Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
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ANDO DEVAGAR
PORQUE NÃO TENHO PRESSA
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PORQUE NÃO TENHO PRESSA
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Nesta sexta, uma cesta de
JANER CRISTALDO
Que os jornalistas criem mitos não é de surpreender. O pior é que passam a neles acreditar. Guernica, por exemplo, este braguetaço dos mais bem-sucedidos. Picasso havia pintado uma tela intitulada La Muerte del Torero Joselito, plena de cores fúnebres, em homenagem a um amigo seu, o toureiro Joselito, morto em uma lídia. Ao receber uma encomenda para o pavilhão republicano da Exposição Universal de Paris de 1937, Picasso lembrou do quadro, esquecido em algum canto de seu ateliê. Foi quando, para sua fortuna, a cidade de Guernica foi bombardeada pela aviação alemã. Ali estava o título e a glória, urbi et orbi. Picasso deu nova função ao quadro e hoje multidões hipnotizadas vêem, em uma cena de arena, com cavalo, touro e picador, uma homenagem aos mortos da Guerra Civil.
Jornalista, escritor e ensaista, Janer Cristaldo Ferreira Moreira nasceu em Santana dio Livramento - dois de abril de 1947. Faleceu em São Paulo - 27 de outubro de 2014. Estava com apenas 67 anos. E continuava escrevendo na mesma velocidade dos tempos da Folha da Manhã, de Porto Alegre.
Formou-se em Direito e Filosofia, e depois se exilou voluntariamente em Estocolmo, 71 e 72, onde estudou cinema e língua e literatura suecas.
De volta ao Brasil, publicou suas primeiras traduções: Kalocaína, de Karin Boye (do sueco), e Crônicas de Bustos Domecq, de Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares (do espanhol). Em 1973, publicou O Paraíso Sexual Democrata, que teve quatro edições no Brasil e uma em espanhol, em Buenos Aires.
Em 1975, passa a assinar coluna diária para a Folha da Manhã, Porto Alegre. Em 77, recebe bolsa do governo francês para um doutorado em Letras Francesas e Comparadas. De Paris, mantém correspondência diária para a Folha da Manhã. Em 1981, doutorou-se pela Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), com a tese La Révolte chez Ernesto Sábato et Albert Camus, traduzida ao brasileiro sob o título de Mensageiros das Fúrias. Ainda em Paris, iniciou a tradução da obra ficcional e ensaística de Ernesto Sábato, a pedido do próprio autor.
No Brasil, foi professor visitante de Literatura Brasileira e Comparada, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, de 1982 a 1986. Neste período, traduziu vários outros romances, introduzindo no universo literário brasileiro autores como Roberto Arlt, Camilo José Cela, José Donoso, Michel Déon e Michel Tournier. Em 86, publica seu primeiro romance, Ponche Verde, que tem como fulcro a peregrinação dos exilados brasileiros por Estocolmo, Berlim, Paris e Lisboa.
Em São Paulo, onde morava quando faleceu, foi redator de Política Internacional da Folha de São Paulo e do Estado de São Paulo.
Quando faleceu, Janer Cristaldo escrevia no http://cristaldo.blogspot.com.
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Eu comprava a Folha da Manhã todos os dias. Lia rigorosamente o LFVerissimo e o Janer. E o Rogério Mendelski, o professor Ruy Ostermann e todos os colunistas. E as reportagens. Os quadrinhos. Tudo.
Conheci pessoalmente o Janer quando ele organizou Assim Escrevem os Gaúchos - Inéditos. Fui falar com ele sobre a seleção e me disse que tinha gostado dos meus escritos e que estava selecionado. Mas o livro não foi publicado e valeu, porque o conheci.
Sempre o acompanhava, apesar de vez que outra o perdia de vista.
No segundo semestre de 2011 comecei a pesquisar para o livro “Apaixonados por Porto Alegre – Personagens do Centro”. Um dos retratados seria um cara literalmente fantástico, Carlos Ducatti. Lembrei do tempo da Folha da Manhã, que o Janer e o Rogério sempre escreviam sobre ele. Liguei para o Rogério, que me contou uma série de histórias. E me deu o telefone do Janer. "Ele vai adorar conversar contigo sobre o Ducatti", disse. Realmente, batemos muitos papos e ele me mandou textos que tinha escrito sobre o personagem. Um cara agradável e gentil.
