Sexta, 8 de fevereiro de 2019




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE NÃO TENHO PRESSA









HORÁRIO DE VERÃO!
Atualizado diariamente
até 10 horas





Escreva apenas para








especial

Nesta sexta, uma cesta de
CACO BELMONTE


Cursos de publicidade ensinam o dogma que conduz roteiristas às obrigatórias dancinhas e gestos acrobáticos. Só pode ser isso.





Jornalista e escritor, Caco Belmonte nasceu em Porto Alegre, 21 de julho de 1972. É filho do extraordinário jornalista esportivo João Carlos Belmonte e irmão do Roberto Villar. A chefe de todos é a Ligia.
Formado em Jornalismo pela Famecos - PUC-RS.
Contatos pelo cacobelmonte@gmail.com

Jornalista - Experiência em veículos de comunicação (rádio, jornal) e assessoria de imprensa institucional. Produtor, redator e repórter da Rádio Guaíba (Porto Alegre). No jornal Correio do Povo, editor de textos. Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, assessor entre 1999 e 2002. Na Câmara Municipal, assessor de comunicação entre os anos de 2002 e 2004. Na Secretaria Estadual de Obras, coordenador de imprensa nos anos de 2004 e 2005. De julho de 2005 a janeiro de 2015, com uma interrupção no intervalo de dois anos, trabalhou na Prefeitura Municipal de Porto Alegre, onde foi editor de textos no Portal da Prefeitura, editor do Diário Oficial e da Rádio Web. Produziu reportagens especiais e coordenou a Editoria dos Jornais de Bairro. Também foi assessor de comunicação da Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov). 

Escritor - Em 1992, frequentou a Oficina de Criação Literária da PUCRS, onde publicou na coletânea de autores organizada por Luiz Antonio de Assis Brasil (Contos de Oficina 10; Edipucrs). Em 2004, na II Festa Literária Internacional de Parati (Flip), participou como autor convidado na oficina Veredas da Literatura, ministrada pelo escritor Milton Hatoum. Durante o evento, lançou a obra independente “Contos para Ler Cagando”. Em 2005, passou a integrar o grupo de autores da Editora Casa Verde. Em 2006, lançou o livro de contos “No Orkut dos outros é colírio”. Na editora, participou das coletâneas Fatais (2005), Contos de Bolso (2005), Contos de Bolsa (2006) e Contos de Algibeira (2007). Também é coautor do livro “Farofa com pimentão – Histórias de Praia”, organizado em 2009 pelo jornalista José Luiz Prévidi. Na internet, publica desde 2003. Em 2017, estreou em narrativas longas com o romance “Lambuja”, publicado pela Editora Metamorfose.




TiNTIM por TINTiM




Personagens ressurgem, histórias de outros tempos ganham novos contornos. Assimilo esse material bruto e o processo na criatividade do artista, fazendo emergir um novo contexto. Ficcional, mas ainda real, caso bem-sucedido. Essas modulações de tom exigidas à adaptação emprestam a verossimilhança perseguida pelo “demiurgo” que, eventualmente, transmite confiança ao leitor, ou espectador, que responde com empatia à mensagem. A mesma sequência, captada sem o viés literário do escritor, ou longe da imagética dos roteiristas e diretores de cinema, seria um quadro fugaz na imensidão da individualidade coletiva. O paradoxo do deserto povoado. Até onde a vista alcança, tempestades de areia. Pretensioso, soprar em direção contrária.

O que vou narrar adiante, visto pelo desatento, seria apenas a miséria sem nome, avaliada de passagem com olhos curiosos e sincera empatia, comiseração instantânea de corações pétreos, endurecidos pelo hábito da observação cotidiana de tragédias distantes, impessoais e descartáveis, embaladas pela voracidade urgente da informação atirada às massas insaciáveis. A notícia de ontem é velha, alguns dramas persistem, embora invisíveis no dia seguinte, ou pouco mais do que isso. Gastar menos é urgência. Na classe média, quem tem dinheiro economiza. O remediado, do tantinho faz milagre. A droga e a geladeira nos levam à periferia, não necessariamente nessa ordem, depende de cada um. Mas calma, vou explicar como acontece, tintim por tintim. Motivos solenes nos conduzem por caminhos mal frequentados. Final de mês nos telefonam para cobrar as dívidas materiais. Quase ninguém nos intima no Cartório da Consciência, o imaterial não tem valor. São cretinas, as palavras também. Apupo parece aplauso, mas te vaiam. Ovacionado soa como se estivessem querendo arrancar o teu fígado, mas te adoram.

