Sexta, 12 de abril de 2019





Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE NÃO TENHO PRESSA







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NÃO É PARA FRACOS!

Não me canso de agradecer a todos os que contribuíram ou que irão contribuir com a vaquinha do Blog do Prévidi. É muito legal! Também é muito bom o conforto que me transmitem amigos queridos, amigos que não vejo há muito tempo ou que ainda nem conheço. Afinal, através do Blog nos tornamos todos "conhecidos há muito tempo".
Levar uma traulitada e aguentar no osso do peito não é para fracos.
Agora, se tem apoios, os mais diversos, fica mais fácil.
Olha, estou tranquilo, porque fui condenado por falar a verdade. Rigorosamente a verdade. Transmiti apenas fatos. E isso é "imperdoável"!! Para muita gente, especialmente da classe média consciente, a verdade tem que ser sempre mascarada. Jamais pode ser como um impulso.
Tudo bem, só digo uma coisinha que acredito: AQUI SE FAZ, AQUI SE PAGA.
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especial

Nesta sexta, uma cesta de
ERICO VERISSIMO





Érico Lopes Veríssimo, o mais importante escritor gaúcho, nasceu em Cruz Alta, 17 de dezembro de 1905 e faleceu em Porto Alegre, 28 de novembro de 1975.
Não vou ocupar o tempo de vocês escrevendo sobre ele.
Só publico os livros (li todos):

Fantoche, contos, 1932
Clarissa, ficção, 1933
Caminhos Cruzados, ficção, 1935
Música ao Longe, ficção, 1935
A Vida de Joana D’Arc, biografia, 1935
Um Lugar ao Sol, ficção, 1936
As Aventuras do Avião Vermelho, literatura infantil, 1936
Rosa Maria no Castelo Encantado, literatura infantil, 1936
Os Três Porquinhos, literatura infantil, 1936
Meu ABC, literatura infantil, 1936
As Aventuras de Tibicuera, romance didático, 1937
O Urso com Música na Barriga, 1938
Olhai os Lírios do Campo, ficção, 1938
A Vida do Elefante Basílio, 1939
Outra Vez os Três Porquinhos, 1939
Viagem à Aurora do Mundo, 1939
Aventuras no Mundo da Higiene, 1939
Saga, ficção, 1940
Gato Preto em Campo de Neve, impressões de viagem, 1941
As Mãos de Meu Filho, contos, 1942
O Resto é Silencio, ficção, 1942
A Volta do Gato Preto, impressões de viagem, 1946
O Tempo e o Vento I, O Continente, 1948
O Tempo e o Vento II, O Retrato, 1951
Noite, novela, 1954
Gente e Bichos, 1956
O Ataque, novelas, 1959
O Tempo e o Vento III, O Arquipélago, 1961
O Senhor Embaixador, 1965
O Prisioneiro, 1967
Israel em Abril, 1969
Incidente em Antares, 1971
Solo de Clarineta, memórias, vol.I, 1973; Vol.II, 1975





As Mãos de Meu Filho

Todos aqueles homens e mulheres ali na platéia sombria parecem apagados habitantes dum submundo, criaturas sem voz nem movimento, prisioneiros de algum perverso sortilégio. Centenas de olhos estão fitos na zona luminosa do palco. A luz circular do refletor envolve o pianista e o piano, que neste instante formam um só corpo, um monstro todo feito de nervos sonoros.nBeethoven.

Há momentos em que o som do instrumento ganha uma qualidade profundamente humana. O artista está pálido à luz de cálcio. Parece um cadáver. Mas mesmo assim é uma fonte de vida, de melodias, de sugestões — a origem dum mundo misterioso e rico. Fora do círculo luminoso pesa um silêncio grave e parado.

Beethoven lamenta-se. É feio, surdo, e vive em conflito com os homens. A música parece escrever no ar estas palavras em doloroso desenho. Tua carta me lançou das mais altas regiões da felicidade ao mais profundo abismo da desolação e da dor. Não serei, pois, para ti e para os demais, senão um músico? Será então preciso que busque em mim mesmo o necessário ponto de apoio, porque fora de mim não encontro em quem me amparar. A amizade e os outros sentimentos dessa espécie não serviram senão para deixar malferido o meu coração. Pois que assim seja, então! Para ti, pobre Beethoven, não há felicidade no exterior; tudo terás que buscar dentro de ti mesmo. Tão-somente no mundo ideal é que poderás achar a alegria.

