseado, com o ar indiferente nas paredes, nos móveis sem uma poeira. Os empregados, porém, movem-se com a precipitação triste a que a morte obriga os que ficam. Retintins de telefones repicam seguidamente nos quatro cantos. Os diálogos cruzam-se, diálogos em que as vozes falam para dores indizíveis.

Mais um doente?

Ah! sim, ciente.

Qual? Não há mais lugar. O de nome José Bernardino? Vou ver.

E mais adiante:

Olhe, 425? Morreu ontem à noite. Se já seguiu? Já.

Enquanto essas notícias são dadas às bocas dos fones, há mulheres pálidas e desgrenhadas que esperam novas dos seus doentes, há velhos, há homens de face desfeita, uma série de caras em que o mistério da morte, lá fora, entre as árvores, incute um apavorado respeito e uma sinistra revolta. Quantas mães sem filhos! Quantos pais à espera da certeza da morte dos filhos! Quantos filhos ali, apenas para tratar do enterro dos que lhe deram o ser. Ela não respeita idade, passa a foice purulenta em tudo, está lá reinando, fora, no jardim, entre as árvores, morro acima. Os funcionários têm uma delicadeza fria.

Que deseja, minha senhora?

Saber do meu filho. É o 390.

Há quantos dias?

Há quatro. Ainda elas não tinham saído. Foi o médico que disse. Ai! O meu pequeno!

Está decerto no pavilhão de observação. Vou mandar ver.

Meu senhor, a minha mulherinha, diga-me por Deus, diga-me.

Espere, homem. Nada de barulho.

Os retintins telefônicos continuam. Algumas faces não dizem nada. Estão lá sentadas, esperando, esperando, esperando. E há marcados, marcados do terrível mal, que vão sair, não morreram, estarão dentro em pouco na rua com a fisionomia torcida, roída, desfeita para todo o sempre. E ele? E Francisco? Ficará assim? Assim, horrível, horrível… É preciso vê-lo! É preciso!

O rapaz volta, faz-me um gesto, sigo-o, dou no gabinete do diretor, muito louro, com a sua face inteligente vincada de tristeza.

Então, por cá? Não teve medo? Está com a mão fria. Ah! meu amigo, a apostar que não acreditava na devastação do mal? Pois é horrível, é inaudito. Tenho presentemente no hospital setecentos e vinte doentes, desde varíola hemorrágica, que mata em horas, até a bexiga branca, que nem sempre mata. Já não há lugares. Nunca São Sebastião esteve assim. Mandei construir às pressas mais dois pavilhões. Estou arrasado de trabalho e desolado. Afinal, por mais que se esteja habituado, sempre se tem coração para sentir a dolorosa atmosfera de desgraça… Mas que deseja? Diga.

Eu desejava tomar uma informação. Está aqui no hospital um rapaz do norte, Francisco Nogueira, estudante…

Francisco? Há tanta gente que entra e tão pouca que sai. Em que dia entrou?

Creio que anteontem.

Vou mandar ver.

Tocou um tímpano. Apareceu um funcionário. Falaram ambos.

O funcionário saiu, e desde que saiu, um tremor apoderou-se do meu corpo. Estaria morto? Estaria vivo? Aquela carne feita de ouro e de rosas já teria se transformado numa chaga purulenta? E se estivesse morto? Uma criança tão cheia de esperanças, tão entusiástica, tão pura, sem os pais aqui, sem ninguém a não ser eu, que tremia. Nossa Senhora! Que me viriam dizer? E ao mesmo tempo, o desejo de encobrir tamanha emoção forçava-me a fingir um sorriso, a dizer mundanamente coisas frívolas ao homem bom cujos olhos tinham tanta piedade.

É o diabo. A epidemia tem impedido vários prazeres da season. As grandes estrelas mundiais, os teatros…

Pouca gente.

Menos do que se devia esperar. Não freqüenta?

Não tenho tempo.

Ninguém dirá entretanto que a varíola…

Nas grandes cidades as pestes dão uma impressão muito menos dolorosa do que outrora…

Na Idade Média, não, doutor?

Mas um nó subitâneo estrangula-me a frase. O funcionário voltara, dava informações baixo ao diretor. O médico pôs-se de pé e diante de mim.

Está cá. Entrou anteontem. Está vivo. O médico da enfermaria diz que há esperanças.

Quero vê-lo, doutor.

Houve uma pausa grave.

É vacinado?

Sou.

Já viu um varioloso?

Não.

Gosta desse rapaz?

É meu amigo.

O9 diretor pensou. Depois:

E melhor não vê-lo. Aceite o meu conselho. A ele nada falta. O senhor parece tão comovido. Tenha esperança, vá descansar. As emoções fazem mal neste período…

Quero vê-lo, doutor, quero. É um grande obséquio que lhe fico a dever.

O diretor ainda hesitou um instante, mas diante da minha resolução que se fazia súplica, fez um gesto e eu acompanhei o funcionário, passei a secretaria, entrei no jardim, comecei a subir para o morro onde entre as árvores erguiam-se os grandes pavilhões, com as redes das janelas pintadas de vermelho. Era ali, naqueles enormes galpões, com janelas forradas de tela rubra que a varíola punha putrefações e gangrenas nos corpos dias antes bons. O homem ia depressa, e eu arquejava atrás, com as têmporas batendo. Meu Deus! Que iria ver? Que se daria? De repente parou, subiu uma escada. Subi também. Abriu uma porta de tela, entro. Entrei com ele. Abriu outra, passou. Passei com ele. Encaminhou-se para um compartimento. Segui-o. Onde estava eu? Sei lá! Não sabia! Não sabia! Vi-me diante de um leito, onde um cobertor tapava, por completo, pequeno volume. Para diante havia outros leitos cobertos de vermelho, outros muitos cobrindo a negregada. Certo cavalheiro indagava: “- Quer ver então?” “- Sim, senhor.” “- Não é grave. Este escapa. Mas tenha coragem!”

