Sexta, 11 de setembro de 2020




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA





Escreva apenas para






especial

Nesta sexta, uma cesta 
de João Ubaldo Ribeiro!


O sorriso do povo brasileiro!







Faço tudo que me dá na cabeça, não quero saber de limitações. Eu não pequei contra a luxúria. Quem peca é aquele que não faz o que foi criado para fazer.


A vida devia ser duas; uma para ensaiar, outra para viver a sério. Quando se aprende alguma coisa, está na hora de ir.


Ah, Senhor, os dias correm vagarosos como caramujos, os anos não perduram mais que uma fagulha, o passado não acaba nunca.







João Ubaldo Ribeiro (João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro) foi um maravilhoso baiano, de Itaparica, que nasceu em 23 de janeiro de 1941. Foi escritor, com obras adaptadas para a TV e cinema. Seu romance mais famoso é Viva o Povo Brasileiro, que foi samba-enredo pela escola de samba Império da Tijuca, no Carnaval de 1987.



 João nasceu na casa do avô materno e quando completou dois meses a família mudou-se para Aracaju, onde passou parte da infância. Seu pai, Manuel Ribeiro, advogado, veio a ser o fundador e diretor do curso de Direito da Universidade Católica de Salvador. Teve mais dois irmãos: Sônia Maria e Manuel.                                                                                                            
Incentivado por seu pai leu autores como Padre Antônio Vieira, Padre Manuel Bernardes, Shakespeare, Homero, Miguel de Cervantes, Machado de Assis e José de Alencar.
O pai, por ser professor, não suportava a ideia de ter um filho analfabeto e João iniciou seus estudos com um professor particular, em 1947. Alfabetizado, ingressou no Instituto Ipiranga, em 1948, ano em que leu muitos livros infantis, principalmente a obra de Monteiro Lobato.

Em 1951 ingressou no Colégio Estadual Atheneu Sergipense, em Aracaju. Informava ao pai, diariamente, sobre o que havia lido e algumas vezes era obrigado a resumi-los. Afirma ter feito essas tarefas com prazer e, nas férias, estudava também o latim. Seu pai era chefe da Polícia Militar, e nessa época, passa a sofrer pressões políticas, o que o faz transferir-se com a família para Salvador. Na capital baiana João Ubaldo é matriculado no Colégio Sofia Costa Pinto. Em 1955 matriculou-se no curso clássico do Colégio da Bahia, conhecido como Colégio Central, onde conheceu seu colega Glauber Rocha.

Em 1958 iniciou seu Curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, o qual concluiria em 1962. Em 1959, entrou para o curso do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Exército no CPOR da Bahia, mas não chegou a completá-lo: escolhido para compor um grupo de estudantes convidado para uma viagem para os Estados Unidos, na volta ao quartel foi desligado.

Em 1964, João Ubaldo parte para os Estados Unidos com uma bolsa de estudos para fazer seu mestrado em Ciência Política na Universidade do Sul da Califórnia.

Antes, em 1957 estreia no jornalismo, trabalhando como repórter no Jornal da Bahia, sendo depois transferido para a Tribuna da Bahia, onde foi editor-chefe. Editou juntamente com Glauber Rocha, revistas e jornais culturais e participa do movimento estudantil (1958). Colaborou em O Globo, Frankfurter Rundschau (na Alemanha), Jornal da Bahia, Die Zeit (Alemanha), The Times Literary Supplement (Inglaterra), O Jornal (Portugal), Jornal de Letras (Portugal), O Estado de S. Paulo, A Tarde e muitos outros.  
  

Seu primeiro casamento foi em 1960 com Maria Beatriz Moreira Caldas, sua colega na Faculdade de Direito. João passou boa parte de sua vida no exterior, nos Estados Unidos (como estudante e, posteriormente, como professor convidado), em Portugal (editando em parceria com o jornalista Tarso de Castro a revista Careta) e na Alemanha (publicando crônicas semanais para o jornal Frankfurter Rundschau, além de produzir peças para o rádio).

Voltou ao Brasil em 1965 e começou a lecionar Ciências Políticas na Universidade Federal da Bahia. Ali permaneceu por seis anos, mas desistiu da carreira acadêmica e retornou ao jornalismo. Em 1969 casou-se com a historiadora Mônica Maria Roters, com quem teve duas filhas, Emília e Manuela. O casamento acabaria em 1978. Em 1980 casou-se com a psicanalista Berenice Batella, com quem teve dois filhos, Bento e Francisca. Participou, em Cuba, do júri do concurso Casa das Américas, juntamente com o critico literário Antônio Cândido e o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri. 