Adágio. O pianista sofre com Beethoven, o piano estremece, a luz mesma que os envolve parece participar daquela mágoa profunda.

Num dado momento as mãos do artista se imobilizam. Depois caem como duas asas cansadas. Mas de súbito, ágeis e fúteis, começam a brincar no teclado. Um scherzo. A vida é alegre. Vamos sair para o campo, dar a mão às raparigas em flor e dançar com elas ao sol… A melodia, no entanto, é uma superfície leve, que não consegue esconder o desespero que tumultua nas profundezas. Não obstante, o claro jogo continua. A música saltitante se esforça por ser despreocupada e ter alma leve. É uma dança pueril em cima duma sepultura. Mas de repente, as águas represadas rompem todas as barreiras, levam por diante a cortina vaporosa e ilusória, e num estrondo se espraiam numa melodia agitada de desespero. O pianista se transfigura. As suas mãos galopam agitadamente sobre o teclado como brancos cavalos selvagens. Os sons sobem no ar, enchem o teatro, e para cada uma daquelas pessoas do submundo eles têm uma significação especial, contam uma história diferente.

Quando o artista arranca o último acorde, as luzes se acendem. Por alguns rápidos segundos há como que um hiato, e dir-se-ia que os corações param de bater. Silêncio. Os sub-homens sobem à tona da vida. Desapareceu o mundo mágico e circular formado pela luz do refletor. O pianista está agora voltado para a platéia, sorrindo lividamente, como um ressuscitado. O fantasma de Beethoven foi exorcizado. Rompem os aplausos.

Dentro de alguns momentos torna a apagar-se a luz. Brota de novo o círculo mágico.

Suggestion Diabolique.

D. Margarida tira os sapatos que lhe apertam os pés, machucando os calos.

Não faz mal. Estou no camarote. Ninguém vê.

Mexe os dedos do pé com delícia. Agora sim, pode ouvir melhor o que ele está tocando, ele, o seu Gilberto. Parece um sonho… Um teatro deste tamanho. Centenas de pessoas finas, bem vestidas, perfumadas, os homens de preto, as mulheres com vestidos decotados — todos parados, mal respirando, dominados pelo seu filho, pelo Betinho!

D. Margarida olha com o rabo dos olhos para o marido. Ali está ele a seu lado, pequeno, encurvado, a calva a reluzir foscamente na sombra, a boca entreaberta, o ar pateta. Como fica ridículo nesse smoking! O pescoço descarnado, dançando dentro do colarinho alto e duro, lembra um palhaço de circo.

D. Margarida esquece o marido e torna a olhar para o filho. Admira-lhe as mãos, aquelas mãos brancas, esguias e ágeis. E como a música que o seu Gilberto toca é difícil demais para ela compreender, sua atenção borboleteia, pousa no teto do teatro, nos camarotes, na cabeça duma senhora lá embaixo (aquele diadema será de brilhantes legítimos?) e depois torna a deter-se no filho. E nos seus pensamentos as mãos compridas do rapaz diminuem, encolhem, e de novo Betinho é um bebê de quatro meses que acaba de fazer uma descoberta maravilhosa: as suas mãos… Deitado no berço, com os dedinhos meio murchos diante dos olhos parados, ele contempla aquela coisa misteriosa, solta gluglus de espanto, mexe os dedos dos pés, com os olhos sempre fitos nas mãos…

De novo D. Margarida volta ao triste passado. Lembra-se daquele horrível quarto que ocupavam no inverno de 1915. Foi naquele ano que o Inocêncio começou a beber. O frio foi a desculpa. Depois, o coitado estava desempregado… Tinha perdido o lugar na fábrica. Andava caminhando à toa o dia inteiro. Más companhias. “Ó Inocêncio, vamos tomar um traguinho?” Lá se iam, entravam no primeiro boteco. E vá cachaça! Ele voltava para casa fazendo um esforço desesperado para não cambalear. Mas mal abria a boca, a gente sentia logo o cheiro de caninha. “Com efeito, Inocêncio! Você andou bebendo outra vez!” Ah, mas ela não se abatia. Tratava o marido como se ele tivesse dez anos e não trinta. Metia-o na cama. Dava-lhe café bem forte sem açúcar, voltava apara a Singer, e ficava pedalando horas e horas. Os galos já estavam cantando quando ela ia deitar, com os rins doloridos, os olhos ardendo. Um dia…

