Sexta, 8 de maio de 2020 - parte 1

Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA 



Escreva apenas para






especial

Nesta sexta, uma cesta
de Renan Antunes de Oliveira!








Renan Antunes de Oliveira nasceu em Nova Prata-RS, em 10 de dezembro de 1949, filho de Edith Maria e Gelci Antunes de Oliveira. O irmão, Paulo Gerson e a sobrinha Edith também são jornalistas. Seu último casamento foi com Blanca - Guadalupe nasceu dessa união.

Dos relacionamentos anteriores, Leonel, Floriano, Jerônimo, Bruno e Catarina.Ele era  repórter desde 1976. Trabalhou no Diário de Notícias, onde foi chefe de reportagem, Correio do Povo, Coojornal, O Estado SC, Diário Catarinense, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Jornal de Brasília, Istoė Senhor, Veja, TV Cultura SP,  Estadão, Gazeta do Povo, Jornal Já, DCM, Brio Stories.SBS Austrália. Pela matéria "A tragédia de Felipe Klein", publicada no Jornal JÁ, de Porto Alegre, em 2004, conquistou o  Prêmio Esso Nacional de Reportagem. 
Foi o Jornalista do Ano, no Prêmio Press em 2005, e Best Features Writer em 2006 pela Arkansas Press Association.Na última Feira do Livro de Porto Alegre Renan lançou seu único livro: “Em carne viva, com calda de chocolate”, uma coletânea de reportagens.Fez inúmeras coberturas internacionais. Numa dessas foi preso no Irã, em 2001. 
Contou que foi levado para a cadeia, encapuzado e interrogado durante 30 horas. Na época era correspondente da Gazeta do Povo. Ao falar com a redação, disse que estava sendo bem tratado e ainda brincou:. "Me serviram pão, arroz e lentilhas. Preciso mesmo de uma dieta". ... Renan estava em processo de recuperação de um transplante de rim. Em abril deste ano ele postou em sua página no Facebook:




Antes de postar isto aí em cima, ele tinha escrito que estava com uma bactéria no pulmão. Tinha quedas de pressão, mas ia levando.
Estava se tratando com a hidroxicloroquina, por indicação médica, em sua casa em Florianópolis. No dia 19 de abril teve uma parada cardíaca, quando estava sentado ao sol, com a Blanca.
...

Tenho histórias fantásticas dele e com ele.
A mais incrível foi quando cobriu o fenômeno da "maré vermelha" em Hermenegildo. Havia na Secretaria da Saúde do RS (tempo do Jair Soares) apenas UM livro sobre o que tinha acontecido no Balneário. Os jornalistas iam lá, pesquisavam e iam embora. Imagine o que o Renan fez...
Ele tinha um Opalão baleado. Foi a Hermenegildo para investigar o que tinha acontecido na real, inclusive com equipamentos para mergulho.
A matéria? Foi parar na Folha da Tarde.
Em 1978 fui trabalhar como repórter do Diário de Notícias. Era minha estreia no jornalismo. Renan era o chefe de reportagem. Quando escrevi a matéria e entreguei a ele, o cara foi no meu fígado: "Tua matéria tá uma merda! Levanta!" Sentou no meu lugar e escreveu em cinco minutos o que eu deveria ter feito. Texto limpo, certeiro. Quase desisti. Mas voltei e na segunda vez melhorei. Todo dia era assim: quando chegava, ele abria os outros jornais, com a mesma matéria que eu tinha feito. "Qual está melhor?". E eu dizia - evidente que não era a minha - e ele, com um sorriso: "Estás sendo honesto".
Teve também a vez que acampou na frente do prédio da RBS em Florianópolis. Isso mesmo, acampou no gramado com os filhos. Ficou muitos dias lá, até que atenderam o que reivindicava, do tempo que trabalhou no Diário Catarinense.
Uma das últimas vezes que falei "ao vivo" com ele foi quando trabalhou na sede do Psol, na Rua da República, em Porto Alegre. Depois conversamos algumas vezes no Centro.
...

Pra encerrar: dos jornalistas que conheci e trabalhei, o Renan foi um dos três mais brilhantes.





Os textos abaixo foram publicados no site do Jornal JÁ, de Porto Alegre.



A tragédia de Felipe Klein
em 20 de dezembro de 2004




Na noite do sábado 17 de abril, um corpo de aparência incomum foi levado pela polícia ao necrotério da Avenida Ipiranga. Tinha duas protuberâncias esquisitas na testa. O médico-legista abriu o couro cabeludo, abaixou a pele até o nariz e se deparou com algo muito raro: dois chifres implantados na carne, feitos de teflon. Cada um era quase do tamanho de uma barra de chocolate Prestígio.

O cadáver estava todinho tatuado. Trazia argolas de metal nos genitais, mamilos, lábios, nariz e nas orelhas – e estas tinham orifícios da largura de um dedo.

De entre os chifres saíam três pinos metálicos pontiagudos. A língua fora alterada: cortada ao meio e já cicatrizada, parecia a de um lagarto.
É claro que Felipe Augusto Klein, morto aos 20 anos, nem sempre teve uma aparência assim.

Nasceu uma criança saudável. Era o caçula dos cinco filhos do casal Lili e Odacir – o pai é um político influente, quatro vezes deputado federal, ministro de FHC e secretário estadual da Agricultura do governo Germano Rigotto.