Depois, com infinito cuidado, pegou das pontas do cobertor e foi levantando aos poucos. Fechei os olhos, abri-os, tornei a fecha-los. ” Não há engano?” “- A papeleta não erra. É ele mesmo.”

Eu tinha diante de mim um monstro. As faces inchadas, vermelhas e em pus, os lábios lívidos, como para arrebentar em sânie. Os olhos desaparecidos meio afundados em lama amarela, já sem pestanas e com as sobrancelhas comidas, as orelhas enormes. Era como se aquela face fosse queimada por dentro e estalasse em empolas e em apostemas a epiderme. Quis recuar, quis aproximar-me. Só consegui dizer para o horror: “Francisco, Francisco, então como vais?” Os lábios moveram-se, e uma voz, outra voz, uma voz que era outra, passou vagarosa: “- Ah! és tu?”

Enquanto isso o corpo não fazia um gesto. Era ele, ele, sim, porque sobre o travesseiro, só uma coisa não desaparecera dele e da podridão parecia tomar um redobro de brilho: a sua enorme cabeleira negra, com reflexos de ouro azul-tinta…

Então veio-me um louco desejo de chorar, um desejo desvairado. Fiz um vago gesto. O funcionário abriu-me a porta e eu saí tropeçando, desci o morro a correr quase, entre os empregados num vaivém constante e as macas que subiam com as podridões. Um delírio tomava-me. As plantas, as flores dos canteiros, o barro das encostas, as grades de ferro do portão, os homens, as roupas, a rua suja, o recanto do mar escamoso, as árvores, pareciam atacados daquele horror de sangue maculado e de gangrena. Parei. Encarei o sol, e o próprio sol, na apoteoso de luz, pareceu-me gangrenado e pútrido. Deus do céu! Eu tinha febre. Corri mais, corri daquela casa, daquele laboratório de horror em que o africano deus selvagem da Bexiga, Obaluaiê, escancarava a face deglutindo pus. E atirei-me ao bonde, tremendo, tremendo, tremendo…

Há epidemia, oh! sim, há epidemia! E eu tenho medo, meu amigo, um grande, um desastrado pavor…

E Luciano Torres, após a narrativa, caiu-me nos braços a soluçar. Era de noite e foi há dois dias. Ontem vieram dizer-me que Luciano Torres, meu amigo e colega, fora conduzido em automóvel da Assistência do seu elegante apartamento das Laranjeiras para o posto de observação. Está com varíola.




A AMANTE IDEAL

Esses cavalheiros haviam mostrado um certo apetite. Era, após o jantar, na residência de Ernesto Pereira, assaz feliz para ter, antes dos quarenta anos, um palacete discreto e muito mais de cem mil contos.

Com tão confortável fortuna, Ernesto estava quase branco, não bebia senão águas minerais e mantinha as mulheres como simples companheiras para distrair. Após um negócio - ceia com elas e champagne bebido pelos outros. Enriquecer quando não custa a vida e uma fortuna, custa, pelo menos, o melhor bem humano, porque transitório - a mocidade. Ernesto aliás tratava o doloroso e delicado assunto com cinismo amável. - Que querem vocês? Aos vinte anos, afastei as mulheres para conquistar a Fortuna. A Fortuna vingou-se desabituando-me do amor...

Mas era gentil, muito gentil, como diziam essas damas. Fazia as despesas de uma italiana, montara casa a uma espanhola, comia com as figuras mais impressionantes do armorial da galanteria, e protegia, às ocultas, algumas costureiras e modistas. O desprezo, ou antes, a integral indiferença de Ernesto pelas mulheres, só poderia ser notada porque esse homem jamais tinha uma história de mulher a contar. Quando narrava um fato era dos outros e referia-o sempre com o riso ingênuo da completa incompreensão. Parecia contar pilhérias de bonecos.

Os amigos julgavam-no feliz. Era-o. O homem feliz é aquele que não conhece o amor.

Nesse momento, porém, acesos os charutos no terraço sobre o mar a roda se fazia de homens, como é a maioria dos homens, tendo a vida com dois fins: dinheiro e mulher. Estavam Otaviano Rodrigues, que se arruinara por uma princesa austríaca, e André Figueiredo, com quem a princesa enganava Otaviano, mas que por sua vez tinha várias paixões, menos a princesa. Estava Clodomiro Viegas, que nunca pagara o amor e andava sempre a arranjar dinheiro para ser gentil com as generosas criaturas. Estava o comendador Andrade, que em trinta anos de francesas ainda não aprendera a falar francês. Estava Teodoro Gomes, o bolsista que enriquecia a bailarina russa de uma companhia italiana, em companhia de Godofredo de Alencar, o único literato com dinheiro.

E também palestrava Júlio Bento, lindo e excelente rapaz de trinta e cinco anos, casado, pai de cinco filhos, mas cuja lista de conquistas não deixava de ser profusa.

A conversa, precisamente, generalizava-se a propósito da última paixão de Júlio, senhora alta, com enorme boca vermelha e dois braços de tragédia, admiráveis e brancos, "as duas velas de seda da trirreme do amor", como dizia, com exagero, Godofredo de Alencar. Essa mulher agoniava Júlio Bento. Eram cartas, telegramas, chamadas ao telefone, imprevistas aparições, cenas de ciúme, ataques, tentativas de suicídio, recriminações, inquéritos minuciosos.

- Um inferno, meus caros! E eu tenho receio que minha esposa venha a saber.

- Mas deixa-a. Nada mais simples! insinuou Ernesto com o seu ingênuo e feliz desconhecimento do complicado desespero das ligações amorosas.

- É bom dizer. Ela mata-se...

- Ora!