De súbito os sons do piano morrem. A luz se acende. Aplausos. D. Margarida volta ao presente. Ao seu lado Inocêncio bate palmas, sempre de boca aberta, os olhos cheios de lágrimas, pescoço vermelho e pregueado, o ar humilde… Gilberto faz curvaturas para o público, sorri, alisa os cabelos. (“Que lindos cabelos tem o meu filho, queria que a senhora visse, comadre, crespinhos, vai ser um rapagão bonito.)

A escuridão torna a submergir a platéia. A luz fantástica envolve pianista e piano. Algumas notas saltam, como projéteis sonoros.
Navarra.

Embalada pela música (esta sim, a gente entende um pouco), D. Margarida volta ao passado.

Como foram longos e duros aqueles anos de luta! Inocêncio sempre no mau caminho. Gilberto crescendo. E ela pedalando, pedalando, cansando os olhos; a dor nas costas aumentando, Inocêncio arranjava empreguinhos de ordenado pequeno. Mas não tinha constância, não tomava interesse. O diabo do homem era mesmo preguiçoso. O que queria era andar na calaçaria, conversando pelos cafés, contando histórias, mentindo…

— Inocêncio, quando é que tu crias juízo?

O pior era que ela não sabia fazer cenas. Achava até graça naquele homenzinho encurvado, magro, desanimado, que tinha crescido sem jamais deixar de ser criança. No fundo o que ela tinha era pena do marido. Aceitava a sua sina. Trabalhava para sustentar a casa, pensando sempre no futuro de Gilberto. Era por isso que a Singer funcionava dia e noite. Graças a Deus nunca lhe faltava trabalho.
Um dia Inocêncio fez uma proposta:

— Escuta aqui, Margarida. Eu podia te ajudar nas costuras…

— Minha Nossa! Será que tu queres fazer casas ou pregar botões?

— Olha, mulher. (Como ele estava engraçado, com sua cara de fuinha, procurando falar a sério!) Eu podia cobrar as contas e fazer a tua escrita.

Ela desatou a rir. Mas a verdade é que Inocêncio passou a ser o seu cobrador. No primeiro mês a cobrança saiu direitinho. No segundo mês o homem relaxou… No terceiro, bebeu o dinheiro da única conta que conseguira cobrar.

Mas D. Margarida esquece o passado. Tão bonita a música que Gilberto está tocando agora… E como ele se entusiasma! O cabelo lhe cai sobre a testa, os ombros dançam, as mãos dançam… Quem diria que aquele moço ali, pianista famoso, que recebe os aplausos de toda esta gente, doutores, oficiais, capitalistas, políticos… o diabo! — é o mesmo menino da rua da Olaria que andava descalço brincando na água da sarjeta, correndo atrás da banda de música da Brigada Militar…

De novo a luz. As palmas. Gilberto levanta os olhos para o camarote da mãe e lhe faz um sinal breve com a mão, ao passo que seu sorriso se alarga, ganhando um brilho particular. D. Margarida sente-se sufocada de felicidade. Mexe alvoroçadamente com os dedos do pé, puro contentamento. Tem ímpetos de erguer-se no camarote e gritar para o povo: “Vejam, é o meu filho! O Gilberto. O Betinho! Fui eu que lhe dei de mamar! Fui eu que trabalhei na Singer para sustentar a casa, pagar o colégio para ele! Com estas mãos, minha gente. Vejam! Vejam!”

A luz se apaga. E Gilberto passa a contar em terna surdina as mágoas de Chopin.

No fundo do camarote Inocêncio medita. O filho sorriu para a mãe. Só para a mãe. Ele viu… Mas não tem direito de se queixar… O rapaz não lhe deve nada. Como pai ele nada fez. Quando o público aplaude Gilberto, sem saber está aplaudindo também Margarida. Cinqüenta por cento das palmas devem vir para ela. Cinqüenta ou sessenta? Talvez sessenta. Se não fosse ela, era possível que o rapaz não desse para nada. Foi o pulso de Margarida, a energia de Margarida, a fé de Margarida que fizeram dele um grande pianista.