Voltou a residir no Rio de Janeiro em 1991 e, em 1994, é eleito para a Academia Brasileira de Letras. Participou no mesmo ano da Feira do Livro de Frankfurt, recebendo o Prêmio Anna Seghers, concedido somente a escritores alemães e latino-americanos.


João Ubaldo, Glauber Rocha, Calasans Neto
Sante Scaldaferri, Paulo Gil de Andrade Soares

Em 1963 escreveu seu primeiro romance, Setembro Não Faz Sentido, com prefácio do colega Glauber Rocha e apadrinhamento de Jorge Amado. O título original seria A Semana da Pátria, mas por sugestão da editora, João alterou o título.




A Editora Civilização Brasileira lança, em 1971, o romance Sargento Getúlio, feito que garantiu a João o Prêmio Jabuti de 1972 concedido pela Câmara Brasileira do Livro, na categoria "Revelação de Autor". Segundo a crítica da época, o livro contém o melhor de Graciliano Ramos e o melhor de Guimarães Rosa.




Publicou, em 1974, o livro de contos Vencecavalo e o outro povo, cujo título inicial era A guerra dos Pananaguás, pela Editora Artenova. Com tradução feita pelo próprio autor, vários romances tornaram-se famosos no exterior, entre eles o Sargento Getúlio que, lançado nos Estados Unidos em 1978, ganhou receptividade pela crítica. Em 1981 muda-se para Lisboa, Portugal e, voltando ao Brasil, publica Política - livro ainda adotado em faculdades e Livro de histórias, reeditado em 1991, que passa a incluir os contos "Patrocinando a arte" e "O estouro da boiada", e recebe o novo título de Já podeis da pátria filhos. Nesse mesmo ano, inicia colaboração no jornal O Globo. Sua produção jornalística dessa época foi reunida em 1988 no livro Sempre aos Domingos.

Em 1982 inicia o romance Viva o Povo Brasileiro (intitulado primeiramente como Alto lá, meu general). Nesse ano, participou do Festival Internacional de Escritores, em Toronto, Canadá. Viva o Povo Brasileiro é finalmente editado em 1984, e recebe o Prêmio Jabuti na categoria "Romance" e o Golfinho de Ouro, do Governo do Rio de Janeiro. Inicia a tradução do livro para a língua inglesa, tarefa que lhe consumiu dois anos de trabalho, a partir do qual preferiu utilizar o computador.

Ao lado dos escritores Jorge Luis Borges e Gabriel Garcia Marquez, participa de uma série de nove filmes produzidos pela TV estatal canadense sobre a literatura na América Latina.




Em 1983, estreia na literatura infanto-juvenil com o livro Vida e Paixão de Pandonar, o Cuel. Em 1989 lança o romance O sorriso do lagarto. Sua segunda experiência na literatura infanto-juvenil apresenta-se em 1990 com o livro A Vingança de Charles Tiburone.
Neste ano João participa do já citado Frankfurter Rundschau e, retornando em 1991 fica no Rio de Janeiro. Em 1994 lança o livro de crônicas Um brasileiro em Berlim, sobre sua estada na cidade. Publica, em 1997, o romance O Feitiço da Ilha do Pavão, pela Editora Nova Fronteira. No mesmo ano, antes da publicação deste romance, João é hospitalado com fortes dores de cabeça devido uma queda. Fora escolhido, em 1999, um dos escritores em todo mundo para dar um depoimento ao jornal francês "Libération" sobre o milênio que se aproximava na época.

Em 2000, saíram várias reedições de seus livros na Alemanha, incluindo uma nova edição de bolso de Sargento Getúlio. O Sorriso do Lagarto foi publicado na França. "A Casa dos Budas Ditosos" foi traduzido para o inglês, nos Estados Unidos. Viva o Povo Brasileiro foi indicado para o exame de Agrégation, um concurso nacional realizado na França para os detentores de diploma de graduação.




João foi detentor da cátedra de Poetikdozentur (Docente em poesia) na Universidade de Tübigen, Alemanha e também consagrado na Avenida Marquês de Sapucaí. Seu livro Viva o povo brasileiro foi escolhido como samba-enredo da escola Império da Tijuca para o carnaval do ano de 1987. A 26 de Novembro de 1987 foi feito Comendador da Ordem do Mérito de Portugal.