Fotos de Felipe no álbum da família mostram a criança típica da classe privilegiada: um menino de cachinhos loiros, olhos azuis, bochechudo, limpo, bem vestido – e, às vezes, sorridente.
Foi na adolescência que ele começou a se mutilar com tatuagens, cirurgias e implantes. Pouco antes de morrer preparava-se para botar nas costas uma pele de lagarto e rasgar sulcos no rosto, para pintar neles uma máscara dos maoris, nativos da Nova Zelândia.



Em sua curta vida Felipe radicalizou em ‘body modification’, a expressão inglesa dos adeptos de mudanças corporais. Nos últimos três anos, todo mês gravou alguma figura nova no corpo, ou se aplicou algum piercing. Para combater as dores provocadas por agulhas e bisturis ele se automedicava.

As dores físicas eram fichinha se comparadas ao espírito atormentado de Felipe. A mãe, as duas últimas namoradas e os dois amigos mais próximos o descreveram como um jovem patologicamente sensível a tudo que o rodeava – e em especial, ao alcoolismo do pai.

‘Eu não sou desse mundo’ era sua frase predileta. Felipe disse que se sentia assim para dona Lili, para Helena, seu grande amor, para Karen, sua última namorada, para Cristiano e Xande, dois tatuadores tão amigos que cada um segurou uma alça do caixão, e para Virgínia, uma amiga que foi ao enterro chorar com a família.

Não dá para saber quando foi que ele começou a se sentir desse jeito. A mãe contou que ‘cedo’ a família percebeu nele ‘alguma coisa diferente’. Por isso, ‘desde pequeno recebeu tratamento psicológico’. Nos dois últimos anos esteve ‘sob o controle de um psiquiatra’.

Os médicos diagnosticaram um mal que surge na adolescência. O ‘transtorno afetivo bipolar’, ou ‘psicose maníaco-depressiva’. Felipe vivia na gangorra entre depressão e euforia, quase sempre no lado da baixa. Era tratado com um coquetel de antidepressivos.

Na literatura médica, a origem do mal é incerta. Pode ser genética, ou despertada por um trauma. O certo é que ‘ele nunca foi uma criança feliz’, afirmou a mãe. Ela não sabe explicar como, entre seus cinco filhos, apenas Felipe teve a sina. ‘O mundo dele era seu quarto e seus bichos, não gostava de jogar futebol, nem de sair’.

Felipe passou a infância em Brasília, onde seu divertimento era colecionar gnomos, seres imaginários de uma lenda nórdica. Na adolescência, já em Porto Alegre, onde terminou o secundário no Colégio Sevigné, aumentaram seus sintomas depressivos.



Por alguns meses fez parte da tribo urbana dos góticos, jovens que se vestem de negro, assumem um ar deprê e desprezam o resto da sociedade – mas se afastou deles porque o pessoal o considerava excessivamente… gótico.

Quando saiu dessa tribo de humanos, ele se voltou mais ainda para seus bichos. Passava dias trancado no confortável quarto que ocupava no amplo apê da família, no edifício El Greco, onde morava com a mãe, uma tia e mais de 20 animais.

Minizôo

No seu minizôo tinha gatos com pedigree, cobras importadas, filhotes de jacaré, tartarugas e lagartos. ‘Ele gostava mais de animais do que de gente’, contou Helena, citando outra frase ouvida dele. Tal paixão o levou a estudar Veterinária na Ulbra, mas logo se desinteressou.

Paixão permanente só por tattoos. A primeira ele fez aos 11, levado pela mãe. Era um sol, na coxa direita. Na adolescência evoluiu de tatuagens inocentes para figuras demoníacas e implantes radicais – já então contrariando os pais.

Pesquisando na internet, Felipe virou autoridade em body modification. Quando começou a fazer experiências no próprio corpo ele apareceu na RBS TV, demonstrando as técnicas. Vaidoso, cortejou cineastas para tentar exibir seu visual em filmes. Já na fase da modification total suas imagens acabaram exibidas ao grande público, mas no Ratinho, numa comparação grotesca com um porco.



Seu visual o transformou numa celebridade na web. No pequeno círculo dos tatuadores ele chegou a jurado de competições internacionais.

Quem o conhecia sabia que era determinado e não temia a dor. Ele mesmo se aplicava alguns piercings, aquelas argolas metálicas que usava no corpo, cuja fixação é um pequeno suplício.

Quando botava na cabeça que faria alguma modification ia em frente. Foi dele próprio a idéia dos chifres. ‘Eu tentei dissuadi-lo dizendo que um dia ele se arrependeria e que então seria doloroso retirá-los, mas ele não ouvia ninguém’, lembrou dona Lili.

Com a decisão tomada, ele estudou os passos da operação em livros de Medicina. Depois, orientou o tatuador que fez a cirurgia.

Nos últimos meses Felipe alimentou a bizarra fantasia de se transformar num animal como aqueles que amava – a idéia era virar um lagarto, aplicando sob a pele das costas bolinhas de silicone que lhe dariam um aspecto enrugado. A língua já estava pronta, dividida numa operação feita por um dentista de Taquara.