- E para que deixar esta, se são todas assim? indagou ironicamente Alencar. Amar é sofrer, mas ser amado é o cataclismo. Não se pode fazer mais nada. Elas caem sobre a gente como os andaimes. Um gnóstico dizia que é preciso passar pela mulher como pelo fogo. Nós imbecilmente ficamos a assar. Ao demais o Elifas Levi já teve uma frase lapidar - "Queres possuir? Não ames! Nós, sem inteligência, em vez de possuir, somos possuídos. A inteligência é um perigo no amor."

- Paradoxal!

- Conforme. Qual de nós não almeja, não sonha com o tipo da amante ideal? Qual de nós, porém não sofreria se amasse o tipo da amante ideal?

- A questão é saber qual a amante ideal, após três meses...

- A amante ideal! suspirou Júlio Bento.

- É a esposa, sentenciou o velho solteirão Andrade.

- A esposa, meu caro amigo, desde a Grécia, é a mãe dos nossos filhos. Não a sobrecarreguemos... Moisés, segundo a legenda, forjou o anel do Amor. E tais foram as complicações, que logo teve de forjar com pressa um outro: o anel do Esquecimento. Nenhum dos dois é a aliança matrimonial...

Júlio Bento ficara pensativo. E de repente:

- Como o Alencar fala a verdade. Eu já tive a amante ideal.

Houve na roda um alegre sobressalto.

- Tu?

- Como era ela?

- E deixaste-a fugir?

Júlio Bento, sem tristeza, suspirou.

- Sim. Apenas só depois é que soube... E até agora, francamente, não compreendo, não atino, não sinto bem... Que aventura! Imaginem vocês...

Acendeu outro charuto e, impaciente, continuou:

- Há uns cinco anos encontrei no teatro uma encantadora mulher. Pálida, da cor dos jasmins, dois olhos verdes, pestanudos, uma longa cabeleira de ébano, alta, magra. Estava no camarote pegado ao meu, só, vestida de preto. Olhou-me duas vezes. Da segunda havia muitas intenções. Fiquei desejoso de a conhecer, de falar-lhe. Mas, evidentemente, não era uma qualquer mulher. Saiu em meio de um ato e eu fiquei com a família, não sei por que, raivoso. Quatro dias depois ia pela rua do Ouvidor, quando a vi que vinha a sorrir. Tinha uma linda boca. Cumprimentei-a. Continuou a andar. Segui-a. Voltou-se uma só vez e logo meteu-se pela rua Gonçalves Dias. Continuei a acompanhá-la. Ela ia pelo meandro de ruas estreitas e comerciais. Enfim, num beco deserto, entrou por uma porta. Quando passei pela porta, ela estava no corredor. Timidamente disse-lhe:

- Desculpe se a acompanhei...

- Entre, fez ela com a voz calma. Não podíamos falar em ruas de movimento. Não seria conveniente nem para mim nem para você.

Fez uma pausa, murmurou: Simpatizei muito com a sua pessoa.

- E eu, então!

Ela riu:

- Sempre que as mulheres querem, os homens simpatizam ao menos uma vez.

Agarrei-a, ela ofereceu-me a boca, que cheirava a rosa, e gulosamente mordeu-me. Depois, desprendendo-se:

- Agora vá embora!

- Mas isso não pode ficar assim. Onde a posso encontrar?

- Na minha casa é impossível neste momento...

- Como se chama?

- Adelina. Até outro dia...

- Há outras casas. Por aqui mesmo...

- Hoje não.

- Por quê?

- Ninguém tem mais vontade do que eu... Amanhã, se quiser. Serve-lhe às duas horas da tarde, num automóvel defronte do terraço do Passeio Público?

Concordei. No dia seguinte rolávamos, às duas da tarde, para a Quinta da Boa Vista e essa mulher era de um ardor, de uma paixão alucinantes. Apenas não saiu do automóvel e no automóvel estivemos até às seis horas. Ao deixá-la, Adelina disse-me apenas:

- Moro numa pensão da rua da Piedade. Quando quiser, escreva-me.

- E não posso lá ir?

- Se quiser, durante o dia.

A minha curiosidade conseguiu saber aquilo que ela não dizia, mas de que não fazia mistério. Chamava-se Adelina Roxo. Era casada, separada do marido. Vivia mantida por um velho diretor de banco, que lhe dava larga vida. O seu modo era tão esquisito, tão diverso das outras mulheres quando desejavam, que me abstive de a procurar oito dias. Quando as mulheres são sinceras, os homens são "cocottes".

O "chiquet" é a essência do amor. Apenas verifiquei a inutilidade do processo e apertou-me o desejo. Queria aquela volúpia e queria também conhecer a mulher. Escrevi, pela manhã, uma carta sem assinatura, e lá fui. Recebeu-me deliciosamente. Tinha três salas admiráveis. O gabinete de vestir era mobiliado de sândalo com incrustações de marfim. Os tapetes altos de seda turca contavam em azul sobre fundo rosa suratas do Korão. Um cheiro de rosas errava no ar, e ela despindo um "chartcha" de seda pesada apareceu-me através de um tecido de Brussa com a pulcra delicadeza de um lírio à sombra. Amei-a furiosamente. Ela era das que, entregando-se, infiltram nos mortais ainda mais desejo. E se eu a amei, ela teve todas as etapas do delírio desde o frenesi ao desmaio. Ao sair esperei alguma frase, um pedido, uma súplica. Nada. Não me demorou, beijou-me com a alma. E não disse uma palavra.

Era diversa, integralmente diversa das outras. Certo gostava de mim, gostava com um calor que eu não sentira em nenhum outro corpo. Mas todas as mulheres querem saber coisas, perguntam onde vamos, indagam se as amamos muito, se será para sempre, e não deixam de reter mais alguns momentos a criatura... Ela não teve um só gesto nem uma das frases banais, mas que estamos acostumados a ouvir.

