Sexta, 30 de abril de 2021

 

SOU QUEM SOU.
TUA APROVAÇÃO NÃO É NECESSÁRIA.
...

ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA






Escreva apenas para


COMENTÁRIOS: Todos podem fazer críticas, a mim, a qualquer pessoa ou instituição. Desde que eu tenha alguma informação do crítico - nome, telefone, cpf - ou seja, dados. Claro que existem pessoas que conheço e que não necessito dessas informações. MAS NÃO PUBLICO CRÍTICAS FEROZES DE ANÔNIMOS!!





especial

Nesta sexta, uma cesta 
de 
Ignácio de Loyola Brandão! 






Escreve-se para não ser solitário e por amor aos outros; se você não tiver essa solidariedade, é bobagem escrever.


Escrevo, relato minha indignação, meu medo, meu protesto, porque essa é a minha luta.


Nunca sei se a situação será conto ou romance. Sei quando é crônica.






Escrevo para não enlouquecer. Para me divertir também, e para ter prazer. Tenho um prazer imenso em escrever. Escrevo para me salvar. Mas me salvar do quê? Será que alguém sabe por que escreve, por que faz música? Porque alguma coisa empurra a gente.





Ignácio de Loyola (Lopes) Brandão
 nasceu 
em 31 de julho de 1936, em Araraquara, São Paulo. É jornalista, romancista, contista, membro da Academia Brasileira de Letras. 
Alguns prêmios: Prêmio Jabuti de melhor ficção pelo livro O Menino que Vendia Palavras - 2008. O Menino que vendia palavras - Prémio Fundação Biblioteca Nacional, como melhor livro infanto-juvenil - 2007. Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da sua obra - 2016.

Filho de um ferroviário, seu primeiro trabalho no jornalismo foi em uma crítica de cinema no jornal A Folha Ferroviária, em 1952.


Foi para São Paulo em 1957, entrou para o jornal Ultima Hora, onde trabalhou até 1966, tendo sido repórter, colunista, editor de variedades. Em 1966, aos 30 anos, entrou para a revista Claudia, da Editora Abril, passou pela Realidade, uma das maiores revistas dos anos 60, editou Setenta, a primeira tentativa de se fazer um Vogue brasileiro. Passou para a Editora Três, fez Planeta durante cinco anos, depois Lui e Ciência e Vida, organizou coleções de livros.

Entre 1979 e 1990 esteve fora da imprensa, tendo retornado para a direção de Vogue. Seu primeiro livro foi Depois do Sol, contos, em 1965.


Ao completar 56 anos de carreira neste ano, já publicou 45 livros, sendo dois de viagens (Cuba de Fidel e O Verde Violentou o Muro) e o restante são romances, contos, crônicas, infanto-juvenis, teatro). E mais 20 projetos especiais, como histórias de bancos, empresas, clubes de futebol, teatro, textos para livros de fotografias

Dono de um "realismo feroz", segundo Antonio Candido, seu romance Zero foi publicado inicialmente em tradução italiana. Quando o livro saiu no Brasil, em 1975, foi proibido pela censura, que só o liberou em 1979. Além do italiano esse livro foi traduzido para o alemão, coreano, espanhol, húngaro e inglês.

Em 2005, começou a escrever em O Estado de S. Paulo.

Em dezembro de 2010, foi agraciado com a comenda da Ordem do Ipiranga pelo Governo do Estado de São Paulo.


Em março de 2019, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.


