Sexta, 30 de julho dew 2120

 


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especial

Nesta sexta, uma cesta 
de 
Osman Lins!


Difícil precisar quando ocorreu a decisão de ser escritor. Naturalmente, não foi de uma hora para outra, mas o certo é que nunca hesitei entre aderir às letras e empenhar-me em qualquer outra carreira. Nenhuma das outras formas de justificar a nossa passagem na Terra me animava. Fui pensando as forças, sondando-me, até que - com essa dose de ilusão sem a qual nada empreendemos - me alistei na literatura, fiz os votos, assinei um pacto, jurei fidelidade, convertendo num projeto sem volta o que antes fora intermitente.




A História está cheia de traições. Os exemplos de fidelidade é que são raros. Muito raros.







A calúnia dos amigos é a mais perigosa. (…) Você precisa tirar-lhe esse título, para que sua maledicência perca a força.



Osman Lins (Osman da Costa Lins) nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, em5 de julho de 1924. Foi um escritor que produziu romances, teatro e contos.


Era filho de um alfaiate e de uma dona de casa, que morreu logo depois de seu nascimento. A ausência da mãe foi compensada pelo amor de sua avó paterna.


Aos 16 anos mudou-se para o Recife, onde ingressou no curso de finanças. Nesta época começou a trabalhar no Banco do Brasil. Posteriormente estudou dramaturgia na Universidade do Recife.


Em fins dos anos 1940, Osman casou-se com Maria do Carmo, com quem teria três filhas. Em 1950 ganhou um concurso literário com o conto "O Eco", mas sua estreia na ficção se deu com a publicação de seu primeiro romance, "O Visitante", em 1955. Dois anos depois publicou "Os Gestos" e em seguida "O Fiel e a Pedra".



Sua primeira peça teatal a ser encenada foi "Lisbela e o prisioneiro", adaptada com sucesso para o cinema em 2003. No início dos anos 1960, Osman Lins viveu na Europa, como bolsista da Aliança Francesa. De volta ao Brasil, transferiu-se para São Paulo.


Em 1964, já separado de sua primeira mulher, casou-se com a escritora Julieta de Godoy Ladeira.

Em 1970 tornou-se professor universitário, ensinando literatura brasileira. Obteve também o grau de doutor em Letras, com uma tese sobre o escritor Lima Barreto. Em 1973 publicou o enigmático romance "Avalovara", considerado uma de suas principais obras e traduzido para diversas línguas. Poucos anos depois, pediu exoneração da Universidade, desencantado com a qualidade do ensino.

O projeto literário de Osman Lins mescla-se com sua biografia e fatos que marcaram sua história pessoal aparecem de maneira recorrente em sua obra. Um desses fatos, e talvez o mais importante, foi a perda da mãe logo após seu nascimento.


Seu romance Avalovara (1973) é uma obra de engenharia narrativa, construído a partir de um palíndromo latino (sator arepo tenet opera rotas), dentro de uma espiral, a partir do qual vão sendo desenvolvidos todos os capítulos do livro.

É também autor de "Guerras sem Testemunhas", livro-tese, onde discorre sobre as atividades e os problemas enfrentados pelo escritor. Seu último romance foi "A Rainha dos Cárceres da Grécia", publicado em 1976.

Osman Lins colaborou com diversos órgãos de imprensa e escreveu roteiros para televisão. Autor de uma vasta obra reconhecida pela crítica, recebeu diversos prêmios, entre eles o prêmio Monteiro Lobato e o prêmio Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras.


Lisbela e o Prisioneiro, texto para teatro de 1961, foi adaptado para televisão pela Globo (1994), com os atores Diogo Vilela e Giulia Gam, sendo depois adaptado por Guel Arraes para o cinema, com Selton Mello e Débora Falabella (2003).

Osman Lins faleceu aos 54 anos, em consequência de câncer generalizado, decorrente de um melanoma tardiamente diagnosticado.

