Sexta, 9 de abril de 2021

 

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...

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especial

Nesta sexta, uma cesta 
de 
Paulo Mendes Campos! 

O cronista da solidão




Não faço nada pelo bem de ninguém e, decerto, faço mal a algumas pessoas.




O amor acaba. 

Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.




Paulo Mendes Campos nasceu em 28 de fevereiro de 1922 no arraial de Saúde, hoje Dom Silvério- MG, criado em Belo Horizonte a partir dos 4 anos e optou pelo Rio de Janeiro aos 23. Jornalista, escritor, tradutor e poeta, filho do médico e escritor Mário Mendes Campos e de Maria José Lima Campos. Criado com 9 irmãos em ambiente familiar de poliglotas, foi a mãe quem lhe despertou o gosto pela poesia.


Em 1937, conheceu o adolescente de mesma idade Otto Lara Resende, em São João del-Rey, que seria seu amigo de toda a vida. No ano seguinte, em Belo Horizonte, onde passou a morar, os dois rapazes juntaram-se a Fernando Sabino e Hélio Pellegrino: formava-se o lendário quarteto que Otto batizaria de “os quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”.

Nesses anos belo-horizontinos, com o grupo de amigos, viveu uma época em que “a insônia era uma atitude literária”, ainda na expressão de Otto. As leituras seguiam noite adentro e abasteceram o talento de Paulo Mendes Campos de uma fibra cuja solidez se disfarçava na sobriedade de seu temperamento discreto.


Paulo Mendes Campos começou de fato a carreira de cronista no Diário Carioca e no Correio da Manhã, no Rio de Janeiro, para onde se mudou em 1945 e onde voltaria a conviver com os amigos mineiros, que também se mudariam para a então capital do Brasil. O ano de 1951 marcou dois acontecimentos importantes em sua vida: o lançamento do livro de poemas A Palavra Escrita, o primeiro dos 15 que publicou, e o casamento com a inglesa Joan Abercrombie, com quem teria dois filhos, Gabriela e Daniel.

Em ritmo de trabalho intensíssimo, foi, naquela década de 1950, cronista do Jornal do Brasil e da revista semanal Manchete. Nesta, desde o seu primeiro número. Os parcos cruzeiros ganhos com as muitas colaborações na imprensa não lhe permitiram escapar do serviço público: paralelamente à atividade jornalística e literária, ele foi diretor do Departamento de Obras Raras da Biblioteca Nacional e, depois de exercer outras funções administrativas em instituições diversas, se aposentaria em 1981 como técnico em comunicação social da Empresa Brasileira de Notícias (EBN).


Em 1958, com a publicação do segundo livro de poemas, O Domingo Azul do Mar, que reúne também A Palavra Escrita, veio o reconhecimento como poeta, a que se somaria ainda o do tradutor de Shakespeare e Oscar Wilde, entre muitos outros. Foi ainda roteirista de documentários para a televisão, assinando o texto do teleteatro Poema barroco, sobre a vida do escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. Esse texto, especialmente, integrou a série Caso Especial da Rede Globo de Televisão e foi exibido em 1977, sob a direção de Fabio Sabag, com Stênio Garcia no papel do escultor.


A partir de 1999, a editora Civilização Brasileira passou a reeditar os 15 títulos de Paulo Mendes Campos publicados em vida. A obra em prosa, com novos títulos, ordenados por tema, foi organizada pelo jornalista Flávio Pinheiro, que recolheu para a mesma série textos antes desprezados. Desse modo, o “cronista em tempo integral”, como define o organizador das edições, ressurgiu em suas múltiplas facetas nesse gênero em que foi mestre ao lado de Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. Os textos memorialísticos reunidos em Cisne de Feltro, passando pelo lírico observador das cidades e do povo presente em Brasil Brasileiro, revelam o cronista de “lucidez cortante servida por erudição fluida”, nas palavras de Flávio Pinheiro.