Um amigo foi empresário no ramo da alimentação, vendia lanches, especializado em baurus. Hoje atua em segmento menos sacrificado. Resguardou segredos, abertas as portas de segunda a segunda. Jamais revelou a procedência das carnes bovinas suculentas, desmanchavam na boca. Toque de midas com sabor de pobreza, o insumo vinha de bairro periférico, problemático por violento, distante mais de quinze quilômetros, mas com açougues que vendiam sem a margem de lucro exorbitante das casas de carne dos bairros nobres, próximos ao Centro Histórico de Porto Alegre. Muitos dos moradores de residências de luxo à beira do Guaíba, nos condomínios e nobres loteamentos das zonas Sul e Extremo-Sul, costumam buscar cerveja e carne mais em conta nos comércios dos prédios à volta dos condomínios na Cohab Cavalhada. Bolso esvaído, a premência do momento. Da mesma forma economizo. Conveniente poupar. O níquel tem valor, agregado a outros níqueis.

No bairro em que resido, o Cristal, a meio caminho do Wall Mart Barra Shopping Sul, existe um supermercado próximo a minha casa, não das grandes redes, porém em cadeia com outros medianos, individualmente não teriam potencial, mas sob bandeira comum eles fazem grandes compras e anunciam ofertas nas rádios populares. Percorro a pé esse trajeto, costumo atalhar pela comunidade no entorno da Avenida Divisa, local em obras que se iniciaram antes da Copa 2014 e, findo o mundial de seleções deste ano, seguem inconclusas e sem previsão de término. Então eu vou a pé até o hipermercado, em detrimento do conforto, sendo a referida comunidade o ponto exato aonde existe um armazém tradicional, desses que vendem sortido, incluindo cerveja em lata e leite integral UHT a preços convidativos. Desconheço a procedência, não estou em condições financeiras de colocá-la em xeque. O primeiro alimento do homem é artigo essencial, café e papel higiênico também, sempre os manteremos à mão, ou estaremos angustiados.

No entorno do referido estabelecimento, secos e molhados com borrachos escorados ao balcão, flagrante riqueza antropológica. Tipos humanos que habitam ou circulam pelas vilas urbanas e periféricas da capital. Quem viu algumas, conhece quase todas. No estado dentro do estado, códigos tácitos de convivência e leis próprias se replicam. A prática não diverge do que acontece no mundo institucionalizado: manda quem pode. E ali dentro o proprietário atende com a caneta presa atrás duma orelha, calcula no verso de papéis que embalam pacotes de cigarros nacionais ou paraguaios, serve tragos, alcança produtos mantidos longe da clientela, pois haveria quem os roubasse, se estivessem ao alcance das mãos e à mercê da ocasião. Quando cheguei, percebi o ajuntamento na calçada defronte. O homem caído e as pessoas agitadas. Deboche, reproche, nenhuma vontade de ajudar. “A mina deu um rapa e chutou a cara dele. Bem feito, tomara que tenha morrido. Coisa ruim não morre fácil. Deixa quieto, esse traste é o Baiano. Alguém foi chamar o pessoal na casa dele”.