Em 1993 foi eleito para a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta com a morte do jornalista Carlos Castello Branco. Participou em 1994 da Feira do Livro de Frankfurt, Alemanha, recebendo o Prêmio Anna Seghers, concedido somente a escritores germanófonos e latino-americanos. Em 2008 recebeu o Prêmio Camões pelo "alto nível de sua obra literária", "especialmente densa das culturas portuguesa, africanas e dos habitantes originais do Brasil".[9] Ele foi o oitavo brasileiro a ganhar o prêmio. Especula-se que o valor do prêmio foi 100 mil euros, semelhante ao que foi pago a António Lobo Antunes, ganhador do Camões de 2007. Em outubro de 2014, a Secretaria de Conservação e Serviços Públicos do Rio de Janeiro anunciou a construção de uma estátua em sua homenagem. Ela ficará na Praça Antero de Quental, no Leblon, bairro onde o acadêmico tinha apartamento e circulava na noite.




João teve várias de suas obras adaptadas para o cinema e para a televisão, tendo, inclusive, participado no processo de criação delas.
Sargento Getúlio tornou-se um filme premiado em 1983, dirigido por Hermano Penna e protagonizado por Lima Duarte;
Quando voltou a residir no Rio de Janeiro em 1991, voltando do exterior, seu romance O Sorriso do Lagarto foi adaptado para uma minissérie na Rede Globo tendo como protagonistas Tony Ramos, Maitê Proença e José Lewgoy;
Em 1993 adaptou O Santo que Não Acreditava em Deus para a série Caso Especial, da Rede Globo, que teve Lima Duarte no papel principal;
Em 1997, ano em que foi internado devido às dores de cabeça, o cineasta Cacá Diegues comprou os direitos de filmagem do livro Já Podeis da Pátria Filhos, embora o filme não tenha sido produzido;
Em 1998, vendeu os direitos autorais de Viva o Povo Brasileiro para o cineasta André Luis Oliveira;
No ano seguinte, juntamente com Cacá Diegues, escreveu o roteiro de Deus é Brasileiro, em cima de seu conto O santo que Não Acreditava em Deus.





Morreu na madrugada do dia 18 de julho de 2014 em sua casa do Lebln, no Rio de Janeiro. Ubaldo sofreu uma embolia pulmonar. Um dia depois o corpo foi cremado.



Ah, como passam as coisas deste mundo, nada do que se contrói é perene, nada do que se faz é bem lembrado além de seu tempinho, nada fica como está, nunca se volta, nunca se volta.



Livros

Romances
Setembro Não Tem Sentido - 1968
Sargento Getúlio - 1971
Vila Real - 1979
Viva o Povo Brasileiro - 1984
O Sorriso do Lagarto - 1989
O Feitiço da Ilha do Pavão - 1997
A Casa dos Budas Ditosos - 1999
Miséria e Grandeza do Amor de Benedita (primeiro livro virtual lançado no Brasil) - 2000
Diário do Farol - 2002
O Albatroz Azul - 2009

Contos
Vencecavalo e o Outro Povo - 1974
Livro de Histórias - 1981. Reeditado em 1991, incluindo os contos "Patrocinando a arte" e "O estouro da boiada", sob o título de Já podeis da pátria filhos

Crônicas
Sempre aos Domingos – 1988
Um Brasileiro em Berlim – 1995
Arte e Ciência de Roubar Galinha – 1999
O Conselheiro Come – 2000
Você Me Mata, Mãe Gentil – 2004
A Gente se Acostuma a Tudo – 2006
O Rei da Noite – 2009

Ensaios
Política: Quem Manda, Por Que manda, Como Manda - 1981

Literatura infanto-juvenil
Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel - 1983
A Vingança de Charles Tiburone - 1990
Dez Bons Conselhos de Meu Pai - 2011