No final de março Felipe anunciou a meta de implantar a máscara maori e virar lagarto, coisas que o deixariam irreconhecível. Ninguém duvidou da possibilidade. Mas era tarde. Ninguém pôde mais fazer coisa alguma por ele, exceto assistir sua dolorosa renúncia à humanidade.

Polícia não consegue depoimento do pai

A primeira pessoa a ver Felipe morto foi Tadeu, porteiro do edifício Palácio, onde morava Odacir Klein. Ele contou que estava no saguão quando ouviu ‘um grito e um baque’. Caminhou até o muro que dá para o edifício Santa Maria e viu o corpo do rapaz estatelado no depósito de lixo do prédio vizinho.

Eram 18h56min do sábado 17 de abril. Tadeu chamou a polícia.

Quase três meses depois, a polícia ainda não tinha concluído o inquérito para apurar se Felipe se atirou, ou caiu, ou foi jogado do apto 903, o quarto e sala do pai no nono andar do Palácio, no 888 da Duque de Caxias.

Só pai e filho estavam no apartamento na hora da morte – e o pai não deu depoimento. Alguns jornais divulgaram que alguém vira Felipe no parapeito momentos antes da queda. Tal testemunha confirmaria suicídio, mas ela nunca existiu.



Quem esteve muito próximo da cena, mas também nada viu, foi Lucas, um estudante que mora no oitavo andar do prédio vizinho, quase janela com janela com o apê onde estava Felipe. Ele apenas ouviu o mesmo grito e baque escutados pelo porteiro.

Por determinação superior, a investigação da morte de Felipe não foi para a delegacia do bairro, como sempre acontece com cidadãos comuns, mas sim para a especializada em homicídios.

O delegado Márcio Zachello, encarregado do inquérito, disse que ‘a investigação contempla todas as possibilidades’, mas trabalha mais com a hipótese de suicídio. Ele promete concluir a apuração ‘em breve’. Três são as principais evidências de suicídio. A primeira é que o corpo de Felipe foi encontrado a 11 metros de distância do prédio do Palácio, sinalizando que ele teria tomado impulso.

A segunda foi a constatação de que o pai estava quase inconsciente na hora da tragédia, bêbado demais para qualquer ação violenta. Examinado pelo Departamento Médico-Legal, ele tinha 26 decigramas de álcool por litro de sangue, numa escala onde seis é o limite legal da embriaguês.

A terceira é o depoimento da namorada, a estudante Karen, 20 anos. Ela disse às autoridades que os dois tinham um pacto de suicídio. Karen desistiu da idéia quando eles discordaram sobre formas indolores de morrer – Felipe gostava de se flagelar.

Ainda faltam duas peças para a conclusão do inquérito. O laudo da perícia feita no local pelo Instituto de Criminalística e o depoimento do pai. Ele já disse a familiares e amigos que não se lembra de nada do ocorrido naquela noite.

Filho cuidava de Odacir

Era Felipe quem cuidava do pai quando este bebia demais. ‘Meu filho se preocupava com o que pudesse acontecer com Odacir’, contou dona Lili. ‘Ele sempre tentava protegê-lo’.

O drama do alcoolismo foi vivido em segredo pela família durante anos, até ser exposto em rede nacional de TV, em 1996. Odacir, então ministro dos Transportes, voltava de uma festa com o filho mais velho, Fabrício, quando este atropelou e matou um operário, em Brasília. Os dois fugiram sem prestar socorro à vítima, mas alguém anotou a placa do carro e eles foram descobertos. O ministro estava embriagado. Com a repercussão do caso ele renunciou ao cargo.

No últimos anos Odacir fez vários tratamentos, alternando períodos ruins com outros de sobriedade. No ano passado, se separou da mulher e foi viver na mesma rua, a um quarteirão. Quando estava em dia ruim, assessores levavam documentos oficiais para que ele os assinasse em casa.

Última hora

Passava das 5 da tarde daquele sábado quando Felipe saiu do apê da mãe, atravessou a Praça da Matriz e caminhou até o do pai. Àquela hora a família sabia que Odacir estava alcoolizado – e o filho cumpriria pela última vez a tarefa de cuidar dele.

‘Quando meu filho saiu eu fiquei rezando o terço libertário. Pedi a Jesus para proteger e libertar os dois’, disse dona Lili – ela não derramou uma lágrima sequer durante 40 minutos de entrevista, numa manhã de junho.



Felipe chegou no edifício do pai e o esperou no saguão. Odacir apareceu pouco antes da seis, cambaleando. Caiu no portão. O zelador Gérson e o porteiro Tadeu tiveram que carregá-lo.
Os dois levaram Odacir para o elevador. Na curta viagem, Gérson notou que ele se contorceu de dor, provocada por um forte beliscão que Felipe lhe aplicara nas costas.

‘Eu disse para ele parar de judiar do doutor Odacir’, contou Gérson. Felipe rebateu: ‘Ele só nos faz passar vergonha’. A frase do rapaz com o rosto desfigurado soou estranha para o zelador: ‘Vinda de quem vinha, parecia piada, mas notei que ele estava muito nervoso e fiquei quieto’.

No apê, Felipe ordenou que os dois atirassem o pai no chão, mas Gérson não aceitou: ‘Mandei ele abrir a bicama da sala e o deixamos ali’.