Claro que voltei. Conversávamos. Ela, sem pedantismos, sabia muito mais do que eu. Viajara a Europa inteira, falava várias línguas, conhecia os poetas de diversos países, que lia em encadernações de antílope com fechos de ouro lavrado. Mas, rindo com infinita alegria, prendendo com a sua clara voz, o seu olhar de brasa verde, o seu corpo de jasmim, jamais perguntou pela minha vida. E também não me disse uma palavra a respeito da sua, e também não me pediu nada. Sabem vocês como as mulheres gostam de contar a própria vida aos amantes. É um duplo exercício de mentira e de tortura. Sabem vocês, como ao cabo de uma semana não se pode dar um passo sem ter a senhora apaixonada a perguntar-nos os detalhes mínimos do dia. Ela abstinhase desses atos, naturalmente. E, talvez por isso, se o meu desejo aumentava, a minha desconfiança irritada crescia. Nem o meu nome ela perguntara - nome que, de resto, devia saber. Tratava-me de "Meu pequeno", meu "guru". Um dia disse-lhe:

- Não sabes o meu nome?

- Não.

- Mas eu assino as cartas...

- Ah! sim, as cartas... Mas não quero o teu nome, quero-te a ti. Que me importa que te chames João, Antônio ou mesmo Júlio?...

- O tratamento de "guru", entretanto...

Ela deu uma grande risada.

- Ah! essa palavra é de um grande poema de amor, o "Ramayana". É uma palavra de carinho, de afeição que não tem tradução. Achei-a simpática. Só a ti no mundo eu chamo assim. Porque só a ti no mundo eu amo, meu pequeno...

- Enfim, um homem casado transformado em "guru"...

Eu dizia para forçá-la a perguntar-me as coisas. Foi em vão. Em virtude de tanta liberdade, como sou humano entre os lamentáveis humanos, aproveitei-a para traí-la. Traí-la? Pode-se trair uma mulher que não nos toma contas? Tive várias intrigas amorosas, que me deram enormes incômodos e fizeram-me enormes despesas. Todas essas mulheres amavam-me como loucas e eu as deixei sem que elas mudassem. Alguns negócios forçaram-me a ausentar da cidade.

- É uma aventura mortal! dizia a mim mesmo para convencer-me.

E ao chegar das viagens, lá ia entre desejoso daquele amor impossível de pôr em dúvida e um vago mal-estar, uma inquietação. Afinal, teria ou não interesse por mim? Tinha, era evidente que tinha. Mas não era bem esse alheamento da vida comum. Talvez forçasse a indiferença para não contar os mistérios da sua existência. Mas, respondia sempre com franqueza a tudo quanto lhe perguntava! Talvez tivesse outro amante. Inquiri, observei. Não. Além do velho banqueiro, só a mim...

Os nossos encontros faziam-se intermitentes. Semanas havia que estávamos juntos todos os dias. Depois passávamos semanas sem nos vermos. Era natural que essa mulher, diante de uma ausência prolongada, procurasse falar-me, escrevesse, passasse um telegrama ao menos. Pois nada. E recebia-me com a mesma ternura, o mesmo sincero amor, sem uma pergunta. Às vezes resolvia não a procurar mais. Encontrava-a, porém, na rua, e a irradiação do desejo era tão forte, que tivesse eu o mais urgente negócio, largava tudo para segui-la. Ela também ficava trêmula, com as mãos frias. Tomávamos o primeiro automóvel e era um verdadeiro frenesi.

Diante da sua absoluta discrição, era forçado a ser discreto. Nunca trocamos uma palavra a propósito do velho diretor do banco. E a necessidade de contar a minha vida se fazia nula com o acanhamento que produzia o seu ar de não querer saber. Uma vez gabei-lhe os olhos. Eram macios e ardentes.

- Herança, meu pequeno.

- Como?

- Eu sou descendente de armênios. Minha avó devia tapar os olhos. Eles ficaram com mais luz e mais doçura. São olhos de serralho...

- Curioso. Por que não me contas a tua vida?

- Porque não vale a pena.

- Mas não perguntas pela minha?

- Para não te aborrecer. Eu sou a tua escrava. Dei-te o meu desejo e o meu coração. Não tenho o direito de perguntar. Estamos assim tão bem...

Ela falava com tanta brandura, as suas mãos de jasmim pousavam tão docemente sobre os meus olhos, que senti uma infinita pena de mim mesmo, e calei-me... Sim, de fato, para que falar, para que mentir, quando não mentíamos ao nosso desejo? Vivemos assim largo tempo. Se não ia à sua casa e a via na rua - era fatal, soçobrávamos na volúpia. Às vezes o desejo era tão forte e imediato, que ela entrava em qualquer porta e ali mesmo as nossas bocas se ligavam vorazes - antes de seguirmos para a luxúria ardente dos seus aposentos.

Possuía-me e entregava-se como jamais pensara que fosse possível!

Conservara durante anos a mesma chama, a mesma maravilhosa chama. Sem uma intimidade, sem detalhes da vida comum, sem me interrogar, sem chegar a esse momento habitual em que dois amantes são iguais a duas criaturas comuns. Eu a consideraria exasperante, se, talvez por isso - o meu desejo nunca tivesse força de resistir.

Enfim, há três meses tive de ir à Bahia. Ia demorar, pelo menos, trinta dias. Podia dizer-lho. Mas o meu orgulho resistiu. Passei a tarde com ela, aliás, e quando consultei o relógio, ainda esperava uma pergunta, que não veio. Parti. Não escrevi. Não escrevi, posto que pensasse nela. Era o que eu julgava uma vingança. Ao chegar, não resisti e fui vê-la. Recebeu-me a dona da pensão, uma velha francesa.

- Bem dizia madame que o senhor tornaria...

- Onde está ela?

