PORTO ALEGRE JÁ FOI PARIS - 2
Márcio Pinheiro, o garimpador de textos brilhantes, publicou no Facebook a segunda parte do texto do Sergio Jockymann
Pensei em ser complacente, mas depois de dar outra voltar pelo Centro, decidi ser impiedoso. Todos vocês, pobrezinhos, jamais saberão o que era uma confeitaria alemã. Babo só de lembrar a Jam, ali na Marechal Floriano, onde se dava o golpe de misericórdia na virgindade renitente da namoradinha, pondo uma fatia de torta na sua frente. Ou, então, nas tardes de inverno, pedindo um chocolate à espanhola, acompanhado de bolinhos de creme. No dia em que começaram a pedir torrada americana, senti que a Jam estava com os dias contados. Não levou nem seis meses para começarem a tirar as cerejas da cobertura das tortas.
Foram americanos, esses glutões sem paladar, que acabaram com o centro das cidades. Downtown, dizem ele, e isso já define o que eles pensam sobre o centro. Como passam Ketchup até na consciência, não sabem comer qualquer coisa que não tenha gosto de tomate. Para se empanturrar de hambúrgueres, foram fechando os cafés e restaurantes e colocando bancos em seu lugar. Fizeram essa indignidade no mundo inteiro, mas foi Porto Alegre que se ressentiu mais, porque ela estava tomando um jeitinho de cidade de respeito. Claro, havia a Voluntários da Pátria e quem quisesse desafiar a morte ia para a Cabo Rocha, onde as necessidades da juventude viveram seus momentos mais atrozes.
Mas aqui mesmo no Centro, havia o Marabá, meio puxando para bagunça, e o Maipu, que sempre teve a melhor típica da cidade. Eram casas de muito respeito e nunca se viu ninguém passar a mão em nada abaixo da cintura. Quando uma das damas ria alto demais, era passada automaticamente para o chá-da-índia que era servido em lindos copos de uísque. Eram extravagantes essas senhoras em matéria de bebida. Era tocar um tango e elas largavam a cerveja e pediam um vermute. Provavelmente foi essa terrível mistura que impediu que a maioria delas chegasse à velhice. Por sinal, já que se fala em pelancas, nunca se viu um só espetáculo de strip-tease num desses estabelecimentos. Mesmo no American Boite, que ficava nos confins da Voluntários, as vedetes frívolas que dançavam aqueles blues de cinema sempre cruzavam as pernas quando tiravam calcinhas. O respeito só se foi quando dois desavergonhados abriram ali na Siqueira Campos um horror de boate chamado Buraco Quente. Foi o fim da sutileza e o início dos bancos. Todos nos pressentíamos que a aids era uma questão de tempo.
Mas naqueles tempos amáveis, em que os pecados eram pagos com Penicilina G Sódica, de três em três horas, quando o dia se anunciava no alto da Santa Casa, o Centro se dividia. Os que iam dormir preparavam o sono com uma canja no Treviso, onde os casais noturnos se separavam gentilmente, e o que estavam acordando iam em busca de um café com leite no Matheus. Ah, o pão! Todos eles pareciam ter sido multiplicados pelo Filho de Deus naquela madrugada. Brancos, quentes, perfumados. A manteiga se enlanguescia dentro deles e o queijo se derretia de puro prazer. Mesmo quando trovejava lá fora e a rua se transformava num rio, era tomar o café com pão e manteiga e o sol se abria e a vida ficava linda. Nunca vi, em mais de trinta anos de Matheus, uma só briga ao amanhecer. Nem mesmo a mais leve discussão jamais conspurcou aquela modorra que vinha do estômago e se espalhava pelo corpo inteiro. Mas que, eu pergunto quem, pode ficar santificado no início do dia tomando uma coca cola gelada e mastigando hambúrguer com capim? Perdão, alface. Basta olhar para a cara feroz que todos os jovens têm pela manhã para saber que essa coisa toda está acabando com eles.
Nenhum comentário:
Postar um comentário