Sexta, 21 de julho de 2020




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA





Escreva apenas para






especial

Nesta sexta, uma cesta
de Moacyr Scliar!




"Formado, eu pensava em dedicar todas as minhas energias à profissão médica. Mas ser ou não escritor nem sempre é questão de decisão pessoal." 




"Quando eu menos esperava, e num gesto quase automático, pegava uma caneta, uma folha de papel, e escrevia. Fui assim colecionando histórias que, no entanto, guardava na gaveta: aprendera a ter paciência."




"Ao fim de seis anos eu tinha uma coleção de textos ficcionais que representavam o melhor que eu podia fazer: se isto não é bom, eu pensava, então não sou mesmo escritor e é melhor largar esta coisa de vez."

A 1ª edição do 1º livro (1968)



Nas verdade, o primeiro livro publicado por Scliar foi "Histórias de um Médico em Formação", de 1962, Mas foi excluído de sua bibliografia oficial, pois ele renegou o livro, considerando-o  “uma obra prematura de um autor que ainda não estava pronto”. Por esta razão, o livro O Carnaval dos Animais (1968) é considerado seu primeiro livro publicado.



Apenas como curiosidade:

(clica em cima que amplia)







Moacyr Scliar (Moacyr Jaime Scliar) nasceu em 23 de março de 1937, na Beneficência Portuguesa de Porto Alegre. Médico,  professor e escritor. Criou-se no bairro Bom Fim, onde as famílias judias se instalavam ao chegar na cidade. Seus pais, José e Sara Scliar, oriundos da Bessarábia (Rússia), chegaram ao Brasil em 1904.  Filho mais velho do casal, que teve ainda Wremyr e Marili, desde pequeno demonstrou inclinações literárias. 




O próprio nome Moacyr já é resultado dessa afinidade. Foi escolhido por sua mãe Sara após a leitura de Iracema, de José de Alencar, significando “filho da dor”. Ele próprio dizia: “os nomes são recados dos pais para os filhos e são como ordens a serem cumpridas para o resto da vida”.

Em 1943, começou os estudos na Escola de Educação e Cultura, também conhecida como Colégio Iídiche, onde sua mãe chegou a lecionar. Em 1948, transferiu-se para o Colégio Rosário, um ginásio católico.

Em 1955, foi aprovado no vestibular de Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde se formou em 1962. Especialista em Saúde Pública e Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, exerceu a profissão junto ao Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU).





Casou-se, em 1965, com Judith Vivien Olivien, com quem teve um filho, Roberto.

Foi professor visitante na Brown University (Department of Portuguese and Brazilian Studies) e na Universidade do Texas (Austin), nos Estados Unidos. Frequentemente é convidado para conferências e encontros de literatura no país e no exterior.

Autor de 74 livros em vários gêneros - romance, conto, ensaio, crônica, ficção infanto-juvenil. Escreveu, também, para vários jornais brasileiros.

Ele tem obras publicadas nos Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Inglaterra, Itália, Rússia, Tchecoslováquia, Suécia, Noruega, Polônia, Bulgária, Japão, Argentina, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Canadá entre outros. Teve textos adaptados para o cinema, teatro, TV e rádio, inclusive no exterior.


Moacyr Scliar é considerado um dos escritores mais representativos da literatura brasileira. Os temas dominantes de sua obra são a realidade social da classe média urbana no Brasil, a medicina e o judaísmo. Suas descrições da classe média eram, frequentemente, inventadas a partir de um ângulo supra-real.



Foi o sétimo ocupante da Cadeira nº 31, eleito em 31 de julho de 2003, na sucessão de Geraldo França de Lima e recebido em 22 de outubro de 2003 pelo Acadêmico Carlos Nejar.