Obras

Esportes

A Saga de um Campeão (1996 - sobre o São Paulo FC)

Contos e Crônicas

Depois do sol (1965)
Cadeiras proibidas (1976)
Pega ele, Silêncio (1976)
Obscenidades para uma dona de casa (1981)
Cabeças de segunda-feira (1983)
O homem do furo na mão (1987)
A rua de nomes no ar (1988)
Strip-tease de Gilda (1995)
Sonhando com o demônio (1998)


O homem que odiava segunda-feira (1999)
Calcinhas secretas (2003)

Não ficção

Manifesto Verde (1989)

Romances


Bebel que a Cidade Comeu (1968)
Zero (1975)
Dentes ao Sol (1976)
Não Verás País Nenhum (1981)
É gol (1982)
O Beijo Não Vem da Boca (1985)
O Ganhador (1987)
O Anjo do Adeus (1995)
A Altura e a Largura do Nada (2006)
Desta Terra Nada Vai Sobrar, A Não Ser O Vento Que Sopra Sobre Ela (2018)

Infanto-juvenis

Cães danados (1977). Reescrito e publicado como O menino que não teve medo do medo (1995).
O homem que espalhou o deserto (1989)
O segredo da nuvem (2006)
O Menino que Vendia Palavras (2008)
O Menino que Perguntava (2011)

Viagens


Cuba de Fidel: viagem à ilha proibida (1978)
O verde violentou o muro (1984)
Acordei em Woodstock: viagem, memórias, perplexidades (2011)

Biografias


Fleming, descobridor da penicilina (1973)
Edison, o inventor da lâmpada (1973)
Ignácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus (1974)
Ruth Cardoso - Fragmentos de uma Vida (2010)

Relatos autobiográficos

Veia bailarina (1997)
A morena da estação (2010)

Teatro

Zero (1992)
Tragédias Cariocas para Rir (1996)
A última viagem de Borges (2005)
Não Verás País Nenhum (1981)
É gol (1982)
O Beijo Não Vem da Boca (1985)
O Ganhador (1987)
O Anjo do Adeus (1995)
A Altura e a Largura do Nada (2006)
Desta Terra Nada Vai Sobrar, A Não Ser O Vento Que Sopra Sobre Ela (2018)

Ignácio com a filha Rita Gullo


Nada pior que a memória do gesto não realizado.



Vide televisão

Paisagem diária, repetitiva: deve haver umas quinze pessoas espalhadas no footing, entre os dois cinemas. Footing: passeio, passear, andar. Ninguém anda: nothing. Devia propor a modificação. Passa muita gente de carro. Surgem e desaparecem. Não consigo chegar à conclusão a respeito do desaparecimento deste povo. Por que se enfiaram em suas casas? Apenas a televisão? Ela pode ter sido chamariz justificativo. O argumento final. A descoberta

Quando visito meus parentes, fico deslumbrado com o ritual celebrado religiosamente na sala principal. A deusa quadrada emitindo brilho azulado e as pessoas sentadas. Silenciosamente, diante dela. Absorvendo. Nenhuma deusa dominou tanto os homens quanto esta. Por ela, os homens abandonaram tudo, se entregaram. No entanto, às vezes, pergunto: ela é que atraiu, ou os homens é que fugiram? Da rua, da calçada, do ar livre, do céu aberto, do cheiro de madressilva.

Eu me lembro da minha rua, nas noites de verão, como uma grande assembleia de cadeiras na calçada. Diante das portas as cadeiras se reuniam em roda e alcançavam o meio da rua. Podia-se medir o relacionamento de uma pessoa pelo grupo que se formava em torno dela, depois do jantar.

Recolheram pouco a pouco as cadeiras, e sobraram apenas alguns renitentes solitários, isolados, que não têm com quem conversar. Serão atropelados por um carro, qualquer noite.Tenho horror que me julguem o sacerdote de um culto nostálgico.

O que pretendo dizer é que existiam no mundo situações muito humanas. Contato, reunião, troca de opiniões, conversa, enriquecimento mútuo, alegria no convívio. O povo se isolou voluntariamente ou inconscientemente? De repente, a rua passou a meter medo. Ou foi o poder de atração (sedução) da deusa azulada que modificou tudo?



Nos ônibus, o gado amontoado

Nem o governador nem o prefeito entenderam é que os protestos não são políticos coisa nenhuma. São contra as condições gerais de vida, de qualidade medíocre de vida e, essencialmente, da indigência dos transportes numa cidade enorme como a nossa. Os protestos não são contra os 20 centavos. São contra a vida miserável, expressam o saco cheio. E este é apenas um rastilho, o bicho ainda vai pegar.