Viva o Povo Brasileiro

A narrativa se passa na Ilha de Itaparica (com rápidas incursões a Salvador, Lisboa, São Paulo e Rio de Janeiro) e percorre um largo horizonte histórico (1647-1977). Na obra, Ribeiro produz um panorama da construção de uma identidade brasileira com base na interação de gerações de núcleos familiares em conflito, decorrentes da estrutura social do país. Não obstante remonte aos primeiros momentos da colônia – tempos vividos pelo Caboco Capiroba, mestiço canibal do qual deriva uma extensa linhagem de brasileiros do povo –, a narrativa tem como ponto de partida as últimas batalhas pela independência, travadas na Bahia. Em fins de 1822, Perilo Ambrósio Góes Farinha, expulso de casa e com dois escravos, faz fortuna fingindo-se combatente ferido do lado brasileiro. Como proprietário de terras com negócios variados, Farinha congrega, de um lado, os escravos (entre eles os descendentes de Capiroba) e, de outro, o parasitismo dos mulatos e negros livres. Entre eles, Amleto Ferreira, administrador dos negócios do “Barão de Pirapuama”, título nobiliárquico do falso combatente.

O enredo desenvolve-se nos encontros e conflitos entre grupos escravagistas. Latifundiário violento, Farinha decide ter à força uma das escravas de sua fazenda, Vevé, neta da bisneta centenária de Capiroba, Dadinha, e ligada ao grupo de serviçais de sua mulher, são o vértice do conflito. Da violência de Farinha decorrem dois fatos: a gravidez de Vevé e a irmandade Povo Brasileiro. Vevé dá à luz a Maria da Fé, a ser criada em liberdade sob a generosidade de Leléu, negro liberto e com parcos recursos. A irmandade secreta Povo Brasileiro, por sua vez, é criada do pacto entre os escravos do engenho que decidem envenenar seu senhor. A vingança da irmandade contra Farinha depende da ascensão do mulato Ferreira. Este, dilapida os bens de seu senhor moribundo e, investindo-os numa casa bancária, torna-se o patriarca de uma das famílias mais ricas e poderosas do país.

De Maria da Fé e Ferreira desdobram-se as duas ordens produtoras do conflito social brasileiro. A heroína qualifica uma longínqua tradição de luta popular, nascida da vingança silenciosa dos escravos contra os senhores. Testemunha do assassinato da própria mãe, Maria da Fé torna-se parte da irmandade e sua grande líder, responsável por desdobrá-la numa ação organizada de guerrilha pelo sertão, numa primeira versão do cangaço. O compromisso de Maria da Fé com a justiça para o povo oprimido contrasta com a corrupção do grupo familiar de Ferreira. Deste, nasce Bonifácio Odulfo, que deixa de lado o culto à poesia ultrarromântica para se tornar um dos mais importantes (e corruptos) homens de negócio, afetando os vernizes civilizados da vida urbana. E também nasce Patrício Macário, filho desfavorecido de Ferreira que, integrando o Exército por castigo do pai, torna-se destacado soldado na Revolução Farroupilha e herói na Guerra do Paraguai. No amor e respeito entre o soldado legalista e a guerrilheira (representantes da ordem e do espírito brasileiros) reside a conciliação possível desse universo cindido, à qual o romance não se entrega. Prefere expor a perpetuação das iniquidades de uma elite corrupta e a resistência anárquica dos que a ela estão submetidos.

Se da perspectiva do enredo, o romance não apresenta grandes dificuldades, o mesmo não se pode dizer dos elementos estruturais que o costuram. Segundo Eneida Leal Cunha, “pode-se afirmar que Viva o Povo Brasileiro se constitui [...] como contraponto à história dos vencedores e expressão dos dominados, ou ainda como uma história das mentalidades, que relega a um plano secundário o acontecido para espraiar-se na malha dos discursos, das representações, do simbólico autonomizado, um conjunto de articulações mais ou menos rígidas entre significantes e significados sociais que constituem o imaginário social”. A tal afirmação podem-se remeter alguns dos cuidados e virtuosismos do autor, como o que Eneida lembra ser “uma estrita e obsessiva fidelidade às variações dialetais e discursivas que reproduzem as peculiaridades sócio-econômico-culturais das personagens” e o interesse quase ensaístico-antropológico na caracterização de personagens que têm seu lugar marcado com bastante clareza no abstrato da formação social brasileira.

É nesse sentido que José Antonio Pasta Jr. (1951) vê no romance “um vasto painel épico que procura incorporar toda a matéria histórica do país”. Para Pasta, seria preciso observar  um fundo de ideologia populista permeando a organização do enredo no virtuosismo retórico e na erudição de Ribeiro. Os encontros e desencontros dispensariam a mediação da dinâmica histórica, alçando-se a um pretenso plano espiritual – o das “alminhas” que encarnam e desencarnam ao sabor da violência social e das entidades incorporadas pelos negros, que adiantam linhas do enredo (como o destino de Maria da Fé) e são responsáveis pelo “encontro espiritual” encenado pela heroína e Patrício Macário. “Como poderia o livro desdobrar o percurso histórico de uma formação se não a encontra, como gostaria, na própria matéria histórica que escolheu como seu terreno de composição?”, pergunta-se Pasta, acusando o frágil idealismo da união entre o “espírito sem forma” das classes exploradas e “a forma sem espírito” da classe dominante.