Em2012 publiquei o livro e mandei para ele. Janer me ligou agradecido e que tinha lido numa tarde, matando a saudade de Porto Alegre.
Dois anos depois recebo a notícia da sua morte.
Janer deixou uma filha, Isadora Pamplona.
O SNI, ÓVNIS E O HOMEM DE ORION
Porto-alegrenses de minha idade certamente lembrarão de Carlos Ducatti, o cientista, filósofo e poeta orionino. Ou orionano, não lembro agora. Ele não era terráqueo. Viera da nebulosa de Orion e tinha uma missão na Terra. Seguidamente eu o encontrava no Chalé da Praça XV e certa vez tivemos uma longa discussão sobre o que era ser orionino ou orianano. Não lembro agora como ele se definia. Mas havia uma substancial diferença entre um e outro conceito.
Ora, vivíamos em uma cultura na qual milhões de pessoas acreditam na existência de uma mãe virgem. Por que eu não aceitaria então que ele viera de Orion? Nunca pus em dúvida suas origens e, a cada vez que o encontrava, perguntava como estava a temperatura em Orion.
Ducatti fundou o Clube dos Sábios, que congregava sete pessoas, sendo uma delas sua mãe. Considerava que a mulher é prejudicial ao gênio. Só não seria prejudicial em uma circunstância: durante a relação, o homem deveria liberar um só espermatozóide. Interrogado por uma jornalista como isto seria possível, respondeu com um piscar de olhos:
- Questão de prática.
Pasmem! Foi de Ducatti que ouvi falar pela primeira vez a teoria dos buracos negros. Ele os conhecia muito antes de Stephen Hawking. Andava em busca de Galactus, ser galático que odiava a vida e se alimentava de planetas. Galactus fora, inicialmente, uma ilação teórica. Com o correr do tempo, sua existência passou a ser um imperativo de ordem conceitual, única explicação plausível para o desaparecimento de civilizações cósmicas multimilenares.
Até hoje, guardo em meus arquivos os panfletos nos quais Ducatti explicava seus projetos. Um deles era o esquema de uma complexa máquina matapardais. O Homem de Orion julgava que os ditos predadores tinham qualquer ligação com os poderes do mal, sem falar que não lhes suportava o chilreado. E os bichinhos eram legião em torno ao Chalé, particularmente na primavera. A máquina consistia basicamente em uma metralhadora giratória acoplada a quatro canhões sonoros e a um computador com gravação dos sons de pardais em sua memória. Ao ouvi-los, os canhões direcionais apontavam a arma para a fonte de emissão de ruídos e a metralhadora era acionada automaticamente. Havia pensado em uma arma à base de raios laser, mas sua filosofia ecológica não permitia sacrificar árvores.
Um outro projeto era uma proposição para viver com menos de um salário mínimo, com 33 itens, entre os quais se destacavam: não ter carro, televisão, aspirador, batedeira, etc., coisas perfeitamente dispensáveis; ser autodidata, evitar pagar cursos; acostumar o estômago a exigir pouco alimento; botar pouco açúcar no chá; fritar ovos com água; não seguir a moda, coisa irracional que nos impele a fazer compras; não fazer seguros, confiar no cósmico e na fraternidade; ir de preferência a espetáculos grátis; em caso de esgotamento nervoso, ir ao campo (as clínicas são caríssimas); não fumar; não comprar boné contra o sol: andar pela sombra ou proteger-se com um jornal; não estragar os tênis ou sapatos jogando futebol; não comprar quadros, pintá-los; ter letra pequena, afim de economizar papel. Etc.
Em um outro prospecto, fazia uma crítica ao filme Guerra nas Estrelas, a partir de suas experiências astrais. Vinte seriam as falhas do filme, entre elas o fato de todas as estrelas aparecerem iguais, desprezando-se as diferenças de tamanho, distância e cor; mesmo em satélites, a gravitação é igual à da Terra; entre os extra-terrestres há muitos tipos monstruosos, cerca de oitenta por cento, quando o normal seria quinze; a invisibilidade de naves e pessoas, recurso muito usado por seres evoluídos, jamais ocorre; pessoas supostamente evoluídas alimentando-se com pratos e talheres, quando seres adiantados ingerem só líquidos ou prana.