Na sombra do camarote, Inocêncio sente que ele não pode, não deve participar daquela glória. Foi um mau marido. Um péssimo pai. Viveu na vagabundagem, enquanto a mulher se matava no trabalho. Ah! Mas como ele queria bem ao rapaz, como ele respeitava a mulher! Às vezes, quando voltava para casa, via o filho dormindo. Tinha um ar tão confiado, tão tranqüilo, tão puro, que lhe vinha vontade de chorar. Jurava que nunca mais tornaria a beber, prometia a si mesmo emendar-se. Mas qual! Lá vinha um outro dia e ele começava a sentir aquela sede danada, aquela espécie de cócegas na garganta. Ficava com a impressão de que se não tomasse um traguinho era capaz de estourar. E depois havia também os maus companheiros. O Maneca. O José Pinto. O Bebe-Fogo. Convidavam, insistiam… No fim de contas ele não era nenhum santo.

Inocêncio contempla o filho. Gilberto não puxou por ele. A cara do rapaz é bonita, franca, aberta. Puxou pela Margarida. Graças a Deus. Que belas coisas lhe reservará o futuro? Daqui para diante é só subir. A porta da fama é tão difícil, mas uma vez que a gente consegue abri-la… adeus! Amanhã decerto o rapaz vai aos Estados Unidos… É capaz até de ficar por lá… esquecer os pais. Não. Gilberto nunca esquecerá a mãe. O pai, sim… E é bem-feito. O pai nunca teve vergonha. Foi um patife. Um vadio. Um bêbedo.

Lágrimas brotam nos olhos de Inocêncio. Diabo de música triste! O Betinho devia escolher um repertório mais alegre.

No atarantamento da comoção, Inocêncio sente necessidade de dizer alguma coisa. Inclina o corpo para a frente e murmura:

— Margarida…

A mulher volta para ele uma cara séria, de testa enrugada.

— Chit!

Inocêncio recua para a sua sombra. Volta aos seus pensamentos amargos. E torna a chorar de vergonha, lembrando-se do dia em que, já mocinho Gilberto lhe disse aquilo. Ele quer esquecer aquelas palavras, quer afugenta-las, mas elas lhe soam na memória, queimando como fogo, fazendo suas faces e suas orelhas arderem.

Ele tinha chegado bêbedo em casa. Gilberto olhou-o bem nos olhos e disse sem nenhuma piedade:

— Tenho vergonha de ser filho dum bêbedo!

Aquilo lhe doeu. Foi como uma facada, dessas que não só cortam as carnes como também rasgam a alma. Desde esse dia ele nunca mais bebeu.

No saguão do teatro, terminado o concerto, Gilberto recebe cumprimentos dos admiradores. Algumas moças o contemplam deslumbradas. Um senhor gordo e alto, muito bem vestido, diz-lhe com voz profunda:

— Estou impressionado, impressionadíssimo. Sim senhor! Gilberto enlaça a cintura da mãe:

— Reparto com minha mãe os aplausos que eu recebi esta noite… Tudo que sou, devo a ela.

— Não diga isso, Betinho!

D. Margarida cora. Há no grupo um silêncio comovido. Depois rompe de novo a conversa. Novos admiradores chegam.

Inocêncio, de longe, olha as pessoas que cercam o filho e a mulher. Um sentimento aniquilador de inferioridade o esmaga, toma-lhe conta do corpo e do espírito, dando-lhe uma vergonha tão grande como a que sentiria se estivesse nu, completamente nu ali no saguão.

Afasta-se na direção da porta, num desejo de fuga. Sai. Olha a noite, as estrelas, as luzes da praça, a grande estátua, as árvores paradas… Sente uma enorme tristeza. A tristeza desalentada de não poder voltar ao passado… Voltar para se corrigir, para passar a vida a limpo, evitando todos os erros, todas as misérias…

O porteiro do teatro, um mulato de uniforme cáqui, caminha dum lado para outro, sob a marquise.