Scliar faleceu dia 27 de fevereiro de 2011, aos 73 anos, de falência múltipla dos órgãos. Estava internado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre desde o dia 11 de janeiro, quando deu entrada para a retirada de pólipos (formações benignas) no intestino. A cirurgia foi bem sucedida, mas teve um AVC no dia 17 de janeiro, durante o período de recuperação. Foi sepultado em 28 de fevereiro de 2011 no Cemitério do Centro Israelita em Porto Alegre.

Moacyr Scliar era torcedor do Cruzeiro, time de futebol de  Porto Alegre. No dia de sua morte, os jogadores do Cruzeiro fizeram uma homenagem para o torcedor-símbolo, entrando de luto na partida contra o Grêmio, que teve um minuto de silêncio.

Hoje, um dos pontos turísticos mais visitados de Porto Alegre é a Orla Moacyr Scliar.

(clica em cima que amplia)



Principais romances:

A guerra no Bom Fim
O exército de um homem só
Os deuses de Raquel




O ciclo das águas
Mês de cães danados
Doutor Miragem
Os voluntários
O Centauro no Jardim
Max e os felinos
A estranha nação de Rafael Mendes
Cenas da vida minúscula
Sonhos tropicais
A majestade do Xingu
A mulher que escreveu a Bíblia



Os leopardos de Kafka
Uma história farroupilha
Na noite do ventre, o diamante
Ciumento de carteirinha
Os vendilhões do templo




Manual da paixão solitária
Eu vos abraço, milhões
A palavra mágica.

Principais contos:

O carnaval dos animais
A balada do falso Messias
Histórias da terra trêmula
O anão no televisor




Os melhores contos de Moacyr Scliar
Dez contos escolhidos
O olho enigmático
Contos reunidos
O amante da Madonna




Os contistas
Histórias para (quase) todos os gostos
Pai e filho, filho e pai
Histórias que os jornais não contam






Pausa

De O Carnaval dos Animais (1963)

Às sete horas, o despertador tocou. Samuel saltou da cama, correu para o banheiro, fez a barba e lavou-se. Vestiu-se rapidamente e sem ruído. Estava na cozinha, preparando sanduíches, quando a mulher apareceu, bocejando:
- Vais sair de novo, Samuel?
Fez que sim com a cabeça. Embora jovem, tinha a fronte calva; mas as sobrancelhas eram espessas, a barba, embora recém-feita, deixava ainda no rosto uma sombra azulada. O conjunto era uma máscara escura.
- Todos os domingos tu sais cedo - observou a mulher com azedume na voz.
- Temos muito trabalho no escritório - disse o marido, secamente.
Ela olhou os sanduíches:
- Por que não vens almoçar?
- Já te disse: muito trabalho. Não há tempo. Levo um lanche.
A mulher coçava a axila esquerda. Antes que voltasse à carga, Samuel pegou o chapéu:
- Volto de noite.
As ruas ainda estavam úmidas de cerração. Samuel tirou o carro da garagem. Guiava vagarosamente; ao longo do cais, olhando os guindastes, as barcaças atracadas.
Estacionou o carro numa travessa quieta. Com o pacote de sanduíches debaixo do braço, caminhou apressadamente duas quadras. Deteve-se ao chegar a um hotel pequeno e sujo. Olhou para os lados e entrou furtivamente. Bateu com as chaves do carro no balcão, acordando um homenzinho que dormia sentado numa poltrona rasgada. Era o gerente. Esfregando os olhos, pôs-se de pé:
- Ah! seu Isidoro! Chegou mais cedo hoje. Friozinho bom este, não é? A gente...
- Estou com pressa, seu Raul - atalhou Samuel.
- Está bem, não vou atrapalhar. O de sempre - Estendeu a chave.
Samuel subiu  quatro lances de uma escada vacilante. Ao chegar ao último andar, duas mulheres gordas, de chambre floreado, olharam-no com curiosidade:
- Aqui, meu bem! - uma gritou, e riu: um cacarejo curto.
Ofegante, Samuel entrou no quarto e fechou a porta à chave. Era um aposento pequeno: uma cama de casal, um guarda-roupa de pinho; a um canto, uma bacia cheia d'água, sobre um tripé. Samuel correu as cortinas esfarrapadas, tirou do bolso um despertador de viagem, deu corda e colocou-o na mesinha de cabeceira.
Puxou a colcha e examinou os lençóis com o cenho franzido; com um suspiro, tirou o casaco e os sapatos, afrouxou a gravata. Sentado na cama, comeu vorazmente quatro sanduíches. Limpou os dedos no papel de embrulho, deitou-se e fechou os olhos.
Dormir.
Em pouco, dormia. Lá embaixo, a cidade começava a mover-se: os automóveis buzinando, os jornaleiros gritando, os sons longínquos.
Um raio de sol filtrou-se pela cortina, estampou um círculo de luminoso no chão carcomido.
Samuel dormia; sonhava. Nu, corria por uma planície imensa, perseguido por um índio montado a cavalo. No quarto abafado ressoava o galope. No planalto da testa, nas colinas do ventre, no vale entre as pernas, corriam. Samuel mexia-se e resmungava. Às duas e meia da tarde sentiu uma dor lancinante nas costas. Sentou-se na cama, os olhos esbugalhados: o índio acabava de trespassá-lo com a lança. Esvaindo-se um sangue, molhado de suor, Samuel tombou lentamente; ouviu o apito soturno de um vapor. Depois, silêncio.
Ás sete horas, o despertador tocou, Samuel saltou da cama, correu para a bacia, lavou-se. Vestiu-se rapidamente e saiu.
Sentado numa poltrona, o gerente lia uma revista.
- Já vai, seu Isidoro?
- Já - disse Samuel, entregando a chave. Pagou, conferiu o troco em silêncio.
- Até domingo que vem, seu Isidoro - disse o gerente.
- Não sei se virei - respondeu Samuel, olhando pela porta; a noite caía.
- O senhor diz isso, mas volta sempre -  observou o homem, rindo.
Samuel saiu.
Ao longo do cais, guiava lentamente. Parou, um instante, ficou olhando os guindastes recortados contra o céu avermelhado. Depois, seguiu. Para casa.