Como tradutor de prosa e poesia, traduziu Júlio Verne, Oscar Wilde, John Ruskin, Jane Austen, Shakespeare, William Butler Yeats, C. S. Lewis, Charles Dickens, Gustave Flaubert, Guy de Maupassant, H. G. Wells, Pablo Neruda, Rosalía de Castro, Verlaine, T. S. Eliot, Emily Dickinson, James Joyce, Cummings, William Blake, Umberto Saba, Jorge Luis Borges, entre outros.



Muitas das traduções em prosa foram adaptações para o público infanto-juvenil, boa parte delas publicadas pela primeira vez na década de 1970 pela Ediouro/Tecnoprint. Atualmente também há traduções-adaptações suas editadas pela Scipione e pela Martins Fontes. Quanto à poesia, a maior parte das traduções pode ser encontrada nos livros Trinca de Copas e Diário da Tarde. De Neruda, traduziu os livros Canto Geral, Residência na Terra I e Residência na Terra II.

Paulo Mendes Campos faleceu em 1º de julho de 1991, no Rio, vítima de um AVC, aos 69 anos.


Poesias

A Palavra Escrita, 1951
Forma e Expressão do Soneto, antologia, 1952
Infância
O Domingo azul do mar - 1958
Testamento do Brasil e Domingo azul do mar - 1966
Transumanas - 1977
Poemas - 1979
Diário da tarde (poesia e prosa) - 1981
Trinca de copas (poesia e prosa) - 1984

Crônicas

O Cego de Ipanema – 1960
Homenzinho na ventania – 1962
O Colunista do morro – 1965
Antologia brasileira de humorismo – 1965
Hora do Recreio - 1967
O Anjo Bêbado - 1969
Rir é o único jeito: supermercado – 1976 (reedição de Hora do Recreio)
Os bares morrem numa quarta-feira – 1980
O Amor acaba - Crônicas líricas e existenciais — 1999
Brasil brasileiro — Crônicas do país, das cidades e do povo – 2000
Alhos e bugalhos — 2000
Cisne de feltro — Crônicas- 2000
Murais de Vinícius e outros perfis — 2000
O gol é necessário — Crônicas esportivas — 2000
Artigo indefinido — 2000
De um caderno cinzento — Apanhadas no chão — 2000
Balé do pato e outras crônicas — 2003
Quatro histórias de ladrão — 2005

Infanto-juvenil

A arte de ser neta – 1985



"Crônica são duas laudas de papel em branco" 



O cafajeste e o transcendente

O diálogo perene entre o classicismo e o romantismo é substituído na vida literária atual do Brasil pelo desprezo que se votam o cafajeste e o transcendente. Na futura história literária de nossa época, naturalmente, será esquecida a grita que ambos levantam, que foi sempre a história um reduzir de gritos e vaidades à sua expressão mais simples. Por enquanto, porém, o que predomina em nosso terreno literário, a abafar as vozes discretas, é o zumbir dos cafajestes contra o murmurinho dos transcendentes.

Por cafajestismo, entendemos a organização de literatos e subliteratos, que não tendo embora estatuto ou profissão de fé, constitui uma sociedade de letras, com seus cacoetes, seus princípios, seus axiomas. Não disciplinados embora, a polícia que exercem na literatura é perfeitamente discernível.

O que singulariza o cafajeste (como também o transcendente) é a incapacidade para a síntese. A sua própria tese é evidente por si mesma a antítese alheia é uma estupidez não se preocupando o cafajeste com o esforço mental capaz de obter uma noção verdadeira ou sensata entre dois elementos antagônicos. Exemplos: o cafajeste é ateu e desairosos são os crentes aos olhos dele. O cafajeste gosta de música popular e é pedantismo na sua opinião apreciar Beethoven ou qualquer outro clássico.