— Linda noite! — diz Inocêncio, procurando puxar conversa. O outro olha o céu e sacode a cabeça, concordando.

— Linda mesmo.

Pausa curta.

— Não vê que sou o pai do moço do concerto…

— Pai? Do pianista?

O porteiro pára, contempla Inocêncio com um ar incrédulo e diz:

— O menino tem os pulsos no lugar. É um bicharedo.

Inocêncio sorri. Sua sensação de inferioridade vai-se evaporando aos poucos.

— Pois imagine como são as coisas — diz ele. — Não sei se o senhor sabe que nós fomos muito pobres… Pois é. Fomos. Roemos um osso duro. A vida tem coisas engraçadas. Um dia… o Betinho tinha seis meses… umas mãozinhas assim deste tamanho… nós botamos ele na nossa cama. Minha mulher dum lado, eu do outro, ele no meio. Fazia um frio de rachar. Pois o senhor sabe o que aconteceu? Eu senti nas minhas costas as mãozinhas do menino e passei a noite impressionado, com medo de quebrar aqueles dedinhos, de esmagar aquelas carninhas. O senhor sabe, quando a gente está nesse dorme-não-dorme, fica o mesmo que tonto, não pensa direito. Eu podia me levantar e ir dormir no sofá. Mas não. Fiquei ali no duro, de olho mal e mal aberto, preocupado com o menino. Passei a noite inteira em claro, com a metade do corpo para fora da cama. Amanheci todo dolorido, cansado, com a cabeça pesada. Veja como são as coisas… Se eu tivesse esmagado as mãos do Betinho hoje ele não estava aí tocando essas músicas difíceis… Não podia ser o artista que é.

Cala-se. Sente agora que pode reclamar para si uma partícula da glória do seu Gilberto. Satisfeito consigo mesmo e com o mundo, começa a assobiar baixinho. O porteiro contempla-o em silêncio. Arrebatado de repente por uma onda de ternura, Inocêncio tira do bolso das calças uma nota amarrotada de cinqüenta mil-réis e mete-a na mão do mulato.

— Para tomar um traguinho — cochicha.

E fica, todo excitado, a olhar para as estrelas.


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Definição sobre "boato"

Ora, um boato é uma espécie de enjeitadinho que aparece à soleira duma porta, num canto de muro ou mesmo no meio duma rua ou duma calçada, ali abandonado não se sabe por quem; em suma, um recém-nascido de genitores ignorados. Um popular acha-o engraçadinho ou monstruoso, toma-o nos braços, nina-o, passa-o depois ao primeiro conhecido que encontra, o qual por sua vez entrega o inocente ao cuidado de outro ou de outros, e assim o bastardinho vai sendo amamentado de seio em seio ou, melhor, de imaginação em imaginação, e em poucos minutos cresce, fica adulto - tão substancial e dramático é o leite da fantasia popular - começa a caminhar pelas próprias pernas, a falar com a própria voz e, perdida a inocência, a pensar com a própria cabeça desvairada, e há um momento em que se transforma num gigante, maior que os mais altos edifícios da cidade, causando temores e às vezes até pânico entre a população, apavorando até mesmo aquele que inadvertidamente o gerou.


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CHICO

Chamava-se Chico. De quê? Ele mesmo não sabia…
– Gente pobre não tem nome… – costumava dizer.
Tinha sete anos. De dia vendia jornais, de noite apanhava bordoada do irmão mais velho, o Zico, que vivia embriagado.

A mãe havia muitos anos que estava atirada sobre um colchão velho, paralítica, cadavérica, tendo a todas as horas do dia, diante dos olhos baços e sem expressão, o mesmo quadro de misé-ria e desalento: as paredes sórdidas do quarto, donde pendiam molambos, o teto carcomido e cheio de teias de aranha, a janela sem batentes, eterna-mente escancarada, mostrando uma nesga de céu em que nas noites claras se vislumbrava, como uma esmola luminosa, a claridade fugidia de estrelas…

O pai – Chico mal se lembrava disto – morrera por um dia triste de inverno, de peste, e se fora, quase nu, dentro duma carroça velha que ia fazendo tóc-tóc-tóc-tóc. . ., aos solavancos, pela estrada barrenta e sinuosa que ia dar no cemitério.