Ouvi o nome do ser humano sobre quem formulavam as frases, olhei a figura atirada e fiz a imediata associação que remete ao início deste arrazoado, quando aludi a personagens ressurgidos em novos contextos. Cotidianamente, estamos a um passo do mau passo. Titubeamos e somos arrastados à trilha da idiotia. Trocando as bolas, fazemos do vício uma virtude. Algumas das melhores literaturas surgem de nossa dor, ou quando nos despimos de nós mesmos e nos colocamos na pele do outro. Não é para qualquer um. Escrever do umbigo feliz é simples, cavoucar nas próprias entranhas e do mundo à volta, trabalho para cirurgiões da alma. O Baiano que conheci, passados mais de vinte anos, me transporta ao tempo de juventude, quando experimentava sensações e frequentava lugares malditos. Ele era ajudante de ordens, misto de guarda-costas e braço direito do falecido traficante negrão Adilson, ex-policial militar que enveredou na senda criminosa e mantinha um estabelecimento, desses bares gradeados que só admitem o ingresso de conhecidos por meio de senha. Ali traficava sob o disfarce das cervejas e fichas para mesas de sinuca. Poucos sabem sobre Bill, um dos fundadores do A.A, mas ele afirma que tomou LSD depois que parou de beber. Longevos veteranos dos grupos mais antigos sequer desconfiam. Caso soubessem, talvez atribuíssem falsidade à informação oriunda do pioneiro, em relato de punho. O horizonte é o mesmo para todos, cores e perspectivas variam por motivos individuais. Escritor, um “sniper” do alheio com o detalhe ampliado à distância. Não existe ficcionista mais capaz, em termos de criatividade, do que as circunstâncias e situações oferecidas pelo cotidiano. Tudo é a capacidade de reproduzir esses conteúdos de forma literária. Muitos conseguem. Desconheço autor bem-sucedido que não seja um paciente observador.

Anos 70, início dos 80. Eu lembro que pobres andarilhos batiam às portas e pediam copo d’água, bolacha ou pão com manteiga, os mais confiantes. Eram atendidos, ou escutavam a senha negativa – “Não tem pão velho” – gritada das janelas e basculantes (antes de popularizar o olho-mágico, existiam as portas com caixilhos e dobradiças, vidro fosco para espiar e abrir). Hoje, nem chegam próximo às portas, grades e guaritas impedem a aproximação. Mas ainda deixamos o lixo para revirar, se vierem no dia correto, porque até o descarte tem regramento. E a guerra segue, paciência é virtude do sitiante. Lá dentro eles não enxergam, mas os sapadores trabalham. Vão entrar pelo túnel. Nosso problema é egoísmo. Queria ser bom o tempo inteiro, gostaria de ser justo, mas os limites da minha ética e bom-mocismo terminam nas fronteiras da fome. Do outro lado é a mendicância. Pensando alto, voo baixo para sair do aquário. De vez em quando, se foder um pouco é muito bom para o poeta e o prosador. Um autor na maciota, estabilizado e tranquilo, nem sempre escreve o fino extraordinário. Acho que o fenômeno ocorre porque, bolso cheio e grana sobrando, a mente dedica maior tempo às coisinhas boas da vida. Tese baseada em relato de colegas e experiência. O que é lixo cultural? Não cerro fileira com aqueles que validam os conteúdos de determinadas letras de música. Abusivas, machistas, apologia ao tráfico, ostentação de riqueza. Então, como posso ser a favor da liberdade de expressão, se aqui me arvoro direitos de impor limites? Ah, mas tem a ética. Sim, ética de quem, de qual ponto-de-vista? Sou eu, então, quem proclama os ditames da moralidade? Me tirem dessa cruz.

Convivemos pacificamente com o legal imoral. Aquilo que não preciso, mas quero receber assim mesmo, porque tenho direito. Ou ainda: aquilo que me constrange ao receber e justifico o benefício com a alegação “não fui eu quem fez a Lei”. Temos que pensar sobre essas coisas e começo por mim. Falam em pós-verdades, termo recente e pouco conhecido, mas todos sabem o significado, gostamos de praticar às vezes, sempre o fizemos, porém com outros nomes. É bem fácil entender: pós-verdade é quando decidimos que as coisas são do jeito que desejamos, e não do jeito que realmente são de fato. E vêm distorcidas pela visão de mundo dos outros, geralmente nossos antagonistas. Tudo vem goela abaixo. As crianças de hoje, como as de ontem, ainda nascem torcedoras de futebol. Ou pais as recebem com a decisão tomada, desde o ventre já estavam adquirindo itens com as cores de seus clubes prediletos. Com a pátria de chuteiras, tem sempre alguém que extrapola o grito e começa a zurrar.