O cafajeste é contra a cultura, não de maneira direta, mas através de uma atividade oblíqua contra tudo que represente erudição, sutileza e profundidade. Para ele, não há nada mais ridículo do que o sr. Otto Maria Carpeaux, ninguém mais desprezível do que o sr. Otavio de Faria nenhuma preocupação mais vergonhosa do que a de eternidade. Na literatura estrangeira, o cafajeste jejua de tudo que não lhe fere a maneira de ser e pensar. Não se arrisca a destruir a obra de um Proust ou de um Rilke, e até mesmo costuma respeitar à distância nomes como estes dois. Entretanto, põem um fervor exagerado na admiração por um Zola ou um Rabelais, não sob todos os aspectos, mas no que estes escritores representam o cafajestismo internacional.

Não se confunde o cafajestismo com a subliteratura. Trata-se, pelo contrário, de um comportamento bem definido perante a existência, quase uma filosofia. O cafajeste não é o escritor de mau gosto. Absolutamente. O cafajestismo tem dado alguns escritores de raça dos melhores que temos. São os corifeus do cafajestismo, indivíduos cujo talento vivifica o bando de mediocridades que constitui o grosso do movimento.

O corifeu do cafajestismo é sempre um tipo curioso, em geral um machão, na acepção literária da palavra. Ama as coisas ásperas, sem sutilezas, taxa desdenhosamente de feminilidade todo pensamento que intente elevar-se uns palmos além do solo. O corifeu é de corpo e alma pela literatura regionalista, em que se sinta o famoso cheiro de terra, em que se conte o sofrimento do nosso homem em que os personagens andem com a boca a transbordar de nomes feios. Em matéria de estilo, são pela linguagem fluente, em que se empreguem as palavras do povo, as expressões pitorescas da gente simples. Em razão disto, devemos ao cafajestismo dois movimentos literários de real valor: a preocupação pela nossa terra e pela nossa linguagem, coisas das mais importantes a serem utilizadas na literatura sem preconceitos, que não seja cafajeste nem transcendental. No mais, a atuação do cafajestismo trabalha no empobrecimento da nossa vida intelectual. Fazem guarda nos portões da vida literária dificultando que a nossa cultura possa alcançar o equilíbrio verdadeiro entre o nacionalismo e o universal.

Não vamos nos deter por mais tempo no exemplar oposto, no transcendente. O transcendentalismo é a antitoxina do cafajestismo, é a vida e a literatura colocadas em termos exotéricos, é o desdém pela existência quotidiana, é a valorização arbitrária e frenética do mistério do obscuro. Tem igualmente o transcendentalismo os seus expoentes, os seus corifeus. E não são menos errados do que os primeiros.


Uma homenagem nos 20 anos
da morte de PMC





Bom dia, ressaca


Não é fácil, muito pelo contrário, despedir uma ressaca que se instale em seu quarto, disposta a ficar o dia todo, sobretudo quando a gente não é mais o que se chama um broto. São em geral as ressacas muito fieis e suscetíveis; para driblá-las, é preciso ser de circo e, como nos números acrobáticos, qualquer distração pode, no caso, causar a morte do artista.

A primeira providência a tomar, quando você desprega os olhos e vê que ela está realmente a seu lado, é não demonstrar o mais ligeiro sinal de surpresa, mas tratá-la com um carinho um pouco distraído:

Bom dia, ressaquinha.

Então respire fundo três vezes. Não prestar atenção aos vagidos dela, às suas caretas, àquele hálito de abominável melancolia. Não se considere um crápula, que é isso o que ela quer. Mantenha a cabeça imóvel a fim de não denunciar, com um gemido, a sua dor sísmica. Esqueça os seus compromissos, por mais graves que sejam (o remorso é uma das brechas por onde pode penetrar a fera), fingindo-se absolutamente livre, como se dispusesse de seu tempo à vontade. É de todo necessário que ela não desconfie que você tem na cidade um encontro com um gerente de banco.

Se ela lhe oferecer maldosamente um cigarro, aceite-o, para abandoná-lo depois de três ou quatro tragadas lentas. Olhar pela janela é sempre perigoso; isso porque pode estar fazendo um magnífico dia frio e chuvoso; mas também pode uivar lá fora um sinistro e tempestuoso sol. A visão macabra de um dia luminoso costuma esmorecer sem remédio os ressacados de mais hábil talento.