- Oito dias depois daquela tarde, ela caiu doente, muito mal. Esteve assim três dias. Afinal, os médicos acharam necessário uma operação. Era apendicite. Saiu daqui para ser operada no Hospital dos Ingleses. Mas antes de sair, chamou-me. Lembro-me bem das suas palavras, 'la pauvre"!

"Madame Angéle, eu vou morrer, sinto que vou morrer. Quando o meu pequeno aparecer, diga-lhe que não fique triste, mas que eu morrerei pensando nele como o meu único bem..."

- Então?

- "Pauvre petite!". Morreu na mesa de operações...

- Mas onde a enterraram?

- Não sei, não acompanhei. Talvez perguntando ao Sr.Herbrath...

Desci, quase a correr, para não mostrar à velha francesa as minhas lágrimas. Todo esse longo, o único longo amor da minha vida, surgia aos olhos do meu desejo como um sonho. Tinha sido uma ilusão, a imensa ilusão. E desaparecera, de modo que nem mesmo lhe sentira o amargor, nem mesmo lhe compreendia o fim, pensando na última tarde que fora a primeira, sempre primeira, sempre nova, sempre a que afasta para depois a tristeza...

Na rua, eu era como o homem que; tendo tido uma entrevista de amor em que amou com fúria - procura encontrar de novo aquela que não teve tempo de conhecer bem, com a ânsia dos vinte anos.

O criado de Ernesto entrou nesse momento com o café e largos copos de cristal, onde gotejou uma famosa "fine" de 1840. Júlio recebeu o copo, virou-o. Se estivéssemos em tempo de emoções, a sua história poderia ter comovido. Mas não estamos. Otaviano é que disse com indiferença:

- Curioso!

- Nunca me pediu nada, nunca lhe dei nada, nunca me perguntou nada, continuou Júlio Bento, com a voz surda. O sentimento que conservo por ela é o mesmo: um louco desejo e uma certa humilhação...

- Porque tu és da vida comum e ela era o amor, respondeu Alencar. O amor é o desejo acima da vida. Talvez nunca tivesse dito sem o sentir uma tão profunda frase. Nenhum de nós nascidos e vividos na mentira e na tortura da mulher, compreenderia essa amante que existiu, como todas as coisas irreais. Mas, se nos fosse dado compreender - aos homens como às mulheres, todos nós invejaríamos a tua sorte e o prazer superior dessa suave perfeição. Para conservar o desejo é preciso não mentir, não pedir e não saber. Ela foi a amante ideal, a única sincera.

Nesse momento o criado voltou a prevenir Bento de que uma senhora estava à sua espera num automóvel, a chorar.

- É, a Hortência! bradou Bento. Nem aqui me deixa! Por Deus, não lhe contem essa aventura. Teria ciúmes da morta. É insuportável!

E como todos os homens neste mundo, precipitou-se ansioso para a amante, igual às outras.



A AVENTURA DE ROZENDO MOURA

Na rua era um fragor. As casas pareciam abaladas pelo barulho dos tambores, das cornetas, dos bombos, da vozearia infernal. Rozendo Moura, muito maldisposto, estava a vestir-se. No seu encantador gabinete de laca branca com estofo cor-de-rosa e uma infinidade de objetos de cristal e marfim por sobre os móveis, nós insistíamos.

- Não me deixarão vocês?

- Rozendo! Uma terça-feira de carnaval!

- Mas chove...

- Tanto melhor. A Berta Worms espera-nos!

- Essa mulher desagrada-me...

- Não há mulheres desagradáveis. As mulheres contentam-se com ser, como dizia o dramaturgo - a razão e o impedimento de todas as nossas obras...

- Pois eu julgo-as portadoras de fatalidade e nós, mesmo contra a vontade, as placas sensíveis dessas correntes de Mistério.

- A Berta dá então azar?

- A mim, pelo menos. Explico o meu caso. Pode dar sorte a outros. Comigo, há mulheres que, aproximadas, são motivo de prosperidade. Outras baralham-me a vida, por mais que me amem. Tenho de brigar a murros com desconhecidos, negócios quase realizados periclitam, a saúde fenece... Assim deve ser com vocês, com todos os homens. Infelizmente não sou excepcional. Há de resto uma espécie de mulheres pior - a que age sobre os homens como alucinação, fazendo-os participar da própria desgraça. Dessas, quem escapa uma vez, não toma...

- Fetiche!

- É que vocês nunca se lembram da mulher que os acompanha...

- A mulher fatal?

- Todas são fatais.

Houve uma pausa breve, enquanto Rozendo Moura dava o laço da gravata, diante do espelho.

- O Rozendo, já escapastes de alguma? indagou Jaques Ciro, um prodígio de ceticismo, porque tinha apenas vinte anos.

- Já. Olha. O carnaval faz-me lembrar a mais horrenda semana da minha vida, a semana em que eu participei integralmente da horrível fatalidade...

Nesse momento, o rumor vindo da rua tornou-se tão grande, que tivemos de ir à janela. Chovia a cântaros. Mas, embaixo, a multidão delirava. Eram gritos, uivos, gargalhadas, assobios, guinchos de cornetins, rufos de tambores, sacolejos de adufes, estalos de pratos. E os sons agoniantes dos bombos bombardeando as fachadas... Rozendo recolheu com desgosto, atirou-se no divã.

- Não, positivamente não vou!...

- Recordaste a semana horrível? tornou Jaques Ciro.

- Sim. E tanto mais atroz, quanto até hoje não compreendo como e por que agi nesses oito dias. Foi há cinco anos e por mais que pense, não explico. Macabro. Misterioso. Assustador. Recorda-se você da Corina Gomes, uma rapariguita brasileira, que freqüentava os clubes?

- Há cinco anos, Rozendo? Não há memória que alcance uma rapariguita brasileira a cinco anos de distância. Depois eu estava na Europa...

- Felizardo!

- Infeliz, porque voltei...