Chico ouvia sempre dizer que havia lá em cima, no céu, um Deus muito bom e muito severo. que não queria que as crianças dissessem nomes feios nem desobedecessem aos mais velhos. Era um homem muito poderoso, que punha empenho em que todas as cousas na terra andassem direitas e bem feitas.
Surgia, então, na cabecinha do garoto um pro-blema intrincado e insolúvel.

Chico via no mundo (mundo era a cidade em que ele, Chico, morava) gente feliz, rica, alegre; crianças que andavam bem vestidas, que tinham brinquedos surpreendentes e que comiam os doces mais saborosos desta vida. Via, ao mesmo tempo, de Outro lado, os infelizes, os desprotegidos da fortuna, os que rolam pão duro e andavam a ferir os pés descalços no pedregulho das ruas. E o pequeno não podia compreender a razão de tanta desigualdade de sorte no mundo. Como era que Deus, tão bom e tão justo, consentia em que exis-tissem crianças felizes e protegidas, ao mesmo passo que existiam outras, desgraçadas e sós, que, pra ganhar alguns tostões, – magríssimos tostões –, tinham de andar vendendo jornais pelas ruas, à luz adustiva do sol?…

E Chico não compreendia… Não compreendia e ficava pensando, pensando…

Mas não se detinha por muito tempo em tais cogitações, que adivinhava inúteis. A vida ensinara-o a ser prático. Bem sabia que com sonhos e lucubrações não ganharia o seu salário. Por isso se atirava ao trabalho.
– O’ia o Correio da Manhã! O Correeeeio! E assim ia vivendo…


3 comentários:

  1. Érico Lopes Veríssimo,
    Sou dos raros gaúchos que não curtem nem um pouco o LFV, pra mim, gigolô do sucesso do seu pai. Acho suas crônicas de uma chatice sem par, leu uma, leu todas! O seu pai, o genial Érico, juntamente com o Jorge Amado, são – disparados – os maiores autores literários brasileiros de todos os tempos. Achava que tinha lido tudo do Érico, mas vendo a lista concluo que não. Porém, alguns li mais de uma vez, sendo que a saga dos Cambarás devo ter lido umas cinco. Interessante que o ‘Incidente em Antares’ é uma espécie de antecipação do seriado ‘Walking Dead’ (deveriam pagar os direito à família Veríssimo!). Mesmo assim, considero Os Tambores de São Luís, O Cortiço e O Coronel e o Lobisomem as maiores obras da nossa literatura. Interessante que os autores dos dois primeiros eram... maranhenses!!! Os Tambores de São Luís tem mais de 500 páginas e 400 personagens, uma loucura, mas uma obra magnífica! Esse eu já li duas vezes; está em linha para uma terceira leitura! Obra prima!

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  2. Corria o ano de 1952 e eu estudava no Grupo Escolar Rio Branco, vizinho do Colégio Israelita Brasileiro. Ia desde o fim da linha do bonde Petrópolis até o colégio de bonde.
    Para economizar costumava voltar a pé numa longa caminhada. Minha mãe me dizia para sempre caminhar por uma via paralela a Protásio Alves vez que a mesma era “muito movimentada”.
    E assim fazendo caminhava pela Rua Felipe de Oliveira na qual na esquina com a Rua Borges do Canto havia uma Praça onde acredito que ainda esteja uma enorme torre com uma caixa d’água.
    Ali, aos pés da caixa d água sempre naquele horário estava um senhor magro e muito atencioso conosco. Muitos conselhos bons recebi dele e um dos principais foi ler e ler muito.
    Somente muitos anos depois soube que tal senhor era ÉRICO VERÍSSIMO, ele mesmo, creiam.
    Encerro esse breve comentário sugerindo aos leitores e pais que se possível façam seus filhos e netos lerem AS AVENTURAS DE TIBICUERA, menino indígena nascido quando da chegada dos Europeus e “viveu” até o tempo em que Vargas governou nosso país.

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    Respostas
    1. As aventuras de Tibicuera, livro citado acima pelo Jorge, que li em criança, marcou-me pela 'sacada' do autor em tornar o indiozinho imortal, ideia aliás copiado na saga Highlander - cinema.

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