Por mais violenta que seja a sua vontade de tossir, não o faça; tal coisa poderia trazer-lhe consequências imprevisíveis, sendo compensador qualquer sacrifício no sentido de adiar esse desejo para momento mais propício.

Evite o café. Faça como se fosse dormir ainda, sem cair na leviandade de prometer que jamais porá de novo a boca em álcool. Essa capitulação, além de falsa, condiciona uma desmoralização interior que insufla forças novas à inimiga.

As ressacas não morrem de amores pela cama, existindo algumas, no entanto, extremamente espertas, que se acomodam a essa situação, podendo permanecer indeterminadamente no seu leito. Escute o que lhe digo e mande vir o jornal: contorne os cronistas da noite, mergulhe com paciência nas seções de economia, caso você goste de futebol, e nas páginas esportivas, caso você se interesse por economia. Essa atitude é capaz de desorientá-la um pouco. Sem levar a mão ao coração (e se o fizer, pelo menos não revele o seu nervosismo pela taquicardia), peça um jarro de água geladíssima e duas aspirinas. Como o gato, a ressaca teme a água. Aguarde o momento preciso. No que a ressaca bobear, arraste-se até o chuveiro, escancare a torneira de água fria, enquanto escova os dentes com um exagero de pasta e por muito tempo. O jorro da água, prenunciando o impacto frio, amolece um pouco mais a covarde. Em seguida, com o destemor digno de um almirante batavo, enfrente o chuveiro, sem importar que a água o sufoque um pouco, pois a sufocação deverá também atingi-la. Reze então três padre-nossos e três ave-marias, e comece a tossir.

Se existe mar perto de sua casa, ótimo; se não existe, paciência. Almoce, não deixe de almoçar, faça-me o favor. Se gostar de jiló, pode-se ter em conta de um homem privilegiado, pois todas as ressacas de meu conhecimento, como quase todo mundo, detestam jiló. Fígado fresco de galinha é outro alimento que elas não apreciam nada. Bebida, o ideal, por enquanto, é mate gelado. Toque na vitrola discos de Bach ou Débussy, mas somente peças para piano ou cravo, jamais sinfônicas. Uma boa ressaca é tarada por música orquestral. Fuja igualmente das arestas do rock´n´roll, das espirais do bolero e dos círculos concêntricos da valsa vienense.

Vá deitar-se no divã e ler mais um pouco, de preferência uma história boba de revista frívola. Quando a ressaca já estiver bastante aborrecida com esse tratamento, levante-se e caia na rua, cometendo no primeiro botequim a violência final, um copo de chope bem tirado, um só. E vá enfrentar o gerente.

Mas há ressacas versáteis, assim como há sujeitos indefesos. Posto o quê, não aceitaremos reclamações.





Meu reino por um pente

Filhos – diz o poeta – melhor não tê-los.

Já o Professor Aníbal Machado me confiou gravemente que a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los. A conclusão parece simples, mas não era; Aníbal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a certeza imperativa de que a procriação é uma verdade animal, uma coisa que não se discute, fora de alcance do radar filosófico.

“Eu não sei por que, Paulo, mas fazer filhos é o que há de mais importante.”

Engraçado é que depois dessa conversa fui descobrindo devagar a melancólica impostura daquelas palavras corrosivas do final de Memórias Póstumas: “não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta corrige antiteticamente o pessimismo daquele verso, quando pergunta: mas, se não os temos, como sabê-lo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.

Você vai se rir de mim ao saber que comecei a crônica desse jeito depois de procurar em vão meu bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento de certos objetos tem o dom de conclamar, por um rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas províncias de meu corpo. Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me por água a baixo o comedimento quando não acho minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola… Quando isso acontece (sempre) até taquicardia costumo ter; vem-me a tentação de demitir-me do emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para Minas Gerais, renunciar… Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer. Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de aguentar com relativa indiferença uma hecatombe que destruísse de vez todos os meus pertences.