Rico em polêmica e força literária, Viva o Povo Brasileiro é a obra-prima de um dos mais inventivos escritores brasileiros da segunda metade do século XX e merece destaque no conjunto de obras comprometidas com o entendimento da experiência histórico-social nacional. (Enciclopédia Itaú Cultural)



Mais um diário de mamãe

- Publicado em O Estado de S.Paulo, 2014


Querido Diário,

No tempo do Coelho Neto, não tinha churrascaria, tinha? Claro que não.

Não tinha nem churrascaria nem dia das mães e, portanto, ele não entendia nada de padecer no paraíso, nessa época era moleza. E este ano, para variar, está prometendo, vai ser mais um dia das mães inesquecível. Não quanto ao local das homenagens, que é churrascaria de novo. Como sempre, houve debates acalorados sobre isto. Todo ano alguém diz que é preciso variar e desta vez não vai ser churrascaria, mas sempre acaba sendo, eu nem presto atenção mais na discussão. Minha última intervenção foi há vários anos, em legítima defesa, para deixar claro que considero insultuoso me levarem para comer peixe cru com arroz papa sem sal e que, nesse caso, prefiro a sopa dos pobres do padre Celso. Não me levando para comer peixe cru, tudo bem. Eu como qualquer coisa, pizza, pastel, hambúrguer, rabada, mocotó e aquelas comidas baianas molengas e amarelosas, mas peixe cru não, tudo tem seu limite, tem que haver respeito.

Mas, como eu já te contei, haverá uma grande novidade, que é a presença de Vó Eulália, que chegou de Alagoas na quarta. Mandaram buscá-la porque ela está fazendo noventa anos, embora pareça muito menos. Eu tenho um medozinho, mas gosto dela. O mesmo, com certeza, não pode ser dito de todo o resto da família. No aeroporto mesmo, aquele lourinho, filho do outro casamento da Selminha, um chatinho catarrento e esganiçado, cujo nome eu sempre esqueço, só acho que é Fred, mas sei que não é, esse, vamos dizer, Fred, começou a encher o saco e Vó Eulália deu-lhe um puxão de orelha caprichado, que ele chegou a ficar roxo. “Se é para chorar, pelo menos chore com razão”, disse ela, com aquele sorrisinho de cangaceira. A Selminha não gostou, mas eu, claro, adorei e Vó Eulália não quer nem saber se alguém não gostou. E o Fred merece. Meu Deus, o nome dele não é Fred. Ted? Eu só lembro que tem um E. Ernesto?

Isso traz à baila o problema da identidade dos familiares. No começo, eu achei até que podia estar ficando de Alzheimer, porque dei para esquecer os nomes de uma porção deles, mas depois percebi que isto está acontecendo com praticamente todo mundo numa situação parecida com a minha, até porque a família nunca é a mesma, como no meu tempo. Antigamente, a família se reunia e eram sempre as mesmas caras, os mesmos nomes e as mesmas histórias, mas agora todo mês alguém anuncia uma alteração, muito mais que a escalação de um time de futebol. É bem verdade que eu não tinha nada que tirar uma de coelha e parir seis filhos, eu era uma cretina que achava lindo ter uma família enorme e tinha fantasias de comandar a hora do almoço com um apito. Diga-se em meu favor, porém, que seis filhos naquele tempo e no meu caso não queriam dizer oito noras mais ou menos duradouras e um número indefinido de outras mais passageiras, quatro genros, sendo que um repetido, e doze netos, entre legítimos e postiços. Isso para não falar nos parentes dos parentes e con- traparentes, é muito duro de acompanhar. Ninguém consegue se lembrar direito de oito noras e quatro genros em rodízio permanente. No hora em que a pessoa vai se acostumando, vem uma troca. Agora que tudo é informatizado, bem que eles podiam botar um chip que acendesse o nome deles no celular.