O governador, o prefeito, e todos os governadores, secretários, prefeitos, vereadores, ministros, senadores, deputados, nunca entraram em um ônibus. Nunca viajaram em um, não sabem o que significa a batalha diária da condução. Porque todos que nos governam, todos os vereadores, todos os secretários têm veículos oficiais que os levam a toda parte. Não vou duvidar que sejam blindados. O governador e o prefeito se deslocam com batedores à frente. Ou pelos ares, em helicóptero.

Dia desses, Alzeni, doméstica que trabalha em casa há 16 anos, chegou tarde e nervosíssima. Ela subiu no ônibus no Taboão da Serra às 5 h 30, como faz todos os dias. O ônibus veio, veio, veio e quando chegou na entrada da cidade, mudou de rumo, para espanto geral. Foi sair lá na Praça Panamericana, quando, antes, subia direto a Teodoro Sampaio. Reclamações, protestos. O motorista explicou: “Agora mudou o itinerário”. Ou seja, voltas e mais voltas por ruas congestionadas.

Perguntei:

– Mas Alzeni, devem ter avisado antes, preparado, informado, não?

– Que nada, foi de repente. O motorista disse que foi avisado ao chegar de madrugada na garagem.

– Os ônibus têm horário?

– Nunca tiveram. Demoram muito e então um passa lotado. Aí chega o outro, vazio, mas que não para, ninguém sabe por quê. A gente corre atrás, ele para, cheio de má vontade, berrando e explicando: “Tinha lá uns elementos suspeitos, preferimos não parar.”

– Os suspeitos deviam ser vocês (risos).

– Todo pobre e negro é suspeito (raiva). Não sabe como a gente é tratado. Estamos subindo no ônibus e o motorista arranca. Quando chega no meu ponto ali no Taboão, já está cheio. Nesses anos todos eu me sentei umas cinco vezes. Os que estão em pé vão sendo espremidos. No calor as janelas não abrem, fica um suadouro danado. Todo pobre sabe o que é sauna…

– Sem nunca ter entrado numa.

– Assim, você tem um cara te apertando por trás, uma pessoa com uma mochila te apertando pela frente, um malandro se aproveitando e passando a mão. Dia desses, uma moça desmaiou. Falta de ar. Janelas lacradas. Ou então são janelas quebradas e entra vento, chuva. Os motoristas correm quando a rua está livre. De repente, brecam. Todo mundo é socado para a frente. Só não caem porque não tem espaço para cair, uns se agarram nos outros.

Ela sai cinco e meia da manhã, porque se sair às seis ou seis e meia, vai pegar duas horas de trânsito, quando não mais. Claro que vai embora no começo da tarde, é o justo, o acordo.

– E quando dá a louca no motorista e ele não para no ponto? Ouve a campainha, finge que não é como ele. Todo mundo xinga, grita. Sofrem tanto quanto a gente. Isso tudo é desumano, seu Ignácio. Parece gado, a gente é tratado como gado.

Como caminho muito, paro às vezes diante de um ponto, na Cardeal ou na Rebouças, ou no centro. Aquela gente se aperta, se empurra, se espreme. Faço analogia com aqueles equipamentos que reduzem carros a um quadradinho de ferro, em terrenos de sucata. Esse é o povo espremidos no ônibus, meus caros governador e prefeito. Vocês têm cultura, conheceram os trens que levavam judeus para os campos, amontoados em vagões sem ar, sem luz. São nossos ônibus. O metrô? Está igual em numero, gênero e grau.



Entrevista ao https://www.bpp.pr.gov.br/Candido, em abril de 2021, a Luiz Rebinski Junior:


Ao longo da narrativa de Acordei em Woodstock, há espaço para comentários a respeito de filmes, livros e personagens da cultura americana, todas feitas com riqueza de detalhes e de uma forma bastante apaixonada. O livro também é uma espécie de declaração de amor à cultura americana?