O que aconteceu depois não teve testemunhas. Vizinhos ouviram pai e filho discutindo, gritos abafados por portas fechadas. Às 18h56, a queda.

A polícia chegou logo depois. Odacir aparece sem camisa nas fotos do inquérito, descabelado. Num relatório do SAMU os paramédicos atestaram que ele estava ‘com hálito etílico, fala arrastada e movimentos desorientados’, mas sem ferimentos, exceto pequenos arranhões.

Uma parente passou pela rua, viu o rebuliço, ouviu o zum zum zum e correu para a casa de dona Lili – ainda sem saber quem tinha morrido. ‘Eu pensei que tinha sido o Odacir’, disse depois dona Lili. ‘Quando entrei na sala e o vi de pé, entendi que era Felipe’.

Ela ainda teve coragem para ir à janela e olhar para baixo. O filho estava de bruços, com as pernas quebradas, os pés torcidos para fora e os braços abertos em cruz.

Serenidade

Dona Lili disse que já temia que o filho se matasse e mostrou dois sinais: ‘Uma semana antes ele me deu uns óculos que eu gostava e distribuiu os bichos’. Tutankamon, o gato persa preferido, e Corn Snake, uma cobra americana, foram para o amigo Xande, tatuador em Camaquã.

A mãe disse que agora se sente serena porque ‘ele sempre teve tudo o que queria, toda a ajuda que precisava. Não adiantou. Acho que ele estava muito avançado para nós, noutra dimensão’.
Ela buscou apoio num grupo de pessoas que também perderam parentes: ‘Com eles a gente pode falar, explicar e entender tudo’.

Dona Lili e o resto da família decidiram armar uma barreira de silêncio. Todos temem que o incidente possa prejudicar a candidatura do irmão Fabrício à Câmara de Vereadores.
Recuperado do choque, Odacir retomou o trabalho, até viajou para a China na comitiva do governador. A tragédia uniu outra vez Lili e Odacir – ele voltou para casa, nunca mais pisou no apê onde Felipe morreu.

Rebeldia no enterro

Felipe fez parte de um grupo gótico freqüentador do estúdio Tattoo Company, da rua Duque. A musa do pessoal era a pintora Sílvia Motosi, uma Frida Kahlo dos pampas, cujos trabalhos estão expostos este mês na Usina do Gasômetro – amiga de Felipe, tatuada no mesmo estúdio e pelo mesmo tatuador, ela se matou em 2002, do mesmo jeito: saltando da janela do apê da família.

Quando menino Felipe era como um mascote da turma, composta por gente bem mais velha. Na adolescência era cliente compulsivo. Finalmente, quando já estava todo tatuado, virou garoto-propaganda da casa. O pessoal de lá elogiava muito seu visual – ele se sentia estimulado e ia cada vez mais fundo.

Um tatuador do estúdio era seu confidente. Quando não estava se tatuando, Felipe aparecia com amigos para quem oferecia os serviços do estúdio. Por algum tempo a mesma turma se reuniu no atelier da arquiteta Roberta, uma notável na tribo, para discussões sobre body modification, universo gótico e a arte da tatuagem, considerada por eles ‘tão efêmera quanto a vida’.

Ainda adolescente ele serviu de modelo num calendário gótico. Na última página Felipe exibe o corpo com a palavra ‘alone’ (sozinho), enquanto abraça a arquiteta – ela hoje tem 32 anos, vive na Áustria.

Uma série de fotos feitas pela produtora de moda Marion Velasco, com a participação de modelo Priscila Burman, é emblemática do visual chocante de Felipe mesmo antes do implante de chifres.
Seu corpo estava coberto por tatuagens aparentemente sem sentido. A mais dramática era uma face demoníaca no peito. Exibia cemitérios, dragões, flores, máscaras, frases completas – uma delas, em alemão, dizia ‘solidão para sempre’.

Para quem se sentia sozinho em vida, Felipe teve um enterro superconcorrido. Com a presença do governador Germano Rigotto, do senador Pedro Simon e até de adversários políticos do pai, como o ex-governador Alceu Collares, a cerimônia acabou atraindo centenas de pessoas e muitos jornalistas – foi tudo, menos discreta.

Os amigos do lado gótico dele não gostaram de ver tantos políticos no velório. Virgínia contou que um grupo de tatuadores, ela junto, ‘se posicionou entre o caixão e os políticos durante alguns minutos, tenho certeza que Felipe gostaria do que fizemos para protegê-lo’.

As diferenças entre família e tatuadores apareceram também no convite para enterro, com dois textos. Um falando que o menino foi acolhido por Jesus e Maria. O outro dizendo que ‘no mundo de Felipe não pode haver maldade’. Houve um pequeno momento de constrangimento entre as duas turmas, episódio relatado por Virginia. A irmã dele, Fernanda, estava fazendo um agradecimento público aos tatuadores, dizendo ‘vocês eram sua verdadeira família’, quando foi brecada pela mãe: ‘Não filha, ele nos amava, nós é que éramos sua família’ – dona Lili falou com a autoridade de quem mais o conhecia.

Felipe levou consigo algumas de suas bizarrices. No dedo anular direito, um anel em forma de esqueleto. No pescoço, uma corrente com seu inseparável bisturi. Virgínia meteu um broche no caixão, em sinal de amizade eterna. Karen, a última namorada, botou uma vaquinha nas mãos dele, certa de que seu amor só estaria feliz na companhia de algum animal.