Alimentava o projeto UNAT - União das Nações da Terra - com sede em Brasília, para substituir a ineficiente ONU. Seu principal objetivo, a busca inteligente e objetiva das soluções para os problemas humanos, sendo uma das primeiras tarefas resolver a questão palestino-israelita. E planejava a construção de um espaçoporto em Porto Alegre, para receber os óvnis de galáxias distantes. Egresso do curso de Física da UFRGS, era tido como um louco manso. Creio que só eu acreditava piamente em suas viagens astrais.
Certo dia, quase tive uma eclampsia. Eu voltava das Ilhas Canárias. Na Gran Canária, estive no povoado de Arucas. Percorrendo sua geografia, encontrei uma espécie de oásis, algo como um mar sereno de areia em meio a montanhas pontiagudas. Lembrei do Homem de Orion e disse à minha Baixinha: “se os extras chegam à Terra, só pode ser aqui que eles aterrissam. Preciso comunicar ao Ducatti.” Encontrei-o no Chalé, como sempre.
- Ducatti, estive em Arucas, na Gran Canária. Acho que é lá que os extras aportam.
- Sei disso – respondeu o Homem de Orion -. Já escrevi ao prefeito de Arucas.
E puxou do bolso uma carta, a resposta do prefeito de Arucas. É nestes momentos em que minha descrença vacila. Profundo mistério!
Dito isto, leio hoje na Folha de São Paulo que o extinto SNI (Serviço Nacional de Informações) durante muito tempo pôs seus agentes à espreita dos óvnis, segundo documento de 86 páginas, obtido pelo jornal e classificado como confidencial.
Um objeto luminoso, que fazia evoluções em alta velocidade sobre a parte frontal da cidade de Colares [no Pará]" foi visto pelo menos duas vezes, há pouco mais de 30 anos, nos dias 16 e 22 de outubro de 1977. "A forma do objeto era cilíndrica, quase cônica", diz um relato pormenorizado. Um desenho rudimentar dessa suposta espaçonave interestelar completa a descrição do episódio.
(...)
Em meados de 1977, os jornais do Pará e do Maranhão traziam insistentes relatos sobre "luzes misteriosas, causadoras de mortes e alucinações". Pessoas em contato com o fenômeno apresentavam sintomas de "paresia [paralisia incompleta] generalizada, hipetermia, cefaleia, queimaduras superficiais, calor intenso, náuseas, tremores do corpo, tontura, astenia [fraqueza] e minúsculos orifícios na pele". A Aeronáutica não titubeou. Mobilizou homens e recursos para uma missão. Num ato de humor involuntário, batizou a empreitada para buscar discos voadores com o nome autoexplicativo de Operação Prato, segundo relato do SNI.
(...)
Os agentes se dividiam em turnos. Faziam vigílias noturnas até o dia amanhecer em lugarejos pouco povoados. O documento do SNI é apenas um extrato do que está na Aeronáutica e permanece em segredo. O esforço dos "observadores" militares às vezes resultava em nada. Por exemplo, no dia 27 de outubro de 1977:
"1h15 - Observadores instalados no alto da caixa d'água";
"4h05 - Populares observam o deslocamento de uma intensa "luz" ao nível das árvores (Roberto), informam aos observadores postados na caixa d'água (30 a 40 m de altura) ao nível do topo das árvores, nada observado. Restante do período, nada a relatar".
Quando raiava o dia, descanso. Sucessivos relatos dos militares da Operação Prato começam assim: "6h30 - descanso até as 14h".
Eles dormiam de dia e trabalhavam à noite. Algumas vezes, a intensa atividade celeste no turno da noite levava o descanso a se estender até as 15h.
E por aí vai. Segundo a Folha, o documento do SNI sobre a missão da Aeronáutica interessada nas coisas do espaço sideral só se tornou público graças a um pedido da CBU (Comissão Brasileira de Ufólogos). Com base em direito garantido pela Constituição do Brasil, os ufólogos pediram acesso a documentos sobre óvnis guardados pelas Forças Armadas e outros órgãos oficiais do governo federal. O requerimento foi protocolado na Casa Civil da Presidência em 26 de dezembro de 2007.