Cresci depois da [Segunda] Guerra, quando os americanos intensificaram sua “invasão” no mundo. Via filmes americanos, seriados americanos, estudávamos inglês no ginásio e no científico, líamos Hemingway, Faulkner, John dos Passos, líamos os gibis americanos. Na verdade, eles solaparam a cultura francesa que recebemos com o estudo da língua — falo francês até hoje, o francês que aprendi no começo do ginásio. As mulheres gostosas que víamos nas revistas eram as pin-ups americanas. Mas havia algo naquilo tudo que nos incomodava, apesar de gostarmos. Não sabíamos o que era, tanto que, quando chegou a Nouvelle Vague francesa, caímos de amores por ela e pela divina Jean Seberg. Também caímos nos braços do neo-realismo italiano. Então soubemos que o fake americano nos incomodava, ainda que por lá houvesse grandes cineastas, autores, pintores, poetas. Finalmente entre os 20 e os 30 fomos decididamente anti-imperialistas. No fundo, sou produto de um caldo, de um minestrone.


Você tece comentários sobre várias obras, de Moby Dick a O apanhador no campo de centeio. Mas fala pouco de seus próprios livros — consigo lembrar apenas de algum comentário a respeito de Zero. Pretende um dia repassar sua obra e sua vida de escritor em um livro de memórias?

Depende muito. Na segunda edição de Depois do Sol, após 40 anos, fiz algo que adorei fazer: dezenas de páginas de making-of. Quando saiu a edição especial de 35 anos do Zero, acrescentei 100 páginas de making-of, porque este livro acabou sendo emblemático para uma geração. Quando Não verás país nenhum completou 30 anos, acrescentei um caderno com making-of. Prefiro fazer essas coisas a me voltar para meus próprios livros. Isto é função de algum crítico, ensaísta ou teórico, não do próprio autor. Penso eu. Mas, no fundo, gostaria de publicar um livro mostrando as 700 anotações que fiz para Não verás país nenhum. Seria quase uma edição particular.

Em um dos trechos do relato, você fala de sua “quase” passagem por Cornish, a cidade que J. D. Salinger escolheu para se esconder do mundo nos anos 1950. Salinger foi uma referência para você?

Em termos. Gostei apenas de O Apanhador no campo de centeio, lido há décadas. Nunca mais reli, nem tive vontade. Não foi o livro que realmente me deu um soco na barriga. O que me interessava mais era a construção do mito do escritor refugiado e solitário que ele construiu. Fiquei fascinado com o mistério: por que ele fez isso?

No início de sua carreira jornalística, você foi crítico de cinema em sua cidade, Araraquara (estreando aos 16 anos), foi figurante em O pagador de promessas, o clássico de Anselmo Duarte, e teve algumas de suas obras adaptadas ao cinema. Ainda mantém uma relação íntima com a sétima arte?

Ter sido crítico e ver filmes diariamente me levou a criar todos os meus livros, todos, a partir de uma imagem. Me formei com imagens, elas até hoje me conduzem. Gostaria de ter sido diretor de cinema. É uma frustração que carrego, mas a gente deve sempre levar alguma, para colocar lá na frente como um projeto que nos faça caminhar. Vejo cinema até hoje, tenho uma coleção de DVDs. Tem filme que vejo e revejo. Todos sabem que já assisti 8½, de [Federico] Fellini, mais de 100 vezes. Já contei como a estrutura desse filme influenciou a do Zero, com seus vários planos. Quando Fellini morreu, fiquei de luto. Mas claro que a liberdade de câmera e narração de Godard em Acossado também foi essencial. Ter sido figurante foi uma brincadeira de Anselmo Duarte, que foi um de meus grandes amigos. Estava na Bahia fazendo uma reportagem sobre a filmagem — fiquei 30 dias lá — e um dia ele me colocou em cena. Sou um figurante Palma de Ouro e aquela foto saiu na capa do programa de Cannes...