Mesa-estante da
biblioteca do escritor

O arquivo pessoal do escritor foi doado pela viúva, a também escritora Julieta de Godoy Ladeira (1927-1997), a duas instituições brasileiras: Fundação Casa de Rui Barbosa (Rio de Janeiro) e Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (São Paulo).


Na Cidade de Vitória de Santo Antão, foi construído o Centro Universitário Osman Lins em homenagem ao escritor.


Obras

O Visitante — romance, 1955.

Os Gestos — contos, 1957.

O Fiel e a Pedra — romance, 1961.

Marinheiro de Primeira Viagem — 1963.

Lisbela e o Prisioneiro — teatro, 1964.

Nove, Novena — narrativas, 1966.

Um Mundo Estagnado — ensaio, 1966.

Capa-Verde e o Natal — teatro infantil, 1967.

Guerra do Cansa-Cavalo — teatro, 1967.

Guerra Sem Testemunha — o Escritor, sua Condição e a Realidade Social — ensaio, 1969.

Avalovara — romance, 1973.

Santa, Automóvel e o Soldado — teatro, 1975.

Lima Barreto e o Espaço Romanesco — ensaio, 1976.

A Rainha dos Cárceres da Grécia — romance, 1976.

Do Ideal e da Glória. Problemas Inculturais Brasileiros — coletânea de artigos e ensaios, 1977.

O Diabo na Noite de Natal — obra infantil, 1977.

Missa do Galo, Variações Sobre o Mesmo Tema, Organização e Participação, 1977.

Casos Especiais de Osman Lins — novelas adaptadas para televisão e levadas ao ar pela TV Globo, 1978, composto de:

A Ilha no Espaço

Quem Era Shirley Temple?

Marcha Fúnebre

Evangelho na Taba. Problemas inculturais brasileiros II — coletânea de artigos, ensaios e entrevistas, com apresentação de Julieta de Godoy Ladeira, 1979.

Domingo de Páscoa — novela, 1978.



Dispensados devem ser os que nos retiram as forças, mesmo que sutilmente, ou que quase nem percebamos.



Menino Mau

Chove. Os prados, os campos, os telhados, ruas, tudo enfim, banha-se de uma só vez no banho universal da criação.

Os trovões sucedem-se e parecem rebolar na serra como um Titã colossal, assustadoramente, num rimbobar alucinante e satânico. 

O sol deve estar no zênite, pois os ponteiros se cruzam sobre as doze. Mas quem o vê? Ninguém. Só a chuva, fustigante, torrencial, desce das nuvens plúmbeas e compactas que escondem tristemente o azul do céu.

Mas apesar de tudo, Luizinho está na rua. Tiritante, com a roupa ensopada em água, colada ao corpo magro, brinca, com os pés molhados sobre a lama fria e pastosa.

Na sua casa humilde e sem conforto, sua madrasta, magra e raquítica talvez mais do que ele, fala sem parar. Menino mau! Chovendo, e ele na rua! Também, pouco se importava ela. Se aquele cão morresse, melhor para ela. É um de menos na casa pequena e sem cômodos. Como ela sofria por causa daquele menino! Toda manhã, tinha que acordá-lo. E à mesa? Tinha que fazer coisas diferentes para ele comer. Credo! Aquilo era vida? Viver, era ir a cinema, bailes, festas, viajar... Ah! Um dia, ela deixaria aquela vida. Não sabia mesmo porque se casara com aquele pedreiro. Fora uma coisa assim, como um divertimento, uma curiosidade de mulher, que a fizera contrair matrimônio. E com um homem sem futuro! Sua fé, era o jogo do bicho. Mas como a sorte só chega para quem não precisa... ele nunca fora premiado. Mas era bom. Tudo que tinha era também dela.

Um ranger de dobradiças arrancou-a das suas reflexões em voz alta. Era Luizinho que entrava. “Mamãe - o pai  acostumara-o a chamá-la assim - eu quero uma roupa pra mudar”.