Felipe foi enterrado no cemitério São Miguel e Almas. Virgínia reclamou da aparência prosaica do túmulo, queria ‘alguma coisa medieval’, que ela julgava seria mais ao gosto gótico do morto.

A tumba acabou adornada por um singelo bibelô de gesso, com a figura de um anjo montado num escorpião. A mãe mandou gravar uma frase na lápide, citando o martírio de Jesus no Calvário: ‘Nos precedestes na luz’.

Amor no Rio de Janeiro foi raro momento de paz

Felipe conheceu o amor. Foi em outubro de 2001, numa convenção de tatuadores, em São Paulo. Aos 18 anos, branquelo e magro, 1m80 e ombros largos, ele atraiu Helena, sete anos mais velha, branquela e cheinha, 1m66. Ela só se aproximou dele dias depois, no protocolo jovem: via email.

Já em Porto Alegre, ele respondeu dizendo que também a tinha notado. Pediu uma imagem para conferir. E gostou da mulher que não fazia o tipo deprê. Carioca criada no Leblon, filha de uma professora de Literatura Francesa e formada em Publicidade, ela trabalhava numa produtora de filmes.

Superocupada, só teve tempo de vir a Porto Alegre na virada de 2002. Na noite de Ano Novo os dois ficaram. Ela jura que ‘foi um sonho’.

Helena se disse atraída ‘porque ele era muito bonito antes das modificações’, além de ser ‘mais sério do que muita gente mais velha’. Ela o achou então ‘longe de ser deprê’ e que seu figurino ‘era menos extremo’. No carnaval Felipe foi pro Rio.

Por alguns dias Helena ia trabalhar com Felipe a tiracolo. Ele ficava rolando nas locações, esperando pelo tempo livre dela. Os dois tomavam muito sorvete na lanchonete Chaika, em Ipanema. Ela engordou alguns quilinhos, ele não, ela acha que é porque ele ‘era magro de ruim’.

Helena estava apaixonada. Elogiou Felipe como ‘tudo, menos um amador’. Ela topou mudar-se para Porto Alegre. Em março de 2002, veio morar com ele, a mãe, a tia e a bicharada dele. ‘Foi um tempo legal. A gente via desenhos animados, assistia filmes sobre Medicina no Discovery. Às vezes, ele inventava coisas na cozinha, era bom em massas’, recorda a moça.

O relacionamento foi crescendo e as diferenças aparecendo. Helena: ‘Ele dizia que queria ser cada vez menos humano. Sentia ódio da raça humana. Detestava pessoas gananciosas e as que buscam notoriedade’. A ex-namorada lembra que ‘uma coisa muito dele era sofrer quando via gente fazendo coisas ruins, uns passando por cima de outros para aparecer’. Ela dizia ‘esquece isso, vamos nos divertir’, mas parece que ele ‘não era disso, levava as coisas até o fim’.

Mais Helena: ‘Eu acho que é por isso que ele se matou. Ele queria ser o menos humano, mas ao mesmo tempo encarava todos os problemas. Se você encara, como é que vai sobreviver ? O suicida é aquele que não vê uma saída. E Felipe era assim’.

Ela disse que ele demonstrava ‘grande preocupação com o pai. Quando ele sofria suas crises de alcoolismo, Felipe era o mais prestativo. Tomava a iniciativa de ajudá-lo, mas na volta se via que ele sofria. Ficava quieto num canto, muito triste’.

Num momento de depressão Felipe disse a Helena que gostaria de ser internado. ‘O psiquiatra não concordou e receitou Lexotan’, conta a ex-namorada. Depois de um ano trancada no quarto com Felipe, ela foi embora: ‘Nenhuma história de amor dura para sempre’ e ‘eu precisava trabalhar’ foram suas razões.

Nos primeiros meses separados ele foi muito ciumento. ‘Eu passei a ficar em casa, no Rio, para não desagradá-lo. Mas depois ele entendeu e me disse para desencanar, não queria nada ruim assim no nosso relacionamento’.

Felipe também seguiu adiante. No início, queixou-se para Cristiano da separação. Depois arrumou outra namorada, mas reclamava que ela ‘pegava no pé por picuinhas’. Não queria ficar sozinho e seu lema passou a ser ‘antes mal acompanhado do que só’. Nunca escondeu sua paixão e a falta que Helena lhe fazia.

Depois da morte, Helena foi chamada pela família – ela não o vira durante a fase final de modificações corporais. Um carro oficial foi esperá-la no aeroporto e o enterro atrasado para sua chegada.

Virgínia disse que a viu no caixão, serena, repetindo baixinho para o morto, com ternura: ‘Me desculpe. Se eu não tivesse ido embora você ainda estaria vivo’.
Agora é tarde, Felipe Augusto foi na frente. Nos precedeu na luz.


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Falta abrir a caixa preta
em 1º de dezembro de 2007




Existem falências e falências na economia brasileira. Mas nenhuma tem os ingredientes da monumental derrocada daquela que foi a primeira empresa aérea do país, a maior da América Latina e a 15ª do mundo.

A Varig conseguiu quebrar mesmo faturando US$ 1 bilhão por ano. Caiu na mão de especuladores estrangeiros pela bagatela de US$ 24 milhões. Eles a revenderam para a Gol por US$ 320 milhões.