Ao contrário do conto do mestre Dalton Trevisan, aquele corpo nominado Baiano, ao invés de Dario, o personagem que tombou na rua e, aos poucos, teve roubados seus pertences, nada oferecia à subtração do alheio. Em verdade, desconheço se veio a óbito. Comprei o leite mais barato e parti. “Piedade de Leão”, diria Clarisse Lispector. Mas o cachorro é amigo de quem o alimenta. O homem não é amigo de quase ninguém, embora ame e cuide dos seus animais de estimação. Confirmei o entendimento sombrio ao ouvir uma senhorinha, em meio aos curiosos, sádica e saciada com a desgraça miserável do outro, que não considera irmão. “Borracho fodido podre de bêbado chapado de tudo que tem direito e esteja ao alcance do bolso na mão grande ligeira do safado incorrigível”. Ela gritou, dirigindo-se a um dos cachorros que vieram consigo, soltos pela avenida, acostumados a perambular. O cusco de rabo abanando correu para cheirar a bunda do homem atirado ao léu, caído com a calça de moletom meio arriada, as cuecas também, deixando uma nesga do velho “cofre” ao relento, vergonha exposta para coroar a decrepitude dos caídos e a sordidez das plateias. “Chispa, raspa! Não vai me lamber esse lixo”.

Precisamos nos reinventar como gente. Não sei em que momento vai acontecer, o mundo engatinha em processo renovatório, o caldeirão ferve e nós borbulhamos. Imperativo jogar fora os entulhos ideológico e dogmático. Não temos o melhor dos mundos, mas é o único que existe para vivermos. Se fosse ideal, não haveria tanta desigualdade entre pessoas do mesmo país e entre os países entre si. E os que defendem a desigualdade, porque as pessoas não são iguais, geralmente vieram ao planeta com a cama feita para o sono tranquilo. Nosso motor bate biela quando as medidas internas milimétricas estão desproporcionais e precisam ser calibradas. Defeito de fábrica, as engrenagens acabam forçando o eixo excêntrico até entortar. Recomenda-se retífica e talvez não resolva. Somos canalizadores, verter esgoto é opção. Eu aprendo, acima de tudo. Quero ser humilde o tempo inteiro, mas nem sempre consigo. Quero ser justo, sem a falsa moralidade do imparcial utópico. Quero ser mais espírito, mas a matéria me puxa pra baixo. Estou vivo, afinal.

Não me incomoda a pecha de tolo obscurantista. Quando falam em depressão, para além do que é científico e reconhecido, imediatamente acende uma luz de alerta em mim. E pisca, pisca, pisca, “dizendo” o espírito quer ajuda – o espírito pede atenção – o espírito quer ser reconhecido espírito. Digamos que eu fosse dos que rejeitam. Validaria coisas simples como cócega, coceira, fome, vontade de mijar, fazer sexo ou cocô, além de sentimentos (rancor, alegria, tristeza). Se nada existe, senão em nós mesmos – inominável, imaterial, imponderável, intangível – por qual motivo não saio enlouquecido, sem moral ou fingindo moralidade, vendendo deus e a mãe? O que segura quem não acredita em nada e anda na linha? De onde surge a ética que faz boa parte das pessoas respeitar as outras, ainda que sejam constantemente vilipendiadas e enganadas pelos que deveriam protege-las e conduzi-las? É o medo da punição? Temos coragem de agir errado e não o fazemos por vergonha. Eventualmente, seríamos apanhados.

Antigamente, bem antes do muito antigo, e mesmo do vetusto, as pessoas reclamavam da vida com um sonoro “benzadeus”. Hoje piorou de tal forma que é praticamente impossível o lamento sem o uso de nomes impronunciáveis, geralmente mais de um, no mínimo três. No século vinte, a mania japonesa de tirar retratos era motivo de chacota. Neste início de século vinte e um, todos somos “japoneses” e a piada perdeu a graça. Alienado, dizíamos de quem não queria ouvir falar em política. Agora inverteu e, quanto mais ideologia, maior a cegueira e o isolamento. Salário parcelado? Dizem para achar normal, poderia ser o desemprego. Desemprego? Agradeça, poderia ser a morte. No século passado, quando fui criança, professores e pais sensatos nos alertavam para tratar a todos igualmente e evitar as “panelinhas”, coisa de gente maldosa, acostumada a olhar o próprio umbigo e cagar para os outros. Eles mentiram, ou ensinaram errado. O mundo ainda pertence às panelas e o que sonhamos está a caminho, para quem vier depois e muito depois de nós. Façamos a nossa parte.

-


PROFISSÕES DO FUTURO




Em que mundo os nossos filhos viverão daqui a trinta anos? Penso a respeito e considero a velocidade dos avanços tecnológicos, impactos nas relações de trabalho, mudanças nas relações interpessoais. O que hoje parece impensável, inconcebível por incrédulos, em algumas décadas será realidade.