Francisca - era este seu nome - colou as mãos sobre os rins numa pose autoritária, enquanto gemia entre dentes, ironicamente: “Mamãe...”. Logo, mudando este tom irônico para outro irritado, exclamou: - “Isto tem jeito, menino? Chovendo dessa maneira e você levando chuva? Ora, que você não tem nunca jeito de gente! Você me mata! Está ouvindo? Mata mesmo. Se estou magra assim, acabada, com a pele no osso, é por sua causa. Você me aperreia o dia todo! Até quando está fora de casa, me aperreia! Seu cão! Cachorro!”. E aplicou-lhe violentamente dois cascudos na cabeça grande e deformada, enquanto dizia: - “Tome o que você precisa, idiota!”

Luizinho saiu chorando, enquanto a madrasta descompunha-o desenfreadamente, assustando os vizinhos.

Luizinho chorava. Chorando, foi que ele entrou no seu cubículo pobre de menino sem infância - porque infância é doçura, e na vida só houvera amargor.

Chorando, ajoelhou-se, e foi chorando ainda que rezou, entrecortando as frases de soluços ante uma imagem descorada e velha de Nossa Senhora: - “Mamãezinha do Céu! Faz com que essa mamãe daqui não morra... Ela me dá cascudos, e ralha comigo. Mas eu gosto dela, porque papai lhe quer bem... Se ela morrer, papai vai ficar triste... Minha Nossa Senhora, vou rezar duas Ave Marias pra mamãe não morrer”.

“Ave Maria... cheia de graça... o Senhor é convosco...”

Lá fora, a chuva caia sem parar, unissonamente. Os trovões sucedem-se, e parecem rebolar assustadoramente, num ribombar alucinante e satânico. 

E Francisca continua falando:

- “Menino mau! Menino mau!...”

Luizinho reza... E frente a ele, velha e descorada, a imagem de Nossa Senhora parece sorrir complacentemente.



Amiga é aquela pessoa que conhece todos os nossos defeitos e gosta da gente assim mesmo.



Fantasmas...

Era um trabalhador. Caíssem em chuva todas as nuvens do céu, ou queimasse o sol as flores dos vergeis, nada o afastava da rotina impassível do seu viver. À noite, voltava suado, mas alegre: cansado, mas satisfeito. A esposa esperava-o sempre com o café coado de fresco, morno, cheiroso, entrando pelas narinas, gostosamente...

E quantas vezes, nas noites de lua, saía Serafim para trabalhar? Aquele pedaço de terra cultivada era a sua maior obsessão. Quando a chuva caía, na sua ablução solícita e universal, limpando as folhas, aguando as flores, molhando tudo, então era uma festa. Mas, ai dele se a chuva era demais... As gotas esparsas iam chegando formando poças, gerando regos que se enfureciam na transposição de sua grandeza efêmera. Iam por ali afora, pelo campo, pelo  seu mundo, cavando o chão, arrancando dolorosamente numa insensibilidade amarga as mandiocas promissoras e os canaviais verde-amarelos.

Mas não desanimava nunca. E no fim do ano tinha sempre o dinheiro para pagar ao senhor de engenho o arrendamento do “terreno”, e pela festa não faltavam nunca roupas novas para os dois - ele e Madalena - romperem o ano novo.