Mesmo parecendo um negócio bem amarradinho, ele ainda pode gorar. Vai depender dos resultados da CPI do Apagão. Para usar linguagem aeronáutica: se a CPI conseguir abrir a caixa-preta da Varig, pode encontrar provas de que houve intervenção indevida do governo e corrupção no Judiciário para favorecer os investidores estrangeiros que serviram de intermediários da compra pela Gol.

Por 80 anos a Varig cruzou os céus e as crises econômicas do país. Foi pilotada pelas melhores cabeças do empresariado nacional – e mesmo sendo a marca mais conhecida do Brasil caiu com um rombo de quase R$ 8 bi.

Na quebra, arrastou o fundo de pensão dos empregados, outrora uma potência. Deixou quase 20 mil credores na chuva. Não pagou impostos. Deu o calote nos salários, FGTS e aposentadorias de 9 mil trabalhadores – é de se pesquisar se não se trata do maior caso de fraude trabalhista do continente.

Esta falência anunciada esteve no radar de empresários, políticos e juízes desde a década de 90. Leonel Brizola e Yeda Crusius, Aécio Neves e José Serra, Lula e Zé Dirceu, Dilma e Onix Lorenzoni, FHC e Collor – todos, em algum momento, deram seus pitacos para tentar corrigir a rota da companhia.

Nada funcionou. Em 2005, embarcou na viagem o vivaldino empresário chinês Lap Chan, testa-de-ferro do fundo de especuladores americano Matlin-Patterson.

Manobrando entre a nata da inteligência econômica brasileira, ele conseguiu a mágica de desmembrar a Varig da Fundação Ruben Berta para comprar a parte boa pelos US$ 24 milhões, em julho de 2006, para revendê-la pelos US$ 320 milhões, em março.

Esta manobra, rara até no mundo dos grandes negócios, nem foi ainda bem explicada e já parece assimilada pelo mercado – só ressalvando que a CPI ainda não decolou. Os donos da Gol compradora estão sendo incensados pelas revistas de economia como gênios da década.

Na quinta 26 de março, quase um ano depois da quebra e apenas um mês após a venda para a Gol, outra CPI, então aparentemente inofensiva, conduzida pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, se antecipou e pediu à Justiça a quebra do sigilo bancário e fiscal do chinês e do juiz carioca Luiz Ayoub, que autorizou o negócio (lembrando que a Varig foi vendida na primeira vez num leilão judicial conduzido por ele).

Juiz suspeito? O homem se sentiu ofendido e processou os deputados. Seu protesto foi abafado pelo escândalo da venda de sentenças pelos colegas.

Na mesma quinta, o Superior Tribunal de Justiça condenou a União a pagar a indenização de R$ 3 bilhões à Varig por prejuízos causados pelos planos econômicos de governos anteriores.

Se e quando tal sentença passar pelo STF, e quando for corrigida para quase R$ 7 bilhões, e se for paga pelo governo (que deverá descontar seus impostos….), o céu vai ficar nublado outra vez. Quem vai levar a bolada? A quebrada Fundação Ruben Berta? A Gol? É bom saber logo, antes que o chinês leve tudo.

Astúcias de um chinês chamado Lap Shan

Nos bons tempos a Varig mantinha 450 vôos diários, um enorme desafio logístico vencido com eficiência e classe: o serviço de bordo chegou a ser o melhor da aviação internacional. O luxo acabou com a chegada da Era do Amendoim com Barrinhas de Cereal.

A crise pintou no horizonte nos anos 90, quando ela estava bem de saúde e com muita gordura para queimar: tinha frota própria com 100 aviões e U$ 2,4 bilhões de patrimônio líquido positivo. No dólar de hoje, seriam 4 bilhões e 800 milhões de reais.

A Varig começou a quebrar quando perdeu o monopólio dos vôos internacionais. Os executivos da época foram sendo abatidos pelo preço da gasolina, por crises internacionais, pela competição com a concorrência e até por seus próprios umbigos: a empresa trocou seis presidentes em cinco anos.

Em uma década voando sem rumo a Varig vendeu a frota. E passou a alugar aviões. Assim, queimou a gordura de US$ 2,4 bilhões. Pior: abriu um rombo de US$ 2,5 bilhões. Gordura e rombo somados, ela perdeu quase US$ 5 bilhões, média de 500 milhões de dólares anuais de prejuízo.

De onde saiu tanta incompetência gerencial? No mundo dos grandes negócios dá para viver por anos rolando esta dívida. No da Varig seria barbada porque até em seu pior momento, março de 2006, ela ainda faturava 100 milhões de dólares por mês, US$ 1,2 bi por ano.

Com este dinheiro até um gerente medianamente inteligente seria capaz de rolar a dívida principal e ir cozinhando a crise por décadas: daria para esperar até a possível abertura de uma rota espacial para Marte, quando a empresa teria foguetes e se credenciaria para fazer tal viagem.



Mas não. Dando tiros e mais tiros no próprio pé, em novembro de 2005 a Varig vendeu sua subsidiária de carga VarigLog para o espertalhão chinês Lap Chan (foto)

Ele pagou US$ 69 milhões. Mas a VarigLog vendida levava junto uma dívida de US$ 153 milhões com a própria Varig, por serviços de transporte já realizados. Logo, a VarigLog valia os 69 pagos e mais os 153. Sacaram a operação? Seria tão bom como comprar um carro usado, cheio de barras de ouro no porta-malas.