- Pois a Corina era magra, lívida, tomava cocaína. Eu achava-a antipática. Nunca trocáramos senão monossílabas, o instinto dizia-me que essa mulher seria a desagradável aventura da minha vida. Como? Não sabia!

Ora, numa terça antes do carnaval, com a agitação da cidade, habitual em tais dias, sentia-me inquieto, indeciso, nervoso. Desejava voltar a casa e queria aborrecidamente beber champagne e ouvir gritos no clube - onde se anunciava uma ululante redoute. A porta do club ainda hesitei. Ia acontecer-me qualquer coisa de desagradável. Com certeza. Sem ter inimigos, apalpei o revólver no bolso da calça. Há desses instantes de polarização nervosa em que vagamente sentimos o que está no ar e vem... Veio. Veio como os ciclones. Ainda no vestiário senti uma voz de agonia:

- Leve-me daqui já ou estou perdida! Pela sua honra...

Voltei-me. Era um dominó.

- Que brincadeira é essa?

- Por piedade! Não posso falar aqui. Escute, venha cá...

Frágil, a sua força nervosa era tão intensa, que quase me arrastava para a rua.

- Você está doida, mulher?

- Pelo amor de Deus! Só a sua companhia até mais abaixo, Rozendo...

- Conhece-me?

- Sim, sim. Salve-me de morrer!

- Mas quer comprometer-me?

- Não. Quero a sua presença contra um covarde!

Na rua um táxi rodava vazio. Ela precipitou-se.

- Mande tocar já, já - para onde quiser...

Olhei em redor. Não havia ninguém suspeito. Tratava-se por conseqüência de uma aventura sem conseqüências.

Ela entregava-se, indo onde eu quisesse... Curvei-me para o motorista e, quase em segredo, dei-lhe uma direção vaga. Por quê? Até hoje não sei. Quando me voltei, o automóvel em marcha, o dominó levantou a máscara. Era Corina Gomes, os beiços trêmulos, lívida...

- Você? bradei colérico.

- A desgraça da minha vida! Não gosta de mim, bem sei. Mas não se trata de amor, Rozendo! Só o sr. poderá salvar-me.

- Eu?

- Há três anos suporto as torturas de um monstro. Tudo quanto ganho é dele. Quando vou ao club toma-me o dinheiro. Depois fecha o quarto todo, abre vários frascos de éter, põe-me inteiramente nua, prende-me os cabelos à gaveta da cômoda, e goza naquela atmosfera desvairante, gotejando sobre mim éter. Oh! não imagina! não imagina! Cada gota que cai dá-me um arrepio. Ao cabo de certo tempo é uma sensação de queimadura, queimadura de gelo até a insensibilidade... Ontem, não foi possível tolerá-lo mais. Protestei, gritei, contei tudo à gente da pensão. Dois homens que lá estavam puseram-no na rua a pontapés. Ele voltou. Não o recebi. Deu então para perseguir-me. Jurou que me matava. Ando a fugir. Vejo-o por todos os lados. É certo que me matará...

- E você incomoda-me por uma tolice dessas! Faça as pazes.

- É tarde. Não tenho coragem. Antes de ouvir-me, mata-me. Tenho a certeza. Os meus dias estão contados. Conheço-o.

Disse aquelas palavras com tal segurança que não hesitei um segundo. Também eu tinha a certeza da fatalidade que vence todos os obstáculos, também eu via aquela criatura morta...

- Mas que fazer?

- Se pudesse esconder-me uns dias, dar-me depois uma passagem? É inútil, porque ele acabará por encontrar-me. Mas eu tenho medo, muito medo. Falta-me a coragem de morrer, Rozendo!

Devia ter levado Corina à policia, denunciado o monstro. E, livre de responsabilidade, ir dormir em seguida. Assim faria um homem de bem no uso das suas faculdades.

- Sabe onde está ele?

- Por ai. Procura-me...

De repente senti que tinha ódio a Corina, com vontade de defendê-la. Perdera a noção do real, sabendo que a perdera. Era desejo de aniquilar o desconhecido e o medo vago desse enorme e vago desconhecido. Não disse que a defenderia. Levei-a para um quarto de hotel em rua escura com a resolução de embarcá-la no dia seguinte, ainda não sabia como. No hotel, Corina tremia tanto, quando tentei deixá-la, que fiquei. Dormimos um ao lado do outro, sem uma carícia - ela a delirar com medo; olhando a treva e maldizendo a aventura. E no dia seguinte verifiquei apenas o seguinte: perdera insensivelmente metade da energia. Como essas criaturas na iminência do desastre. Como os criminosos com medo à polícia. Andei dois dias assim, desconfiado, fraco, aterrado, sem agir. Corina não deixava o quarto, sem dizer palavra. Eu sentia que era preciso salvá-la, para salvar-me. Inexplicável estado da alma! Na sexta resolvi terminar, vendo os anúncios dos vapores.

- Embarcas amanhã para a Europa!

Corina despregou-se das persianas, onde passava o dia a espreitar a rua.

- Não é possível! Ele já descobriu.

- Como?

- Vi-o ainda há pouco ali em frente.

- Mas estás louca!

- Não me deixe só, Rozendo! Ele mata-me. Chamei o criado, com uma súbita intenção do perigo. Interroguei-o. Havia algum hóspede novo? Havia. Um homem louro, pálido, que alugara o quarto do outro corredor, e estivera a ler a lista dos hóspedes... Corina caíra sobre o leito. Os seus dentes batiam como se estivesse desabrigada, entre neves. Fiz um esforço:

- Esse homem já recolheu?

- Há pouco.

Era uma luta, devia ser uma luta, secreta e atroz, na sombra. Mandei buscar um automóvel. Consegui dominar o terror de Corina para que ela ao menos caminhasse. Saímos naturalmente, como quem vai a passeio. No meio do caminho trocamos de automóvel. Eu tremia de raiva.