Mas um dia - e era dia de festa - ele foi à cidade com um amigo. Entrou num botequim; anuviou o cérebro com copos de álcool. Conheceu o hálito de mulheres damas de olhar preguiçoso. E essas mulheres estranhas e mal pintadas, pareceram-lhe muito mais bonitas e irreais aos seus olhos ébrios, desacostumados com aquilo tudo. Dançou mal - era a primeira vez - no botequim, numa dança que era bem mais uma consagração mascarada à orgia e ao pecado. Fez palhaçadas. Mas os outros não sorriram dele. Os mais espirituosos ditos, não fazem sorrir duas vezes do mesmo modo. Como sorrir diante do espetáculo de Serafim, se era o espetáculo de séculos com cenários diferentes e com outro palhaço? Naquele botequim, em todos os botequins, um noviço no postulado da orgia sem freios, passa sempre, insensivelmente, por todas as provas degradantes, com uma alegria louca. Essa alegria vai aos poucos cedendo lugar a um tédio sem par; e os  velhos freqüentadores dos centros da prostituição do corpo e do espírito, são entediados perenes.

*  *  *

Tarde da noite, Serafim voltou. Seu companheiro, mais afeito ao álcool, trouxera-o para casa. A esposa chorava, e ele zangou-se: não queria tristezas... E foi se deitar cantando...

O sol raiou numa aurora pomposa, brilhante, toda rósea. Serafim já se levantou há muito, e fugiu para o campo como que a procurar um alívio para os membros cansados.

Sorveu o ar sequiosamente; banhou-se no rio e sentiu-se melhor com a carícia das águas frescas e reconfortantes como um dia novo. Ah! Certamente era aquilo que lhe faltava. Como se sentia melhor agora! Até pensara que estava doente. Mas, aquela opressão interior, aquela espécie de abafo, aquela impaciência enorme era sujo, só sujo...

A noite anterior parecia-lhe agora irreal. Não sentia remorso, entretanto. Sentia, sim, a curiosidade de viver novamente noites assim ao invés de ficar em casa preguiçosamente... E desculpava-se resmungando: preguiça é pecado!

Lembrava-se vagamente dos olhos chorosos da esposa. Sentia às vezes o aviltamento da culpa, para depois sentir-se grande na sua liberdade. Travou-se a batalha interior entre anos de trabalho persistente e um dia de orgia vã. Pensou, fraquejou, cambaleou, e precipitou-se como um bólido na tabidez das tascas prostibulares.

Dias correram, e seu trabalho já não tinha mais a energia criadora dos dias de outrora. As plantações ressecavam-se, amareleciam, e pareciam morrer. Mas era necessário trabalhar, precisava ter dinheiro para gastar. Uma força nova apoderava-se dele, que se precipitava de novo no trabalho. Ah! Queria gozar a vida! E ele a tivera tanto tempo ali, tão pertinho, boa e sorridente, sem descobri-la...

Sua esposa não tinha mais dele os cuidados de outrora:   na última festa, não tivera um vestido novo para celebrar esta festa de todo o mundo, o Ano Novo. E num despeito todo feminino, foi sentindo aos poucos um desejo insensível e quase inconsciente de se vingar à sua maneira daquele descaso. E não era sem intenção que ela correspondia aos olhares do Juvêncio, caboclo forte, capanga do Coronel Silva, do engenho Comprido, afeito às correrias nas campinas verdes, que aliava à coragem indomável brincadeiras por vezes pueris. Já se apeara mais de uma vez do seu cavalo malhado à porta de Madalena para beber água... E ela na sua intuição de mulher, bem que adivinhava as intenções do Juvêncio, e via que ele não tinha sede, enquanto as conversas e os olhares entre eles iam aumentando.

*  *  *

A Cruz das Almas, debaixo da jaqueira grande no meio da estrada, criara na mente daquele povo a crendice secular do mal-assombro. E já se haviam contado inúmeras histórias de almas penadas, tétricas e arrepiantes. 

Era por lá que passava o Serafim numa noite, quando ouviu, de um lugar qualquer no fundo negro da escuridão, uma voz exageradamente fanhosa inquirir-lhe: “Donde vem, irmão?” Serafim, abstrato, recordando-se dos momentos na taverna de “seu” Raimundo, nem se lembrava da lenda de ser aquele lugar mal-assombrado: e respondeu distraidamente: “Venho da vila...”. E continuou sua marcha no caminho.