Tendo feito este primeiro negócio com a Varig, o chinês ficou bem perto da garganta da empresa, preparando-se para beber seu sangue.

Os executivos brasileiros não enxergaram o vampiro voando na sala? Parece que não, porque logo o chinês se ofereceu para comprar o dinheiro em caixa da Varig…

Isto mesmo. Comprar dinheiro! E pagar com dinheiro. É duro de entender mas fácil de explicar: a Varig vendia uma passagem por 1.000 reais no cartão de crédito, para receber no fim do mês. O chinês pagava, adiantado, 500 pelos mil, aí Varig não precisava esperar o fim do mês.

Assim, a partir de dezembro de 2005 ele começou a comprar estes créditos futuros (as vendas de janeiro por cartão de crédito, dinheiro bom em poder das administradoras de cartões Visa e Mastercard).

Enforcada, a Varig foi vendendo seu dinheiro de caixa até junho, quando não tinha mais nem para pagar gasolina dos aviões. O dinheiro bom dela estava todo com Chan.

Aí Chan, já dono de uma parte da Varig, tentou comprar toda companhia por mais 400 milhões de dólares. Prometeu que se comprasse faria aparecer dinheiro para gasolina – imagine o vampiro guloso já agarrado no pescoço, mas procurando mais uma veia da vítima.

Não adianta agora demonizar o chinês. Ele é apenas um intermediário. Todo mundo sabia que ele não tinha um tostão furado. O dinheiro usado por ele para estas manobras veio do fundo Matlin-Patterson. De quem é o fundo? De grandes companhias aéreas americanas e de fundos de pensões do primeiro mundo. É o tipo fundo-abutre, que se nutre de empresas mal das pernas, comprando-as por uma ninharia, para revendê-las com lucro.

Quando o chinês fez a proposta dos US$ 400 milhões, os credores e os empregados da Varig sentiram o cheiro do golpe.

Os credores temiam que se Chan comprasse não receberiam suas dívidas, os empregados sabiam que ficariam sem salários.

Foi aí que entrou na briga esta honrada instituição brasileira chamada Justiça.

Três juízes da Vara de Falências do Rio de Janeiro (escolhidos porque é lá que a Varig tinha sede) passaram a acompanhar um processo de recuperação judicial, novo nome da concordata, falência, quebradeira.

Era muita areia para três cabeças sem dinheiro, sem nenhum traquejo pros negócios e assoberbadas por milhares de outros processos.

Eles deveriam achar solução para o megacomplexosuperproblema que por 15 anos consumiu a inteligência nacional – e rápido, porque o chinês estava com sede.

Emergiu desta trinca o juiz Luiz Ayoub, agora uma celebridade nacional. Ele bolou a solução de leiloar a Varig pela melhor oferta. Seria um processo transparente. Chamou as TVs e comandou o show de martelo na mão.



Os empregados formaram um consórcio batizado TGV (Trabalhadores do Grupo Varig) e se apresentaram.

Como lastro usaram seus créditos trabalhistas, as contribuições no fundo Aerus, dinheiro do banco USB e apoio logístico da Lan Chile.

Veio o leilão. O chinês não fez nenhum movimento. Os empregados fizeram uma proposta e venceram.

Nas duas semanas entre a vitória e o pagamento o governo entrou no rolo, consumando uma intervenção no fundo Aerus – com a medida, ele tirou o lastro dos empregados.

O juiz anulou o leilão e fez outro. Quem se apresentou desta vez? Não precisa ser gênio da economia para saber que foi o chinês. S.o.z.i.n.h.o! Ele, que tinha oferecido US$ 400 milhões pela empresa (aquela proposta recusada), que não participara do primeiro leilão, ainda estava interessado.

Como é que ele sabia que os empregados iriam ganhar e depois perder? Mistérios vampirescos. Esperando quieto, entrou sozinho no segundo leilão e nem precisou pagar os US$ 400 milhões, bastou oferecer 24. E levou.

Até seu Otto deve se revirar na tumba.

Faxineiro que chegou à presidência previu o fim

Os mais antigos varigólogos dizem que a Varig só foi bem administrada no tempo do seu Otto. Otto Ernest Meier. O imigrante durão que trouxe um avião da Alemanha e plantou as raízes do império do ar, no Rio Grande do Sul, em 1927.

O negócio parecia ir bem. Vapt vupt, Otto perdeu tudo. Dizem historiadores gaúchos que ele tinha uma queda por Hitler e por isso o presidente Getúlio Vargas manobrou pra tirá-lo do comando. Empresários turbinados pelo dinheiro público do Rio Grande assumiram o controle da companhia em 1941.

Na escala de 1945 a Varig sem Otto estava quase quebrada. Como avião era novidade, o empresariado gaúcho optou por doar o que sobrou do patrimônio para os empregados, voltando-se outra vez para carnes e couros – bota visão nisso.



Sob inspiração do primeiro faxineiro, Ruben Martin Berta (foto), alçado a top executivo, foi criada uma fundação para gerenciar a companhia. Era para ser uma inovação democrática, último passo antes e o mais parecido com a tomada do poder pelos trabalhadores.