Em 31 de outubro passado, dez meses depois, chegaram as primeiras 213 páginas de papéis antigos e confidenciais da Aeronáutica. São datados de 1952 a 1969. Na última quinzena do mês passado apareceu o relatório de 86 páginas do SNI, relativo à Operação Prato, de 1977 e 1978.
Ora, o SNI perdeu tempo e dinheiro em suas pesquisas. Tivesse consultado o Homem de Orion, teria informações detalhadas sobre a atividade dos extras. Eu, por exemplo, graças a minha convivência com Ducatti, estava muito melhor informado que o SNI.
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AS TRÊS VIAS DE ACESSO
Após ler minha crônica sobre os cavacos do ofício do jornalismo, uma amiga me pergunta porque não estou lecionando numa universidade. Coincidentemente, a resposta está no artigo de Cláudio de Moura Castro, na Veja da semana passada:
“Na UFRJ, um aluno brilhante de física foi mandado para o MIT antes de completar sua graduação. Lá chegando, foi guindado diretamente ao doutorado. Com seu reluzente Ph.D., ele voltou ao Brasil. Mas sua candidatura a professor foi recusada pela UFRJ, pois ele não tinha diploma de graduação. Luiz Laboriou foi um eminente botânico brasileiro, com Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e membro da Academia Brasileira de Ciências. Mas não pôde ensinar na USP, pois não tinha graduação”.
Estas peripécias, eu as conheço de perto. Começo pelo início. Nunca me ocorreu lecionar na universidade. Eu voltara da Suécia, cronicava em Porto Alegre e fui tomado pela resfeber, doença nórdica que contraí na Escandinávia. Traduzindo: febre de viagens. Li nos jornais que estavam abertas inscrições para bolsas na França e me ocorreu passar alguns anos em Paris. A condição era desenvolver uma tese? Tudo bem. Paris vale bem uma tese. Tese em que área? Busquei algo que me agradasse. Na época, me fascinava a literatura de Ernesto Sábato. Vamos então a Paris estudar Sábato.
Mas eu não tinha o curso de Letras. O cônsul francês, ao me encontrar na rua, perguntou-me se eu não podia postular algo em outra área. Em Direito havia mais oferta de bolsas. Poder, podia. Eu cursara Direito. Mas do Direito só queria distância. Mantive minha postulação em Letras. Para minha surpresa, recebi a bolsa. A França me aceitava, em função de meu currículo, para um mestrado em Letras, curso que eu jamais havia feito. Nenhuma universidade brasileira teria essa abertura. Aliás, os componentes brasileiros da comissão franco-brasileira que examinava as candidaturas, tentaram barrar a minha. Fui salvo pelos franceses.
Fui, vi e fiz. Em função de meu currículo, aceito para mestrado, fui guindado diretamente ao doutorado. Tive o mesmo reconhecimento que o aluno do MIT. Acabei defendendo tese em Letras Francesas e Comparadas. Menção: Très bien. Não me movera nenhuma pretensão acadêmica, apenas o desejo de curtir Paris, suas ruelas, vinhos, queijos e mulheres. A tese não passou de diletantismo. De Paris, eu escrevia diariamente uma crônica para a Folha da Manhã, de Porto Alegre. Salário mais bolsa me propiciaram belos dias na França. Foi quando minha empresa faliu. Conversando com colegas, fiquei sabendo que um doutorado servia para lecionar. Voltei e enviei meu currículo para três universidades. Sei lá que loucura me havia acometido na época: um dos currículos enviei para o curso de Letras da Universidade de Brasília.
Fui a Brasília acompanhar meu currículo. Procurei o chefe do Departamento de Letras. Ele me cobriu de elogios, o que só ativou meu sistema de alarme. Que minha tese era brilhante, que meu currículo era excelente, que era um jovem doutor com um futuro pela frente. Etc. Mas... eu tinha apenas os cursos de Direito e Filosofia, não tinha o de Letras. Me sugeria enviar meu currículo ao Departamento de Filosofia, já que a tese tinha alguns componentes filosóficos.