O que não suporto é a repetição indefinida do desaparecimento desses objetos sem nenhum valor, mas, sem os quais, a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de resolver primeiro. Stanislaw Ponte Preta andou espalhando que eu usava ventilador para pentear os cabelos. Calúnia. Sou o maior comprador de pentes do Estado da Guanabara. Compro-os em quantidades industriais pelo menos duas vezes por mês, de todos os tamanhos, de todas as cores. Sou quase amigo de infância do vendedor de pentes que estaciona ali na esquina de Pedro Lessa e Rua México.

A princípio, pensou que eu estava substabelecendo o comércio dele, comprando para vender mais caro, mas um dia eu lhe contei minha tragédia familiar, e ele sorriu e confessou: “Lá em casa é a mesma coisa”. Chego em casa com os meus pentes e os distribuo a mancheias. Dois para você, quatro para você – segundo o temperamento e a distração de cada um. Aviso a todos que vou colocar um no armário do quarto, um no banheiro, um em cada mesa de cabeceira, dois na minha gaveta. Terminada essa operação ostensiva, fico malicioso e furtivo; secretamente, vou escondendo outros pentes por todos os cantos e recantos, debaixo do colchão, no alto de um móvel, atrás do exemplar dos Suspiros Poéticos e Saudades. Em seguida, reúno solenemente toda a família, inclusive o Poppy, tiro do bolso um pente singular, o mais ordinário encontrável na praça, e digo: “Este é o meu pente; este ninguém usa; neste, sob pretexto algum, ninguém toca! Estão todos de acordo? Ou algum dos presentes deseja fazer alguma objeção?” Estão todos de acordo.

A sinceridade do meu clã nesses momentos é de tal qualidade que, por um dia ou dois, tenho a ilusão de que, afinal, venci, de que descobri o approach certo para a família incerta. Mas, meu São Luís de Camões, ó caminhos da vida, sempre errados! Os dias passam, o vento passa a descabelar-nos, e os meus pentes, os meus pentes também passam. Misteriosamente, inexplicavelmente, eles desaparecem, pouco a pouco, com certa malícia, um a um, dois a dois, até chegar o momento dramático no qual, depois de vasculhar todos os meus esconderijos, fico em cabelos no meio da sala e, como Ricardo III em plena batalha, exclamo patético: “Um pente, um pente, meu reino por um pente!”.

Eu não fui – diz o primeiro; – eu não fui – diz o segundo; – eu não fui – diz o terceiro. Poppy, cuja especialidade é comer meias e sapatos, não diz nada, mas abana o rabo negativamente. Não foi ninguém, foi Mr. Nobody, foi o diabo, foi a minha sina. Minha mansão tem apenas três quartos e uma sala. Pois é inacreditável a quantidade de objetos que estão desaparecidos aqui dentro. Um dia, quando me mudar, a gente vai achar tudo. E sorrir um para o outro com uma nostalgia imprecisa, e dizer em silêncio que, filhos, e pais, melhor tê-los.


"A crônica é a azeitona do pastel cultural"


Um comentário:

  1. Previdi, ao pé da letra, para os padrões atuais, não da para dizer que o Paulo Mendes Campos foi um esquerdista. Eu, que sou um Psolista convicto não posso aceitar que ele, que não é da esquerda radical, seja um intelectual honesto, talentoso e excelente escritor. Porque, se não for dos nossos ele é um fascista, genocida e preconceituoso. Como você sabe, TODAS as virtudes estão do nosso lado. Por isto, ele nunca chegou aos pés dos verdadeiros e brilhantes intelectuais de esquerda como Frei Beto, Juremir Machado e Tarso Genro. A prova disto é que ainda não encontrei um único livro dele no balaião de R$ 2,00 da Feira do Livro, enquanto dos nossos está cheio.

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