Além de ter trabalhado no Última Hora, o jornal de Samuel Wainer, e na revista Realidade, você dirigiu por mais de uma década a revista Vogue. Mas em Acordei em Woodstock você se diz hoje pouco interessado no jornalismo. Por quê?

Porque 50 anos de redação são suficientes. Vivi diversas épocas, da linotipia e clichê de zinco, passando pelos fotolitos, até os computadores, ipads, ebook, etc. Há uma certa desilusão com a imprensa. Nos anos finais de Vogue, me especializei em entrevistar mulheres interessantes e inteligentes que desvendavam dois mundos: aqueles em que viveram quando jovens e o de hoje. Gente como Marina Colasanti e Ira Etz, Maria Teresa Goulart, a modelo Dalma Callado, e dezenas de outras que restauravam um modo de vida glamoroso que desapareceu. Até gostaria de publicar essas matérias em livro. Mas a relação com a Vogue é complicada, os direitos são deles. Foi um alívio deixar a redação, os prazos de fechamento, as noites passadas em claro, as cobranças de colaboradores, etc. Também, cá entre nós, fui um jornalista apenas mediano a vida inteira. Ainda que tenha gostado, por exemplo, de ter implantado a revista Planeta, nos anos 1970, algo completamente fora da caixinha, que mexeu com as cabeças ao falar do poder da mente, civilizações desaparecidas, universos paralelos, mistério do além, mundos primitivos. Fui dos primeiros a noticiar que Hilda Hilst tentava ouvir as vozes dos mortos.

Além dessa “pegada” opinativa, Acordei em Woodstock também funciona como relato de viagem e livro de memórias, ou “quase memória”, conforme você escreve na introdução, citando o romance de Carlos Heitor Cony. Foi seu objetivo fazer um livro que pudesse ser lido de diversas formas? Ou seja, essa profusão de gêneros foi premeditada ou simplesmente aconteceu a partir do processo de escrita?

Levo um caderno — ou compro no local. Em Paris uso os Claire Fontaine, que são os dos estudantes franceses... para dar cor local... — e faço anotações. Quase diário, onde anoto inclusive o que gasto, os preços das coisas, certas situações, etc. Recolho ingressos, guardanapos, cardápios, notas de almoços ou jantares, arranco rótulos de vinhos, pego cartões, folhas de árvores de lugares que me marcaram, compro postais, mas não vistas e sim coisas inusitadas. Na volta, escrevo para mim um relato. Woodstock estava pronto e nos dez anos que se passaram entre a viagem e a publicação, fui mexendo, à medida que me vinham lembranças, pessoas, fatos. A certa altura vi que queria mesmo um livro inclassificável, que pudesse ser lido, como você disse, de diversas formas. Há, inclusive, um quase conto infantil dentro. O dos meninos brincando de Moby Dick no quintal de minha casa. O livro estava pronto quando recuperei a história do gerente da Via Veneto, um personagem que me impressionou na época. Há nisso aquela minha vontade secreta de ter sido um personagem semelhante, aventureiro, audacioso, galante (como se dizia), que está em tudo, conhece todos, vive por prazer e também fez alguma coisa pela humanidade. Minha utopia pessoal, que se confronta, dia a dia, com o cotidiano banal de enfrentar a vida para sobreviver. Lembrar que eu era um provinciano, fazia pouco que tinha saído de Araraquara e estava em Roma, um dos centros do mundo. Daí aquele último segmento, depois que tinha acabado o livro. Mas talvez eu não tenha acabado Woodstock. Há nele literatura, memória, jornalismo.

Você é um dos escritores mais prolíficos da literatura brasileira, escrevendo em quase todos os gêneros literários, do conto à literatura infantojuvenil. Como funciona esse processo de escrita? Há compartimentos para cada gênero em seu repertório de escritor? Quando sente que uma ideia é mais apropriada para um conto ou romance, por exemplo?