No outro dia, repetiu-se o incidente. E assim nove dias passaram-se. Serafim já respondia maquinalmente àquela ignota interpelação quotidiana. Naquele dia, porém, foi diferente. A noite estava mais escura do que nunca e a estrada era um halo longínquo de luz. Os sapos coaxavam nas poças turvas e nos troncos carcomidos. Morcegos passavam de raspão no seu rosto suado, fazendo-o soltar imprecações idiotas. Um roedor qualquer roçou pelas suas pernas moles, fazendo-o saltar de susto, e tremer o corpo todo. Foi assim que ele chegou à Criz das Almas. E mais uma vez a voz de sempre surgiu invisível de entre as sombras: “Donde vem, irmão?”

Mas Serafim, desta vez, estava nervoso; os elementos invisíveis da noite conspiravam todos contra seus nervos cansados. E foi com a voz irritada que respondeu: “Ora bolas! Dane-se”. Antes não dissesse nada.

Sentiu-se quase que imediatamente seguro pelas orelhas em fogo, enquanto a voz fanhosa e monótona repetia: “Vai à vila... vem da vila... vai à vila...”, jogando-o como um maracá ao ritmo sem cadência de suas palavras. Foi jogado ao chão violentamente. Perdeu a noção de tudo, e desatou a correr como um louco pela estrada afora, cabelos ao frio da noite, pés descalços, as orelhas sangrando...

Chegou em casa. Bebeu água, e quase parte o copo, com o corpo todo tremendo. Sentou-se em um tamborete grosseiro para se acalmar. Lá fora a chuva começou a cair grossa, violenta. Um relâmpago arranhou as nuvens, e denunciou as goteiras do telhado, iluminando-as. Um cavalo passou solitário no caminho, trotando, salpicando lama.

* *  *

No outro dia Serafim voltou ao antro do vício.

E agora, o sino da Matriz acaba de anunciar a meia-noite. A cidade toda ressona docemente, e no botequim de “seu” Raimundo dão vivas a Serafim que agora é mesmo homem de coragem: só irá para casa de madrugada. E enquanto ele treme de orgulho imbecil, com medo de passar na estrada àquela hora, sua esposa, sentada junto a um tronco de mangueira, olhando o crescente através das folhas finas e entrelaçadas, conversa com um homem, o Juvêncio:

- E você tem certeza de que ele não volta agora?

- Toda a certeza.

- Quando eu me lembro de como ele chegou ontem, até me dá vontade de rir...

- Ele quase morre de medo, hein?

- Ora se... E eu fazendo que estava dormindo.

- Veja só... Eu nunca pensei em ser fantasma! 

E o colóquio continua.

Ao longe, um violão dedilhado delicadamente, espalha pelas solidões das matas e dos caminhos, notas sentimentais, parecendo envolver aquilo tudo numa evocação dolente e impressionável...



Foi você no meio de minhas pernas, você dentro de mim.



A partida

Hoje, revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim, também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.

Ela vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa e amorosa e justa.

Na véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem!

Percebi que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável ela fizesse isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.

Deixei a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.

Minha avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos, cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar de talheres, de xícaras.

Por fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:

— Acordado?

Apanhou o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as costas.

Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos, barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável — imagens de febre.

Sentei-me na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa, que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo. A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios. Deitei-me.

Passava de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé junto a mim. Com que finalidade? — perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se eu fosse um cadáver — pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer. Sentia-me a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto.

Afinal, ela beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.

Acordei pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo: passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de disciplina e de amor.

Com receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes, penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo. Deveria fugir ou falar com ela? Ora, algumas palavras… Que me custava acordá-la, dizer-lhe adeus?

Ela estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro, ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se. Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito. Tentava sorrir.

Não sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à procura de objetos imaginários enquanto ela me seguia, abrigada em sua coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?

Enfim, beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me, apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa (cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários.


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