Ninguém suspeita, mas paira sobre muitos o mesmo espectro fantasmagórico que assombra aos cobradores de ônibus e taxistas, sem falar nas profissões obsoletas que caducaram faz tempo. No limiar do amanhã, pilotos de avião e motoristas serão raros, assim como hoje é difícil encontrar um afiador de facas perambulando pelas ruas. Até os médicos, que as pessoas acreditam insubstituíveis, breve serão enxugados. Restarão alguns especialistas que irão apertar botões e ativar interfaces para as máquinas fazerem diagnósticos e demais procedimentos, incluindo alta complexidade.

Nesta aurora do século vinte e um, como orientar a uma criança para o rumo correto de eventual vocação, no momento em que ela se manifestar, se logo ali adiante as profissões serão diferentes? Ocupações terminam e surgem outras. Tudo muda o tempo inteiro, foi assim ao longo da história, embora nunca com tamanha rapidez.

Haverá trabalho para todos? No futuro deste “mundo líquido”, quais serão as ocupações perenes? Não pense em forças armadas, pois os soldados também serão substituídos e as guerras uma exclusividade das máquinas, controladas à distância ou autônomas.

Que restará, aos descartáveis de todas as áreas do conhecimento, senão a esperança da reciclagem e o aprendizado de novo ofício, além de enorme concorrência? Haverá escapatória nesta sinuca de bico?

Quem sonha com o melhor para os seus filhos deveria refletir a respeito, enquanto há tempo, antes que acorde e descubra um pesadelo em realidade. Eu penso nisto, enquanto observo o angélico ressonar das crianças, soberanas na tranquilidade da inocência.

-


CURURU




Releio o primeiro tomo da obra “Em busca do tempo perdido” para reencontrar um Proust abastado, criança frágil, paparicada na França de fins do século dezenove. Estranho para quem é acostumado aos nossos memorialistas. “Oh! que saudades que tenho. Da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais!” Para além dos “oito anos” de Casimiro de Abreu, me identifico com outros meninos. O Grapiúna, de Jorge Amado. No Espelho, o Fernando Sabino. No Engenho, José Lins do Rêgo. Voei ao lado do Fernandinho, pelas mãos de Erico Verissimo, em “As aventuras do Avião Vermelho”, o primeiro livro a me cativar, recém alfabetizado e atento às ilustrações de Vera Muccillo na clássica versão da Editora Globo de Porto Alegre.

Na mesma época as crianças ouviam disquinhos coloridos. Fantásticas narrativas ilustradas com rica sonoplastia. Adaptações fonográficas que nos embalavam em aventuras de gigantes ciclópicos, princesas em mil e uma noites, tapetes voadores, quarenta ladrões, sete anões, alvíssimas donzelas envenenadas, beldades adormecidas, caçadores de lobo selvagem, vovozinhas indefesas, meninas solitárias percorrendo estreitas veredas em florestas sombrias, abismos, sendas obscuras, bruxas em contos horripilantes, geralmente os melhores, superando as lições de moral nas fábulas de inseto e bicho falante. Grandes clássicos da literatura infantil de todos os tempos. Nos anos setenta do século vinte aquelas histórias eram inocentes, o Negrinho do Pastoreio vinha nos acudir quando o chamávamos em reza para ajudar no busca do estimado que perdíamos pelo caminho, não surgira quem as acusasse pelo insuspeito tom de crueldade, justamente o que nos fazia vibrar, porque ao final os heróis triunfavam, estropiados como Rocky Balboa no minuto derradeiro da última luta, em cena de agonia interminável, quando o garanhão italiano é surrado como Cristo na via sacra e retorna do canto sombrio no ringue, aonde fora subjugado às cordas, para anunciar o reino da bem-aventurança na luz eterna do deus boxeador que protege aos ítalo-americanos.