- A culpa é tua! Tu é que o fazes vir, sempre a pensar nele!

- É sim, Rozendo. Sinto que ele vem e não posso, não posso, não posso...

- Acabo com isso eu! Vamos dormir em qualquer hospedaria e amanhã dou queixa à polícia...

Assim fiz. O delegado prometeu tomar providências, mandando dois agentes para o hotel onde estávamos. Mas, ao sair da policia, compreendi claramente que ele" sabia da minha resolução. "Ele" sim, o homem que eu desconhecia, com o qual a fatalidade me punha em conflito, o homem de que a Corina devia ser vítima. Essa criatura já decerto sabia, e ria com desprezo. Eu não precisava tê-lo visto para ter a certeza do seu conhecimento... Foi um pensador melancólico que escreveu: "não é só no céu e na terra, é principalmente em nós mesmos que há mais coisas do que podem conter todas as filosofias. "Não sei explicar o mistério daquelas correntes de sentimentos que chocavam. Tinha a certeza, porém. E era horrível, era angustioso! Tomei a mudar de hotel e não tive mais coragem de deixar só Corina. Fazia-me reflexo sensível daquela fatalidade feita mulher. Ela aos poucos desdobrava-se em mim. E como só pensava no seu algoz - naquele a quem o Destino lhe entregara a vida eu também só pensava nele. Passávamos horas a ouvir o rumor dos corredores. Onde estaria ele? Onde? Decerto perto. Talvez, à vossa porta, espreitando...

O meu delírio tinha entretanto intervalos de relativa lucidez. Domingo de carnaval perdi de súbito o medo.

- Corina, achei uma solução para o nosso caso.

- Qual? fez ela.

- Vamos aproveitar o carnaval! Não se pode contar com a policia. "Ele" ainda não apanhou a nossa pista. O essencial é pôr-te a andar, antes que de novo a descubra! E encontrei-me a planejar alto: Visto-me de qualquer coisa e saio. Vou até a casa, enfio o dominó e venho buscar-te. Sairemos pela porta dos fundos. Faço melhor. O meu criado tem uma rapariga mais ou menos com o teu corpo. Mando-os esperar em qualquer casa de máscaras. Lá eles enfiarão as nossas fantasias e virão para este quarto, enquanto nós estaremos livres para tomar o noturno de S. Paulo. Há quarta-feira em Santos um transatlântico para Buenos Aires e Valparaíso. Se o homem não estiver no vapor, estarás livre...

- Achas?

- É certo.

Saí a executar o plano. Executei-o exatamente. Na casa de máscaras, Corina pôs uma travesseirinha nas costas, armou uns seios muito grandes, amarrou com o lenço o rosto e colocou por cima uma espessa máscara de arame. Eu fiz um grande ventre sob o dominó e saí claudicando. Tudo isso, notem vocês, fazíamos sem ver nada anormal, sem a certeza senão vaga de que ele nos estivesse acompanhando...

Após, conseguimos um táxi. Estávamos prestes a dizer:

- Enfim, logrado!

Mas, curioso. Durante as duas horas em que rolamos por avenidas desertas nesse automóvel fechado a fazer horas para apanhar o comboio, não trocamos uma palavra. Era o grande momento decisivo. Corina apertava a minha mão, de vez em quando, tremendo. Apenas. Eu sentia que o seu medo voltava aos poucos a desequilibrar-me. Passávamos pela cidade em delírio, sem dar por isso. O nosso delírio era maior.

Quando chegamos à Central a confusão urbana tocava o auge. O grande hall da estação cheio de luz elétrica, a turba, os "cordões" com archotes a zambumbar, as danças, os gritos, as lutas de lança-perfumes e dos confet, o risco colorido das serpentinas... Metemo-nos por ali dentro para tomar o vagão. E de repente, os dois, no mesmo instante, vimos que estávamos perdidos.

Como explicar essa impressão extralúcida?

Fora caía um temporal desabrido. A estação estava atulhada. Homens suados, bandos alagados, máscaras passavam numa alucinação como galvanizados pela luz elétrica. Ninguém reparava em nós, ninguém decerto, ninguém, ninguém. E entretanto sentíamos que o perigo se aproximava seguro, com o passo firme. Onde estava ele? Era o homem do éter, o homem cuja fisionomia eu nem mesmo conhecia, ele com a sua cara, ou com uma máscara. E olhava-nos, e estava ali, e reconhecera-nos. Sim.

Devia estar, devia ter reconhecido. Que fazer? Que fazer? A vertigem apoderava-se de nós. Aquela mulher era decerto o pólo negativo a chamar misteriosamente, a atrair o horrendo ser. Ele adivinhava por uma revelação telepática. Sei lá! Sei lá! O fato é que Corina apoiou o corpo no meu braço:

- É o fim!

- Anda para frente, estafermo! rouquejei furioso.

- Não partimos mais, Rozendo.

- Partimos sim!

- Ele está no apeadeiro, sinto-o!

- Prendemo-lo.

- Ele vai tomar o trem conosco. Ele mata-me em viagem!

- Miserável, caminha ou largo-te!

- Voltemos, Rozendo. Ainda é possível escapar, se apanhamos ai um automóvel...

- Agora?

- Sim! Sim!

- Agora? repetia eu correndo, como diante do inexorável Destino. E não havia máscara ou cara suspeita!

Na praça deserta - faltavam as conduções. Só, ao longe, rebrilhavam as lanternas de um carro. Ela deitou a correr. Segui-a, olhando para trás. Ao chegarmos à beira do carro, um landau fechado, estávamos completamente alagados. A chuva redobrava.

- Para onde?

- Ande!

- É vinte mil-réis a corrida.

- Seja cem! Depressa!

- Para onde quiser!

O trem tomou o caminho do lado da Casa da Moeda.