Leo Gilson Ribeiro, um bom crítico que já morreu, um dia sentou-se ao meu lado, fomos amigos, trabalhamos na Abril juntos, certa época e me disse: “Vou te dar um conselho. Você escreve demais. Tire o pé do acelerador. Os grandes escritores são os que escrevem pouco, são parcimoniosos. Veja o Raduan Nassar.” Raduan sempre foi celebrado por seus escassos livros. O meu “problema” talvez seja a compulsão. Escrevo, tenho de escrever, é o que me dá vida. Talvez eu não seja um grande escritor. Mas sou um escritor. Não estou aqui para disputar corridas de Fórmula 1. Mas dou alguma contribuição no meio de campo, fazendo alguns lançamentos para o pessoal da área. De qualquer forma sinto que tenho dois marcos: Zero e Não verás país nenhum. São aquilo que em golfe se chama longest drive. Acertar o buraco 18 numa tacada só, de longuíssima distância. Não, não jogo golfe, mas sei certas coisas inúteis. Nunca sei se a situação será conto ou romance. Sei quando é crônica. Isso tenho certeza. E quando sei, sento e escrevo e guardo, depois trabalho e retrabalho. Pega ele silêncio seria um romance, que virou conto. Bebel que a cidade comeu seria um conto, que virou romance. Não verás país nenhum começou como um conto, O homem do furo na mão, e se transformou em um romance. Às vezes, sei que é um conto, a situação tem fôlego curto. Aliás, faz muitíssimo tempo que não escrevo um conto.

Recentemente você escreveu sobre a ex-primeira-dama Ruth Cardoso. Aliás, assim como este perfil, você já escreveu vários livros por encomenda. Muitos escritores torcem o nariz para esse tipo de trabalho. Faria algo semelhante com livros de ficção, como costuma fazer Luis Fernando Veríssimo?

Torcem o nariz porque a palavra “encomenda” fere o ideal puro. Aceitei a biografia da Ruth, assim como aceitei a de Olavo Setubal, para buscar saber de que estofo são feitas essas pessoas especiais. Você pode não concordar com a vida de Setubal, mas não pode dizer que ele não foi um empreendedor, um case sobre a empresa privada, os bancos. Os bancos são fascinantes, como são construídos e como agem. De que matéria uma pessoa assim é feita? Como são moldados? Gosto de pessoas determinadas. São personagens. Quanto a Ruth, fiz pela admiração. Fiz porque ela é araraquarense e a mãe dela me deu aulas. Fiz porque foi a primeira e última primeira-dama deste país que criou verdadeiramente o conceito de primeira-dama, a serviço de um povo. Ela respondeu a uma pergunta até então sem resposta: para que ser uma primeira-dama? O que ela fez, Lula e o PT destruíram em seguida. Foi uma mulher que revolucionou o ensino da antropologia. Aceito histórias de empresas quando seus pioneiros e líderes são excepcionais e trouxeram algo de novo e de excitante. Quando um dia escreverem a história da empresa privada no Brasil, vão ter de recorrer aos quase 30 livros que escrevi nesse segmento. Outra coisa, a DBA, editora paulista, ao convidar escritores para escreverem tais livros, mudou o panorama. Antes esses livros eram chapa branca, escritos por um funcionário do marketing da empresa. Hoje são romancistas que dão charme e sabor a esses livros, tirando-lhes o cheiro de coffee table book. Quanto à ficção, não escrevo sob encomenda. Essa me vem do coração.

Um de seus livros mais célebres, Não verás país nenhum, fez 30 anos em 2011. Em se tratando de uma distopia, qual a sua percepção hoje do romance? Muitos problemas detectados ali se acentuaram nas últimas décadas, como a questão ambiental, não?

Apanhe Não verás país nenhum e veja como tudo aconteceu. Violência, congestionamentos, meio ambiente destruído, demagogia sobre sustentabilidade. Quantos dizem hoje que o grande problema do futuro será a água e não o combustível? Não verás... já disse. Havia uma dedicatória que eu sempre escrevia: “Tomara que tal futuro nunca aconteça.” Já aconteceu. Governo e meio ambiente? Serve-se aos interesses de corporações, com esses políticos podres, que vendem seus favores como portas de rua. Por outro lado, sinto em certas empresas uma preocupação e uma tentativa séria de tentar dar um freio à loucura.