Muito rico tudo isso, mas estou para contar a realidade de homens que foram criança noutro tempo, quando era possível cair no chão, ralar o joelho e se aprumar por conta, simulando tranquilidade no momento de retornar a casa, rezando para não ser descoberto, senão era castigo ou carraspana, beliscão e croque, na melhor das hipóteses. Um companheiro de infância, vi com estes olhos, chegou a apanhar de cinto. Mais bizarro, coitado, antes das surras, obrigado a buscar a tira em couro de fivela grossa no armário do progenitor. Entregava o instrumento nas mãos do algoz e sofria a humilhação do vergaste com plateia. Os amiguinhos impotentes. Apesar de tudo, vingou médico. Bem de vida, o pai de família. Ainda hoje prescindo de suas habilidades terapêuticas. Nalgumas coisas evito riscos desnecessários, o seguro morreu de velho e aquelas surras foram descontadas no irmão mais novo. Tratava a mãe aos gritos, ameaçava agredir, não duvido que tenha agido covardemente, o ingrato. Jeckyll.




A partir deste ponto, o que passo a narrar remonta ao finalzinho dos anos setenta, um tórrido janeiro na localidade de São Marcos, Uruguaiana, à beira do rio Uruguai. No outro lado o solo argentino, visível a olho nu e mais nítido se aproximado a binóculo. As barrancas, os capões e a mata fechada, pedaços de campo aberto, chalanas de pescador amarradas às margens. De vez em quando, homens fardados em barcos metálicos cinza-chumbo, numerados em letras pretas, uma metralhadora de grosso calibre apoiada em tripé giratório protegido por uma couraça na casamata de proa. Ao lado o pequeno mastro, envergado, revoluto com o tremulante pavilhão azul e branco. Para mim, apenas patrulhas em movimento cotidiano, sequer desconfiava que o país vizinho amargava anos de chumbo, mas conhecia um pouco da nossa realidade, o tanto quanto era possível a uma criança, por causa das discussões em família. Meu tio oficial do Exército Brasileiro e o avô materno uma liderança do antigo partidão. O “Urutau Vermelho”, marcado na paleta desde que retornara do exílio, cassado em seus direitos fundamentais e até expropriado, uma vez que perdera a titularidade de um cartório de registro de imóveis cuja matrícula lhe fora assegurada no governo Getúlio Vargas, por intermédio de Batista Luzardo, num daqueles emaranhados ideológicos paradoxais, embora não muito distantes do que enxergamos hoje, ou desde de sempre, nos bastidores da intrincada política brasileira, orgânica por fisiológica.

A parentalha e os agregados organizavam memoráveis festas de Natal e réveillon, às vezes avançando os primeiros dias do ano, não raro o mês inteiro em atividades de toda ordem, desde simples pescarias de lambari a caniço ou rede malha fina, churrasqueadas de ovelha carneada no pátio e as complicadas operações logísticas rumo às fazendas de não sei quem, nas lonjuras de sei lá onde, estância adentro serpenteando trilhas. Locais estratégicos para sediar acampamentos-base, pesca embarcada e caça. Capincho, marreca, perdiz e toda a carne exótica que fosse possível derrubar a tiro. Minhas primeiras lições em alvo fixo, ou balouçante, aconteceram em fundas, atiradeiras, pistolas e espingardas de pressão, esta última em mola dupla. O melhor eram as carabinas vinte e dois, cápsulas deflagradas às escondidas dos adultos, sob a cumplicidade dos primos mais velhos, geralmente como suborno para comprar o meu silêncio. Às vezes, o inadvertido caçula dos netos homens presenciava alguma molecagem secreta, como apropriação indevida de equipamento de uso exclusivo. Deus o livre, pegar as coisas do velho sem permissão, mesmo que soubéssemos fazer uso racional e tivéssemos o máximo zelo.

Aqueles eram tempos de pescarias noturnas, empreitadas que se tornavam exequíveis graças à queima de uma mistura de folhas secas de eucalipto e bosta seca de vaca. Fumegávamos o acampamento para afastar as nuvens de mosquito, de modo que a atividade deveria se prolongar enquanto houvesse insumo para alimentar o fogo. Na prática, terminado o “bostefom” e recolhidos os anzóis, ainda continuávamos à beira d’água porque os adultos não haviam bebido todas as cervejas acomodadas em isopores enormes, repletos de gelo. Álcool, e refrigerante nunca faltou, tampouco o lanchinho para beliscar. A coisa se arrastava até o amanhecer e as crianças precisavam encontrar o meio de combater os insetos, geralmente no interior dos automóveis com os vidros fechados e isso também não dava certo, pois sempre havia um primo gaiato que resolvia peidar ali dentro e todos saíam porta afora. Enojados, o engulho.