Aliás, grande bênção, o celular, pelo menos na churrascaria do dia das mães, porque agora a juventude fica em silêncio, enquanto manda mensagens para lá e para cá, ou seja, o tempo todo. Desconfio que alguns deles ainda não aprenderam a falar direito e o único órgão deles capaz de comunicação verbal é o polegar, ali teclando kd vc rsrsrs bjs e outras informações cruciais, que eles ficam mostrando uns aos outros, em vez de conversar. Me lembra cachorros cheirando uns aos outros, não sei por quê. O Marcelo, o gordinho de cabelo cacheado, também filho da Selminha, só que com o Haroldo, com certeza não sabe conversar, porque o universo dele são os joguinhos dos computadores e, quando alguém fala com ele, ele responde bzzz-strrp-vjjj-tueen, com os olhos esgazeados. E tem as fotos também, para as quais eles só olham uma vez e nunca mais, antes de distribuí-las às redes sociais do mundo todo, a gente com cara de besta e deficiente mental em todas elas.

De resto, não há razão para imaginar grandes surpresas. O meu novo genro por parte da Bia – que já não é mais tão novo assim, já vai fazer cinco anos que estão juntos, embora até hoje eu não saiba por que e o que foi que eles viram um no outro -, o Gilberto, o nosso Betão, vai encher a cara de chope, vai ficar com os olhos marejados e vai fazer um discursinho em que vai me chamar de bimãe outra vez. Bi, como em bicampeonato. Bimãe porque eu sou avó, mãe duas vezes, sacou? Ele é um gênio. Espero que não fique muito entusiasmado e não chame Vó Eulália de trimãe, porque não vai resultar bem, até porque ninguém sabe tantos palavrões e tem tanta disposição para mostrar isso do que Vó Eulália.

Mas, querido, eu fico falando assim e parece que não gosto da família, que sou uma desnaturada insensível, que não dou valor às coisas mais importantes desta vida. Mas nada pode estar mais longe da verdade. Eu adoro a família, adoro ser mãe e avó, sério mesmo. Esses senões acontecem a todos, de uma forma ou de outra e devemos pôr as mãos para o céu, porque não temos nenhum problema grave, como tantos outros. É só que de vez em quando dá vontade de ter uma folguinha de tanto padecimento paradisíaco. E, sim, bimãe não sou eu. Betão e Vó Eulália sabem quem é.




Feliz Dia do Telefone

- parte de crônica, publicada em 2013, em O Estado de S.Paulo

Mesmo consciente desses perigos, ouso dizer que a maior parte de vocês não sabia que hoje é o dia do telefone. Eu por acaso sabia e me lembrei assim que vi a data no calendário. E também já sabia de uma porção de coisas adicionais, inúteis mas talvez vistosas. Tudo isso, juro que é verdade, sem recorrer ao Google.
Faz mais tempo que eu gostaria de admitir, escrevi um trabalho escolar sobre Alexander Graham Bell, o inventor do telefone, e não me esqueci de fatos importantíssimos. Para começar, Bell não era americano, como geralmente se pensa; era escocês. E, se vocês pasmaram com esta, pasmem com a próxima: nos primeiros telefones, não se falava e escutava ao mesmo tempo, era como nos walkie-talkies dos filmes de guerra americanos e os interlocutores tinham que dizer "câmbio", ao terminarem cada fala.
E, sim, D. Pedro II garantiu o papel do Brasil no sucesso da invenção. Os historiadores americanos lembram como Sua Majestade, durante uma feira internacional em Filadélfia, ficou estupefato com o novo aparelho e exclamou: "Meu Deus, isto fala!". Parece que ele botou mais fé na novidade que os americanos, porque o presidente americano Rutherford B. Hayes declarou mais tarde que se tratava de um aparelho interessante, mas sem nenhuma utilidade. D. Pedro ganhou um e as centrais telefônicas começaram a se instalar no Brasil, notadamente no Rio de Janeiro e, segundo eu li, tinham o hábito de pegar fogo com grande frequência.
O coronel Ubaldo, meu avô, como vários de seus contemporâneos, na hora de falar no telefone, botava o paletó e passava a mão na careca, parecendo ajeitar uma cabeleira invisível e, depois que contaram a ele que funcionava com eletricidade, acho que nunca mais tocou em nenhum.




Uma entrevista antológica





Um comentário:

  1. Dele li somente um livro, bom demais, Sargento Getúlio!
    Que estilo maravilhoso de escrever, contar um estória...

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