Ingênuo, fui até o Departamento de Filosofia. O coordenador me recebeu muito bem, analisou minha tese, cobriu-a de elogios. Mas... eu não tinha o Doutorado em Filosofia. Apenas o curso. Considerando o grande número de artigos publicados em jornal, sugeria que eu fosse ao Departamento de Comunicações. Besta atroz, fui até lá. O coordenador considerou que meu currículo como jornalista era excelente. Mas... eu não tinha o Curso de Jornalismo.
Na Universidade Federal de Santa Catarina abriu um concurso para professor de Francês. Já que eu era Doutor em Letras Francesas, me pareceu que a ocasião era aquela. Duas vagas, dois candidatos. Fui solenemente reprovado. Uma das alegações foi que eu falava francês como um parisiense, e a universidade não precisava disso. A outra, e decisiva, era a de que eu tinha doutorado em Letras Francesas, mas não tinha curso de Letras.
Já estava desistindo de procurar emprego na área, quando fui convidado para lecionar Literatura Brasileira, na mesma UFSC que me recusara como professor de francês. Convidado como professor visitante, o que dispensa concurso. Mas o contrato é por prazo determinado, dois anos. O curso precisava de doutores para orientar teses e eu estava ali por perto, doutor fresquinho, recém-titulado e livre de laços com outra universidade. Fui contratado.
Acabei lecionando quatro anos, na graduação e pós-graduação. Findo meu contrato, foi aberto um concurso para professor de Literatura Brasileira. Me inscrevi imediatamente. Uma vaga, um candidato. Me pareceram favas contadas. Ledo engano. Eu não tinha o curso de Letras. Fui de novo solenemente reprovado. Não tinha graduação em Letras.
Na mesma época, abriu um concurso na mesma universidade para professor de espanhol. Ora, eu já havia traduzido doze obras dos melhores autores da América Latina e Espanha (Borges, Sábato, Bioy Casares, Robert Arlt, José Donoso, Camilo José Cela). Vou tentar, pensei. Tentei. Na banca, não havia um só professor que tivesse doutorado. Pelo que me consta, jamais haviam traduzido nem mesmo bula de remédio. Mais ainda: não tinham uma linha sequer publicada. Novamente reprovado. Minhas traduções poderiam ser brilhantes. Mas eu jamais havia feito um curso de espanhol.
Melhor voltar ao jornalismo. Foi o que fiz. Anos mais tarde, já em São Paulo, por duas vezes fui convidado para participar de uma banca na Universidade Federal de São Carlos, pelo professor Deonísio da Silva, então chefe de Departamento do Curso de Letras. Uma das bancas era para escolher uma professora de Literatura Espanhola, outra uma professora de Literatura Brasileira. Deonísio sugeriu-me participar, como candidato, de um futuro concurso. Impossível, eu não tinha o curso de Letras. Quanto a julgar a candidatura de um professor de Letras, isto me era plenamente permissível.
Por estas e por outras – e as outras são também importantes, mas agora não interessam – não estou lecionando. Diz a lenda que na universidade da Basiléia havia um dístico no pórtico, indicando as três vias de acesso à universidade: per bucam, per anum, per vaginam. Lenda ou não, o dístico é emblemático. A universidade brasileira, particularmente, é visceralmente endogâmica. Professores se acasalam com professoras e geram professorinhos e para estes sempre se encontra um jeito de integrá-los a universidade. A maior parte dos concursos são farsas com cartas marcadas.
Pelo menos na área humanística. As exceções ocorrem na área tecnológica, onde muitas vezes a guilda não tem um membro com capacitação mínima para proteger. Contou-me uma professora da Universidade de Brasília: “eu tive muita sorte, os dez pontos da prova oral coincidiam com os dez capítulos de minha tese”. O marido dela era um dos componentes da banca. A ingênua atroz – ou talvez cínica – falava de coincidência.
Na universidade brasileira, nem um Cervantes seria aceito como professor de Letras, afinal só teria em seu currículo o ofício de soldado e coletor de impostos. Um Platão seria barrado no magistério de Filosofia e um Albert Camus jamais teria acesso a um curso de Jornalismo. No fundo, a universidade ainda vive no tempo das guildas medievais, que cercavam as profissões como quem cerca um couto de caça privado. Na Espanha e na França, desde há muito se discute publicamente a endogamia universitária. Aqui, nem um pio sobre o assunto. E ainda há quem se queixe quando os melhores cérebros nacionais buscam reconhecimento no Exterior.