Emocionante entrevista ao Roda Viva, em agosto de 2010




Scliar e eu

Tenho muito orgulho dos contatos que tive com personalidades. De todos os matizes.
Um deles foi o escritor Moacyr Scliar.
Ainda não tinha conversado com ele, a não ser uma rápida entrevista, na década de 1970, quando o médico trabalhou na Secretaria da Saúde do Estado e eu era repórter.
Em 1994 comecei a organizar um livro, "Porto Alegre é Assim!". A minha ideia era reunir amigos e personalidades para falar da cidade. Uma proposta simples, mas que ainda não tinha visto.
Passei um email para o Luis Fernando Verissimo. E, incrível!, ele me respondeu em minutos com um texto sobre a SAPA - Sociedade Amigos de Porto Alegre.
Aí pensei: Se o LFV me respondeu, um nome nacional, o Scliar, outro nome nacional, também vai me mandar um texto". O difícil seria um texto de um "escritor gaúcho que se acha".
Bingo!!
Reproduzo o texto publicado em 2009:

Não adianta negar: faz mesmo calor na capital gaúcha no verão, o que explica o êxodo para o litoral. Mas para aqueles que desprezam o termômetro e sabem ousar, Porto Alegre revela benefícios inesperados.
Um deles é o acesso facilitado à nossa culinária, que rivaliza com a de qualquer outra metrópole brasileira. O problema, muitas vezes, é encontrar lugar, mas este problema some no verão, sobretudo nos fins de semana.
E aí os restaurantes se transformam em lugares amáveis, acolhedores.
A gente tem impressão de estar veraneando.
E está mesmo: tranquilidade, conforto, boa comida - o que mais se pode pedir de um veraneio.