Meu avô costumava se refugiar nos fundos do pátio, enfiado na meia-água de madeira com o telhadinho avançado que fazia as vezes de varanda. Lá dentro guardava as ferramentas e o material de pesca, facas campeiras, facas comando, facas de lâmina curva para os filés de peixe, facões, espada, ponta de baioneta, duas ou três espingardas em boas condições, acondicionadas em estojos de couro ou lona militar, cartucheiras de vários calibres e muitos vidros bizarros, espalhados por todos os lados, acomodados em prateleiras afixadas às paredes. Eu passava horas absorto naquela coleção de horrores. O enorme couro de sucuri estendido de fora a fora. Animais empalhados, potes de vidro com cobras, escorpiões e aranhas conservados em formol. Cabeças de surubim, piranha seca, arcadas de tubarão, pé de coelho, guizo de cascavel, lascas de pedras com fósseis de plantas e bichos esquisitos, pele de onça, armário de tralhas, uma escrivaninha empoeirada e o baú inescrutável. Fotografias amareladas, presas com fita adesiva ou ajustadas nas frestas entre os encaixes das paredes. Imagens de locais que eu admirava com ar de encantamento, paisagens de cachoeiras e rios caudalosos, homens brancos posando ao lado de índios, caçadores paramentados, gaúchos a cavalo e pescadores em acampamentos às margens de lagoas, igarapés, terrenos pantanosos. Tropa de milícia numa gare de estação férrea, meu avô em armas e trajes revolucionários e a vó com uma expressão de incredulidade, miudinha a ponto de ficar ainda menor do que já era, apavorada com a cara de tacho. No final da vida, não ouso julgá-la, aproveitava uma ou outra oportunidade e espezinhava o velho com a amarga tirada que resumia numa frase os altos e baixos do casal, advindos das convicções políticas sustentadas a maior parte do tempo por meu avô. “Aquelas bobagens do Ulisses”. Apesar da evidente rusga ideológica, meu tio militar e o velho comunista encontraram o meio termo da boa convivência no gosto em comum pelas pescarias e caçadas. De vez em quando aconteciam os arranca-rabos, esculacho em altos brados, minha tia chorando num canto, a vó noutro e os desafetos encerrados em silêncio mútuo que era brevíssimo, até o fim do porre. No dia seguinte despertavam renovados, como se nada houvesse acontecido.




Nunca fui dedo-duro, leva-e-traz do anjo mau. Entretanto, as primeiras impressões sobre a realidade crua do mundo, depreendi de lições que tomei com os primos mais velhos e meu irmão. Dentro da minha própria casa, aqueles que deveriam proteger e conduzir, apontar o caminho seguro, foram os primeiros a demonstrar na prática o que eu iria entender bem mais tarde, na vida adulta. O evangelho segundo Satanael, irmão de Jesus: não se pode esperar muita coisa de quase ninguém. Sobrevivi a engodos mercantis, trapaça em jogos de carta ou tabuleiro, geralmente eles mudavam as regras conforme lhes aprouvesse, e tornavam ao regulamento oficial com incrível desfaçatez, bastava surgir no ambiente lúdico alguém mais velho interessado em acompanhar de perto o joguinho dos meninos. Os grandes apreciavam torturar os pequenos, na ausência dos que eram ainda maiores. Sevícias, covardias físicas e morais. A mais frequente, espécie de combinação maçônica, consistia em fazer algo errado e colocar a culpa sempre no pequeno, confirmando a perfídia em uníssono, numa eventual inquirição adulta.

Tive sorte. Os primos da “primeira fornada”, enquanto eu era criança e outros adolescentes como meu irmão, lá pelas tantas resolveram me proteger, entregando aos respectivos pais o verdadeiro boletim de ocorrências da família. Tudo mudou, a partir de então. Também me vinguei e fui malvado, embora miúdo e fraco, porém ardiloso e indócil como um vira-latas que avança por trás e mordisca a batata da perna sem o alarme do latido. Equívocos resultam da ausência de explicações, detalhes omitidos por displicência ou falta de didática. Haja tato para construir uma linguagem capaz de entusiasmar o imaginário do inocente, aquilo que se aprende e nunca esquece.