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INTIFADA EM PARIS
Paris, outubro, outono. Os franceses exibem com orgulho sua última trouvaille tecnológica, o Météore, linha 14 do metrô, que vai da Grande Bibliothéque, monumento mastodôntico erigido por François Mitterrand, até a Madeleine, no centro da cidade, proximidades de Chez Fauchon, o mais sofisticado endereço gastronômico parisiense. Mitterrand, dado seu ar bonachão, era também conhecido como Tonton (titio), e a nova linha foi logo chamada de Tonton-Fauchon. Não tem condutor e é à prova de suicídios. Comandada por computadores, a composição fica separada do cais por uma parede de vidro. Ao chegar na estação, cada porta dos vagões coincide com uma porta da parede de vidro. Ambas se abrem na chegada do trem e fecham-se com sua partida. Para desespero de suicidas potenciais, na linha 14 não mais é possível jogar-se nos trilhos.
Estamos em 98, bem entendido. Três décadas após a “revolução” de Maio — trop de sperme, pas de sang —, nove anos depois da queda do Muro de Berlim, sete após o desmoronamento da URSS. Palavras como marxismo e luta de classes viraram verbetes de enciclopédias. Se o Météore fosse inaugurado dez anos atrás, os sindicatos teriam paralisado a cidade, acusando o novo transporte de roubar empregos da classe operária. E intelectual não faltaria para acusar o neoliberalismo de privar o proletariado do sagrado direito ao suicídio.
Em São Paulo estamos também em 98. A Prefeitura está modernizando algumas linhas de ônibus. Não eliminando o condutor, seria esperar demais do engenho tupiniquim. Mas pelo menos sem cobradores, estes trombolhos inúteis hoje só concebíveis em museus. Grita geral dos sindicatos e paralisação dos transportes: a globalização, o neoliberalismo — ou sei lá que neologismo — está roubando empregos dos trabalhadores. No Brasil, podemos estar em 98. Mas aqui o Muro ainda não caiu. A propósito, faça um teste: pergunte a um vestibulando ou universitário, qual fato determinante da história deste século ocorreu a 9 de novembro de 1989. Dezenove entre dez provavelmente não saberão do que você está falando.
Quanto a mim, falava de Paris. Na primeira quarta-feira de cada mês, talvez passe despercebido ao turista, ou se confunda com os ruídos da cidade, o reboar intenso de uma sirene ao meio-dia. A Segunda Guerra pode estar quase esquecida pelos contemporâneos, mas as Forças Armadas continuam testando o sistema de alarme antiaéreo da cidade. Aliás, comenta-se que o melhor dia para bombardear Paris seria precisamente a primeira quarta-feira do mês. O parisiense contemporâneo talvez já nem saiba por quem ou porque reboam as sirenes. E talvez nem tenha mesmo notado que o fim da Guerra Fria tornou a cidade mais limpa. Mortas as ideologias, a militância deixou de pichar muros e colar cartazes.
Mas nem tudo foi charme e beleza neste outono na sedizente Cidade Luz. Paris está hoje cercada por um cinturão de ressentimento, alimentado por imigrantes e filhos de imigrantes, que aproveitaram a última tentativa de um revival de 68 para invadir a Paris intra muros e saquear, depredar e incendiar lojas e carros. O que pretendia ser uma reivindicação de universitários saudosos da “revolução” de Maio, logo transformou-se em caos sem palavra de ordem alguma. O vandalismo imperou também em Marseille, foco de intensa imigração árabe, onde hoje existem bairros em que nem a polícia ousa entrar sem reforços.
Se os antigos imigrantes chegavam na Europa preocupados com emprego e com os deveres ante a nova sociedade, o imigrante atual chega exigindo direitos, logo em um Estado em que a previdência social já não dá segurança nem mesmo aos nacionais. Os integrantes das chamadas segunda e terceira geração de imigrantes, detentores de cidadania francesa mas discriminados e desempregados, encontram no quebra-quebra sua forma de expressão. Como boa parte deste contigente é composta de árabes, em sua maioria argelinos, o adormecido ódio ao colonizador põe mais lenha na fogueira.