Apesar de Não verás país nenhum se ater mais à questão ambiental, o romance é comumente associado a 1984, de George Orwell. O clássico de Orwell lhe influenciou de alguma maneira?

Li o livro do Orwell. Mas o dele fala de uma super civilização, o meu de uma sub civilização, do lúmpen. Li também Admirável mundo novo, de Huxley. Há inspirações que despontam ao longo do tempo e afetam certas cabeças.

Zero, após várias décadas, continua sendo seu livro mais comentado e discutido. Além de ser um dos maiores romances da literatura brasileira no século XX, o livro tem uma trajetória interessante: surgiu a partir de um conto, foi publicado primeiramente na Itália, foi censurado no Brasil e, finalmente, ganhou vários prêmios. Onde reside a força do livro, em sua opinião?

Não sou teórico, não sou aquele que pode olhar esse livro de fora. Quem sabe tenha sido a raiva com que escrevi e que era a raiva, o desespero e o medo que havia dentro de todos nós? Quem sabe foi a coragem de fazer um romance não convencional, com uma estrutura que ninguém tinha tentado até então, e que nunca foi imitada, copiada, nunca fez escola. Zero é um livro solitário

Quase tudo em Zero foge do convencional — a história, a diagramação, a narrativa fragmentada, o uso de onomatopeias, etc. Acha que depois das vanguardas e de tantas experimentações, ficou mais difícil ser inovador na literatura?

Sempre me pergunto: será que é preciso inovar sempre, sempre? Não se pode escrever um livro, pintar um quadro, fazer um filme? Simplesmente. Muitas vezes estamos inovando sem saber, fazendo uma coisa que é necessária e vem do fundo. E há tanta inovação falsa, para chocar, chamar a atenção.

Em Acordei em Woodstock você escreve sobre uma viagem feita com outros escritores veteranos, como Verissimo e Rubem Fonseca, e jovens, como Daniel Galera e André Sant'Anna. Você acompanha a cena literária brasileira? Lê os jovens que estão iniciando?

Gosto de Cristovão Tezza, Luiz Ruffato, Ivana Arruda Leite, Marcelo Ferroni, Michel Laub, Eliane Brum, Tatyana Salem e a Adriana Lisboa. Outro escritor que admiro e tem feito carreira segura é o João Almino. Não é tão novo, mas é bom.

Em um trecho de Acordei em Woodstock você escreve que “todos nós, escritores, gostaríamos de ter uma obra que sobrevivesse, objeto de análises, questionamentos, pesquisas, enfim, permanecesse.” No final das contas, todo escritor quer se tornar imortal por meio de sua obra?

Os livros seriam uma (tênue) possibilidade de não morrermos. Mas podemos desaparecer e voltar, sofrermos um revival. Há tantos casos. Scott Fitzgerald, quando morreu, já era dado como morto aos 44 anos. Esquecido. Hoje ele é lido, vendido e tido como um dos maiores de todos os tempos na América. Este ofício é complicado, mas temos de exercê-lo com sinceridade, fogo e lança na mão.


Ignácio no Roda Vida



O homem que viu
o lagarto comer seu filho

Era uma noite de terça-feira, e eles viam televisão deitados na cama. Quase uma da manhã, estava quente. Ele levantou-se para tomar água. A casa silenciosa, moravam num bairro tranqüilo. Não havia ruídos, poucos carros.

Ao passar pelo quarto das crianças, resolveu entrar. Empurrou a porta e encontrou o bicho comendo o menino mais velho, de três anos e meio. Era semelhante a um lagarto e, na penumbra, pareceu verde. Paralisado, não sabia se devia entrar e tentar assustar o animal, para que ele largasse a criança. Ou se devia recuar e pedir auxílio. Ele não sabia a força do bicho, só adivinhava que devia ser monstruosamente forte. Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. E meio míope, ainda por cima.