A fundação nasceu sem oposição porque era uma titica. Ninguém poderia imaginar que ela cresceria a ponto de ser um rabo tão grande capaz de balançar o cachorro.
Berta profetizou que a Varig gerenciada pela fundação só poderia quebrar se e quando os empregados (que em tese a dirigiriam) quisessem – quando ele morreu, em 1966, ela foi rebatizada com seu nome, aqui abreviado para FRB.

O homem não imaginava que antes do colapso final o Brasil produziria Fernando Collor. Em 1990, o presidente abriu o mercado da aviação nas rotas internacionais, dando o primeiro golpe na Varig.

Em 91, ainda sem se dar por vencida, a empresa encomenda novos aviões da Boeing e tenta decolar. Veio a Guerra do Golfo e com ela disparam os preços do petróleo, pinta uma recessão.

Ela vende seus aviões para bancos e empresas que alugam aviões. Passa a pagar aluguel para o que antes fora seu – pode tal ideia?

Depois de Collor, Fernando Henrique botou o segundo prego no caixão, com sua desvalorização do Real de 1999.

Em 2001 a moribunda passou a sofrer concorrência da Gol no mercado interno. Foi justo o ano do atentado de 11 de setembro, paralisando o setor aéreo. As dívidas da Varig aumentaram, a pequena Gol sentiu menos o golpe e tomou-lhe a freguesia.

A FRB continuou viva, até porque ela só existe para proporcionar benefícios sociais aos empregados da Varig. Quando não mais o fizesse deveria ser extinta, conforme seus estatutos e a Lei das Fundações.

Pelo receituário neoliberal, a FRB representa o passado glorioso e o presente fracassado da Varig por ter administrado a empresa privada como sendo uma estatal ineficiente.

No mercado, seus administradores eram vistos como nadando em mordomias, enquanto geriam a empresa com incompetência, para dizer o mínimo.

Até a quebradeira, a FRB era um INSS com dinheiro. Tinha a cia aérea para gerenciar e tirar dela lucro para pagar benefícios médicos, suplementar aposentadorias e até financiar casa aos empregados.

Atenção para um erro comum: os empregados nunca foram donos da Varig. Não tinham cotas, nem ações. E também não eram donos da FRB. A fundação é que era dona de tudo. Os empregados eram apenas isto: empregados.

Sem patrão, quem mandou na Varig na era pós herr Otto? O Colégio Deliberante da FRB. E depois dele o Conselho Curador da FRB, escolhido pelo Colégio, que por sua vez indicava o Conselho. Complicado, né? Bem, é mais fácil explicar como a Santa Sé escolhe o colégio cardinalício e os papas, inclusive com a composição química da fumaça branca que avisa a escolha do novo pontífice.

Alheios às lutas pelo poder dentro do Colégio e do Conselho, alheios também aos atos da diretoria da Varig, os empregados tinham a vida garantida pela FRB – com promessa de amparo vitalício pelo seu fundo de pensões, o Aerus, fundo este resultado de aplicações financeiras das épocas de vacas gordas.

Por três décadas foi quase tão seguro e confortável ser da Varig quanto ser empregado do Banco do Brasil ou da Petrobras.

Entre os anos 80 e 90 a Varig entrou na zona de turbulência do setor aeronáutico internacional e começou a se…modernizar. Dividiu-se, criaram-se subsidiárias, empresas agregadas, afiliadas, associadas, formou-se um cipoal de controladas, vendidas e arrendadas, hangares e hoéis, tanta coisa que só com bússola para se saber aonde ela ia. E a FRB inchou mais do que repartição pública às vésperas de eleição.

Quando a Varig quebrou em março do ano passado, seus 11 mil empregados ficaram órfãos. Mais da metade deles até hoje não conseguiu voltar ao trabalho. Desde a quebradeira a Aerus está pagando os benefícios com vales.

O generoso fundo de pensão minguou, acabou sob intervenção do governo. Seu futuro tem a mesma segurança de uma caixa de fósforos vazia na sarjeta em dia de enxurrada – no fim de abril dezenas de pensionistas e aposentados que tiveram benefícios cortados realizaram uma maratona de protestos nos aeroportos Congonhas, Galeão e Salgado Filho.

Até a criação da CPI do Apagão, a Assembléia do Rio de Janeiro foi a única tribuna popular interessada no futuro da companhia aérea nascida no RS. Mas isso porque o Rio também tomou um calote da Varig. O estado pagou R$ 240 milhões em ICMS recolhido indevidamente para que a empresa continuasse operando e assim mantendo empregos na Cidade Maravilhosa. Aí ela quebrou, vendeu a parte boa e se mudou para São Paulo, num calote dentro do calote.

Os empregados que perderam as vagas sofreram também uma pequena humilhação: em entrevista a uma revista, os novos controladores disseram que só estavam levando para a nova Varig “aqueles empregados que tratavam bem os passageiros” – parece que dois em cada três da turma posta na rua só estava de uniforme para destratar viajantes.

A Varig quebrada e mudada para Sampa encolheu quase ao tamanho que tinha quando era comandada pelo faxineiro, que assim viu cumprida sua profecia: “Os empregados vão acabar com ela”.


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