Isso sem falar na ameaça constante de bombas. As grandes lojas e centrais de metrô são locais de sonho para um fanático com projetos de produzir uma carnificina das boas. Um pacote ou mala esquecida em uma estação de metrô talvez não diga nada para um turista desinformado. Para o parisiense pode ser prenúncio de cadáveres e corpos dilacerados. Os cestos de lixo, por razões de segurança, foram lacrados e constituem um lembrete silencioso de que Paris não é mais aquela. Militares em uniforme de campanha e equipados com fuzis-metralhadoras dão um toque sinistro aos grands magasins e subterrâneos da cidade. A intifada transportou-se do Oriente Médio para o centro da Europa e veio para ficar. Franceses e árabes estão irremediavelmente entrelaçados por um passado comum e continuarão a olhar-se diariamente, olhos nos olhos, pelo futuro fora. Se um dia os fundamentalistas argelinos transferirem seus carros-bomba e degolas para as margens do Sena — o que não seria de espantar, pois boa parte da Argélia vive lá —, adeus Paris que tanto amamos.
Ela continua linda, é claro. Nem de longe lembra esta São Paulo, com sua arquitetura horrenda e uma média constante de meia centena de cadáveres a cada fim-de-semana. Mas a comparação não procede. São Paulo, antes de ser urbe, é metástase que não pára de expandir-se. E Paris sempre foi a cidade buscada por todo homem culto em busca do que de mais requintado o Ocidente oferece.
Ou era.
Janer Cristaldo,um dos maiores cronistas que conheci, com a vantagem de ter sido seu amigo. Seu texto tinha a genialidade dos detentores do poder da ironia. Era o nosso Agripino Grieco da imprensa. Parabéns, Previdi, por nos trazer esses textos do Janer. Nós éramos amigos de fé do Professor Ducatti, um verdadeiro alienígena do distante planeta de Orion.
ResponderExcluirsacanagem previdi vim faceiro achando que ia ter foto de mulher de biquini e nao teve hahaha
ResponderExcluirConheci por volta de 1965, o projeto do Carlos Ducati de constituir o CLUBE DOS SÁBIOS.
ResponderExcluirO projeto de estatutos definia que o clube seria constituído de 7 membros, 5 sábios e 2 não sábios.
O problema que o Carlos enfrentava à época era encontrar os dois membros que se reconhecessem com não sábios.
Pelo que sei, levou anos para encontrá-los.
No relato ora publicado fico sabendo que o clube foi constituído.
Gostaria de saber o nome dos dois membros não sábios?
Alguém sabe?
Prévidi,
ResponderExcluirNão sei se foi por influencia do Janer Cristaldo (que eu lia diariamente quando do início dos anos 1970 na antiga Folha da Manhã) mas eu acabei procurando livros do Ernesto Sábato - li uns dois, mas de um deles me lembro bem, o magnífico 'Sobre Tumbas e Heróis'. Acabei descobrindo algo bem singular no Ernesto, ele era físico nuclear! Acompanhei relativamente de perto a carreira Janer, que produziu mais como tradutor do que como escritor. Se não estiver nadando no rio do olvido, dirigiu e produziu alguns filmes aqui no Sul.
Fui - e ainda sou - fã dos escritos de Janer Cristaldo. Lamentável sua partida precoce.
ResponderExcluirPrévidi,
ResponderExcluirEstava assistindo o Cadeira Cativa, faltando o Reque fica um programa muito chato, resolvi ver o que tinha na TVU, suprise!
Estavam passando 'E O Vento Levou' - remasterizado, uma imagem digitalizada espetacular. Acho que se estão para quebrar (é o que se fala), agora quebram: Esse filme, de 1939, mesmo super antigo não sai do catálogo da distribuidora para apresentações em TV aberta por menos de um milhão de dólares! Eles devem ter feito o mesmo que a TV Ulbra fez, há uns 10 anos, com seriados americanos caríssimos: pegaram da internet achando que se lá está é porque é de graça! Vão levar chumbo grosso!