- Vamos à delegacia, Rozendo?

- Queres?

- Se ainda for tempo!

Convencido de que não seria possível lutar só contra o horror invisível, gritei ao cocheiro:

- Polícia Central! A toda...

O carro, porém, parara.

- Que há?

- Raios o partam! Rebentaram as correias das bestas.

- Hem?

- Dos dois lados. Caiporismo!

- E agora?

- E esperar aqui, até que passe outro carro. Não posso guiar assim.

- Meu Deus!9

Era no pedaço mais deserto da rua. Saltei para ver. As correias gastas tinham arrebentado naturalmente. Estávamos nas mãos do Destino. Só havia um alvitre: correr até a esquina, onde passavam bondes, onde havia movimento... Era o meio de escapar, e eu escaparia para sempre, porque no dia seguinte não me meteria mais à guarda daquela criatura.

- Vamos?

- Rozendo...

- Anda...

- Se tem de ser? fez ela. Tens razão.

Desceu, corremos os dois sob o temporal pelo meio da rua escura uns cinco metros, uns dez metros. Sei que ouvi um psiu e voltei-me, enquanto ela estacava. Sei que vi um sujeito que vinha para nós, talvez o cocheiro. Sei que o sujeito avançou para Corina com uma pequena máscara de chorão, ergueu o braço, e passou a mão pelos seios falsos da rapariga. Ia gritar. Deu-me um pescoção. Rolei na lama. Ele segurava-a, riscando-lhe o dominó com uma navalha.

De súbito ela deu um grito agudo. O único. Pareceu-me que desmaiara. Nas mãos do máscara lembrava um manequim. O homem em fúria continuava a brandir a navalha contra os enchimentos dos seios. Afinal atirou-se à máscara. Era de arame. O fio da arma rompeu-se no tecido espesso. Ouvi os triços gaspeados da lâmina no tecido de arame. Ergui-me de um pulo, saquei do revólver, detonei aos berros:

- Assassino! Assassino!

O tipo arrancava as roupas, a máscara da desgraçada. Eu continuava a detonar e a gritar. Gente corria. Vi cair o capuz à Corina, o assassino agarrá-la pelos cabelos, afundar-lhe a navalha no pescoço e deixá-la tombar num jato de sangue. A cena talvez tivesse durado dois minutos. Para mim foi longa como um século, rápida como um raio. De revólver em punho, fantasiado, meio estrangulado pelos cordões da máscara, eu delirava, presa de uma febre cerebral... Estive entre a vida e a morte, dois meses... E quando os médicos me declararam fora de perigo, tive a sensação absoluta do desastre de que escapara. Ela agira como os ciclones, que embora destinados a um certo sitio, desarvoram, matam, estragam o que se agita no limite da sua ação destruidora. Aquela criatura fora o ciclone. Longe dela ainda lhe sofrera a força fatal. Não morrera, mas estava desarvorado, como os barcos apanhados pela tromba terrível. E desde então, respeito muito essas coisas inexplicáveis que as mulheres representam. A semana de Corina fez-me compreender o horror do enigma dramático da vida...

Rozendo Moura reclinou-se inteiramente no divã. Tinha a fronte banhada em suor. Amigos desse excelente rapaz, nós ouvíamos a anedota e os comentários com paciência e sem prestar muita atenção. Jaques Ciro, o jovem cético, estava ainda na idade em que se toma interesse pelas histórias alheias. Às divagações de Rozendo, insistiu:

- E a Corina, morreu?

- É verdade, a Fatalidade desapareceu? sorriu outro.

- Não, fez Rozendo. Não estaria no meu princípio de que as mulheres são agentes do Destino contra ou a favor de certos indivíduos. Ela parecia a vítima do tal assassino. No fundo a vítima foi ele. Ele é que devia desaparecer para libertar-se...

- Rozendo!

- A própria opinião inconsciente dessa rapariga. Nem ele nem ela morreram. Ele foi condenado a vinte anos de prisão. O advogado tem apelado. Ela, com o pescoço costurado, a cara cheia de talhos, mais magra, mais lívida, vive numa hospedaria das proximidades da Detenção. Todo o dinheiro que arranja é para ele, para o seu antigo, para o seu assassino. Amam-se profundamente. Ela, porque sendo a expressão viva da fatalidade do pobre homem, não o deixará enquanto for possível fazer-lhe mal. Ele, porque ninguém foge à sua mulher, isto é, ao seu Destino... Outro dia encontrei Corina. Não a vira desde a noite trágica. Foi ela quem me falou. E, contando-me o seu amor, a sinceridade do "pobrezinho", exclamou: "Tudo por sua causa, Rozendo. Se não fosse o seu medo e a mania de meter-se na vida dos outros, o meu Roberto não estaria desgraçado".

- Decididamente, meus amigos, as mulheres!... Não valem o tempo que aqui perdemos, sentenciou grave Jaques Ciro.

- Vão vocês pois ao divertimento. Eu fico com medo à chuva e às rajadas do Destino, que são as inexoráveis mulheres...

- E Rozendo Moura ergueu-se, foi até o espelho desmanchar o laço da gravata. Estava só. Todos nós já descíamos as escadas. Corríamos às aventuras prováveis do baile de máscaras. O carnaval, sob a chuva, sacudia as urtigas dos desejos. Não era por conseqüência momento de refletir sobre as filosofias talvez verdadeiras de Rozendo. O mundo não seria o mundo, se fosse possível a qualquer humano evitar o que tem de ser...


2 comentários:

  1. Rozendo é um dos muitos nomes que os pais não colocam mais nos filhos atualmente.

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  2. Em Porto Alegre também existe a rua João do Rio, no bairro Partenon. Começa na esquina da rua Caldre e Fião com Barão do Amazonas, indo até a esquina com a rua Ferreira Araújo, tornando-se, logo após, Rua Manoel Vitorino.

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