Se acendesse a luz do corredor, poderia verificar melhor que tipo de animal era. Mas não se tratava de identificar a raça e sim de salvar o menino. Ele tinha a impressão de que as duas pernas já tinham sido comidas, porque os lençóis estavam empapados de sangue. E a calça do pijama estava estraçalhada sob as garras horrendas do bicho repulsivo.

 Como é que uma coisa assim tinha entrado pela casa adentro? Bem que ele avisava a mulher para trancar portas. Ela esquecia, nunca usava o pega ladrão. Qualquer dia, em vez de um bicho, haveria um homem roubando tudo, a televisão colorida, o liquidificador, as coleções de livros com capas douradas, os abajures feitos com asas de borboletas, tão preciosos. 

Pensou em verificar as portas, se estavam trancadas. Porém, percebeu um movimento no animal, como se ele tentasse subir para a cama. Talvez tivesse comido mais um pedaço do menino. Precisava intervir. Como? Dando tapinhas nas costas do lagarto — não lagarto? Não tinha antas em casa e o cunhado sempre dizia que era coisa necessária. Nunca se sabia o que ia acontecer. Ali estava a prova. Queria ver a cara do cunhado, quando contasse. Não ia acreditar e ainda apostaria duas cervejas como tal animal não existia.

Pode, um lagartão entrar em casa através de portas fechadas e comer crianças? Olhou bem. Comer crianças não era normal, nem certo. Devia ser uma visão alucinada qualquer. Não era, O bicho mastigava o que lhe pareceu um bracinho e o funcionário teve um instante de ternura ao pensar naqueles braços que o abraçavam tanto, quando chegava do emprego à noite. Urna faca de cozinha poderia ser útil? Mas quanto o bicho o deixaria se aproximar, sem perigo para ele, o homem? 

Tinha de impedir o lagarto de chegar à cabeça. Ao menos isso precisava salvar. Não conseguia dar um passo, sentia-se pregado à porta. Preocupava-se. Todavia não se sentia culpado. Era uma situação nova para ele. E apavorante. Como reagir diante de coisas novas e apavorantes? Não sabia. Preferia não ter visto o lagarto, encontrar a cama vazia, as roupas manchadas de sangue.

Pensaria em sequestro ou coisas assim que lia nos jornais. Sequestro o intrigaria, uma vez que ganhava pouco mais de dois salários mínimos e não tinha acertado na loteria esportiva. Era apenas um funcionário dos correios que entregava cartas o dia todo e por isso tinha varizes nas pernas. Se gritasse, o lagarto iria embora? Continuou pensando nas coisas que podia fazer, até que a mulher chamou, uma, duas vezes.

Depois ela gritou e ele recuou, sempre atento para saber quanto o bicho tinha comido do filho. À medida que recuou perdeu a visão do quarto. Sentindo-se aliviado, pelo que não via. A mulher chamava e ele pensou: o menino não chorou, não deve ter sofrido. Voltou ao quarto ainda com esperança de salvá-lo pela manhã e decidiu nada dizer à mulher. 

Apagaram a luz, ele se ajeitou, cochilou. Acordou sentindo um cheiro ruim e quando abriu os olhos viu sobre seu peito a pata, parecida com a do lagarto. Paralisado, não sabia se devia tentar as sustar o animal, ou tentar sair da cama e pedir auxílio. Pelo peso da pata, o bicho devia ser monstruosamente forte.

Ao menos, forte demais para ele, franzino funcionário. Aí se lembrou que tinha dois sacos de cartas a entregar, era época de Natal e havia muitos cartões das pessoas para outras pessoas dizendo que estava tudo bem, felicidades. Tinha que tirar este bicho de cima. Não, hoje não haveria entregas. Nem amanhã, por muito tempo. O lagarto estava com metade de sua perna dentro da boca.

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