Naquele entardecer, ao cruzarmos um campo para acessar o pesqueiro, os adultos seguiam de camionete pela estrada e o vô liderava a tropa de netos pelo atalho, topei a presa ideal para finalmente estrear no clube da carnificina. Seria uma oportunidade. A tradição familiar. Hábeis pescadores, peritos em rastros, caçadores impiedosos. Nosso mundo me autorizava a prosseguir. No juízo de menino aos oito anos, acostumado à morte matada de qualquer animal voador, nadador ou sob patas, não houve dúvida se precisava autorização para erguer uma pedra monumental, absurda frente à capacidade de tração dos meus bracinhos finos, carregar alguns metros e largar ruidosamente sobre um enorme sapo cururu, quase à beira do rio. O bicho arriou, achatado na lápide, esbugalhou os olhos e soltou um breve ronco. Sofrer as agruras do mártir pequerrucho e saber que a morte de animais era corriqueira entre nós, guerreiros pescadores e caçadores, deveria justificar meu ato, embora naquela idade eu não tivesse a capacidade de formular com essa verve. A criança reage aos estímulos oferecidos pelos adultos, mas também reproduz suas atitudes, bons e maus exemplos. Ainda assim, meu avô não teve escrúpulo ou discernimento, pois imediatamente me passou uma descompostura em altos brados, furibundo. “Animal, estúpido! Vou contar a tua mãe e ela vai te deixar de castigo sem tevê. O pobre bichinho não te faz nada”.


Um comentário:

  1. Prévidi,

    Saiu no UOL uma notícia de uma moça chilena que, à época, negou-se a cantar “Um Milhão de Amigos’ – do Roberto, nas masmorras da ditadura do Pinochet.
    Isso é notícia? Por que a UOL coloca isso à tona? Pra mim está claro, eles querem estabelecer um paralelo entre a ditadura do Pinochet e o governo do Bolsonaro. É o ‘mimimi’ terceiro turno.
    Ninguém vai me pegar em armadilhas. O regime do Pinochet não foi mole, e houve sim torturas, muitas. Mas o que gerou isso? Isso veio de graça?
    Estou lendo ‘Paula’ – da escritora chilena Isabel Allende – não, ela não é filha do Salvador Allende, o presidente chileno morto quando da tomada do poder em 1973, este é um tio distante da escritora do best seller ‘The House of the Spirits’. O livro ‘Paula’ é lindo, mas isso não vem ao caso. Isabel, obviamente era uma escritora esquerdista e apoiadora do parente Allende famoso. Lá por meados do romance era toca na eleição, nos três anos do regime esquerdista e na tomada do poder pelos militares. O importante é o que ela, mesmo tendo parti pris nesse (des)governo, coloca, assim mesmo, nas páginas de sua obra.
    Eis um resumo:
    Caos total, muito semelhante à Venezuela e aos governos petista recente que tivemos por aqui. Allende, não havia 2º turno, foi eleito só com 38% dos votos, portanto governou sem maioria parlamentar e sem apoio de quase ninguém, a direita, por razões óbvias, a esquerda, por achá-lo pouco ousado. Não havia esparadrapos, algodões nos hospitais, faltava de tudo nos mercado, faltava combustível para os automóveis (ela fala que ganhou um presente de um amigo argentino, dois rolos de papel higiênico!). Ele havia encampado as grandes multinacionais exploradoras de minerais – cobre e outros, estava para encampar os bancos todos, um caos! Muito parecido com o ocorrido na nossas eleição recente, pois também lá as famílias se dividiram, ódios entre irmãos, etc. Na realidade, tudo palavras da esquerdista Isabel Allende – duvidam, leiam o livro -, o povo, em desespero total, implorou aos militares par intervirem, ‘just like 1964 por aqui!’.
    E comunista não gosta de pobreza, pobreza só para o povo. Os presidentes chilenos até então moravam em uma residência simples no Palácio do Governo. Pois o ‘comunistinha’ comprou uma mansão na capital para servir como sua residência (Lulla e o aerolulla), e sempre andava pelas ruas com uma enorme comitiva e aparato de dar inveja ao governo norte-americano. Pediu, levou, portanto cantemos todos ‘Um Milhão de Amigos”, ou “Eu te amo meu Brasil’ – do Dom e do Ravel.
    Abraços.

    ResponderExcluir