Em 2002, quando editava a revista Press, fazíamos todos mês uma grande entrevista - seis páginas, no mínimo. Um dos entrevistados foi o Scliar, e o papo foi em seu apartamento, no bairro Petrópolis.
Por mais de duas horas, conversamos sobre tudo que se possa imaginar - até mesmo a sua relação com Paulo Coelho, que considerava um "grande marqueteiro", mas não era um bom escritor.
A "prova":










O sobrevivente

De " A Nossa Frágil Condição Humana", de maio de 1978

Vocês já devem ter encontrado com ele na rua, ou num ônibus, ou no cinema, ou numa churrascaria. Provavelmente sua figura não lhes chamou a atenção: um homenzinho pequeno, magro, de óculos, de uns sessenta anos, igual a todos os homenzinhos sessentões, pequenos, magros e de óculos, que andam por aí. É verdade que ele tem jeito de estrangeiro e fala com sotaque — mas afinal, os estrangeiros não são raros em nosso estado.

Da próxima vez que vocês o encontrarem, reparem melhor nele. Vocês verão que tem um tique nervoso: às vezes aperta os lábios, como se estivesse se contendo para não dizer algo, ou talvez para não gritar. Reparem que suas mãos tremem um pouco quando acende o cigarro. Aliás, ele fuma demais: os dedos estão manchados de alcatrão. E notem o jeito furtivo com que olha para os lados. De que tem medo? De que alguém o esteja seguindo?

Isso é o que vocês veem, mas há mais, e vocês bem podem imaginar. Que esse homem dorme mal, é fácil de deduzir; que ele rola na cama de um lado para o outro, que ele fala durante o sono, tudo isso é previsível. Vivemos num mundo conturbado, e não são poucas as pessoas angustiadas, perseguidas por pesadelos que resistem aos tranquilizantes e ao álcool.

Contudo não são problemas familiares que esse homem tem, ou dificuldades com os negócios. Há outras coisas que o inquietam, e destas vocês não sabem.

Vocês não sabem que o homenzinho pequeno, magro e de óculos, estremece cada vez que lê nos jornais notícias sobre o reaparecimento do nazismo na Europa, ou nos Estados Unidos, ou na América Latina.

Estremece quando vê publicados trechos dos Protocolos dos sábios de Sião, obra forjada pela política tsarista, atribuindo aos judeus uma conspiração para dominar o mundo.

Esse homem estremece cada vez que ouve no rádio notícias sobre prisões arbitrárias. Sobre torturas de prisioneiros. Sobre massacre de populações indefesas. Sobre o surgimento de novas e terríveis armas de destruição. São notícias que o inquietam, que o fazem sofrer e que ele não consegue esquecer, apesar de ir ao cinema, de ver novelas na televisão, de ler revistas humorísticas, de passar as férias na praia. Mas quem é esse homem, afinal?

Pouca gente sabe. O nome dele não é desconhecido; é um nome complicado, mas não em código. Um nome, porém, pouco ou nada diz da pessoa. E dessa pessoa pouco se sabe. É europeu, mas de que país? Por que saiu de lá? O que lhe aconteceu para que tenha pesadelos?

Dizem que ele passou pela guerra. Dizem que lutou no gueto de Varsóvia contra os nazistas. Dizem que esteve num campo de concentração, que sofreu fome e foi torturado. Dizem que tem gravado na pele do braço um número - o seu número de prisioneiro. Isso é o que dizem. Pode não ser verdade. Pode ser pura invenção.

Mas o número está lá. O número está no braço do homem. Embora ele procure ocultá-lo, às vezes se distrai e o número aparece.

Perguntem ao homem sobre esse número. Ele ficará confuso, procurará desconversar. Por fim dirá:

- Isto? Não é nada, não. É o número de meu telefone. É que eu sou muito esquecido, sabe? Muito, muito esquecido.





Foto produzida por Roberto Scliar, filho de Moacyr, que morreu aos 40 anos no início deste ano, em Nova Petrópolis, interior do RS, onde vivia.




Roberto, o Beto, foi personagem de inúmeras crônicas do pai.


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