Sexta, 10 de setembro de 2021

 

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especial

Nesta sexta, uma cesta 
de 
Jack Kerouac!


O anjo torto beatnik




Porque o silêncio em si é como o som dos diamantes que podem cortar tudo!


Minha culpa, minha falha, não está nas paixões que tenho, mas na minha falta de controle sobre elas.





Jack, nós temos que ir e nunca parar de seguir enquanto a gente não chegar lá.
Para onde estamos indo, cara?
Eu não sei, mas temos que ir.


Jack Kerouac (Jean-Louis Lebris de Kerouac) nasceu em Lowell, Massachusetts, em 12 de m
arço de 1922. Tinha ascendência franco-canadense e foi um do líderes do movimento conhecido como geração beat.

Jack era filho dos canadenses Léo-Alcide Kéroack e Gabrielle-Ange Lévesque. Frequentou um colégio jesuíta e ajudou o pai numa gráfica. Um de seus traumas mais trágicos, que voltaria relatado nos seus romances, foi a morte do seu irmão Gerard quando ele tinha nove anos.
Devido às dificuldades econômicas, Jack resolveu fazer parte da equipe de futebol americano do colégio para tentar uma bolsa de estudo na faculdade. Conseguiu entrar na Universidade de Columbia, em Nova York, para onde se mudou com a família. Devido a um acidente que o impossibilitou de jogar por alguns meses, Kerouac começou a frequentar a biblioteca da universidade, tendo contato com autores que influenciaram muito da sua obra, como Louis-Ferdinand Céline e Jack London.

Jack ao lado da irmã Nin, em 1942

Depois da Marinha de Guerra, acabou na Marinha Mercante, onde ficou algum tempo.

JACK, ALLEN e WILLIAM BURROUGHS

Quando não estava em viagem, Jack andava por Nova York com amigos "delinquentes" da Universidade de Columbia, entre eles Allen Ginsberg e William Burroughs e Neal Cassady. Este, recém chegado a cidade, com sua esposa de 16 anos. Neal Cassady era um verdadeiro produto das ruas - passou sua infância e parte da juventude em reformatórios. Eram o "pelotão de frente" da geração beat.



Kerouac escreveu um romance, The Town and The City, sobre os tormentos sofridos na tentativa de equilibrar a vida selvagem da cidade com os seus valores do velho mundo. Segundo relatado em seus diários, publicados em 2004, ele tentou dar ao livro excessivo planejamento e regularização, o que tornou sua composição cansativa e desgastante. The Town and The City foi o seu primeiro romance publicado, porém não chegou a lhe trazer fama. Ficou muito tempo sem publicar de novo.


Durante o período que se sucedeu, criou os rascunhos de outras grandes obras suas - Doctor Sax e On the Road. Na tentativa de escrever sobre as surpreendentes viagens que vinha fazendo com o amigo Neal Cassady,  experimentou formas mais livres de escrever, contando as suas viagens exatamente como elas tinham acontecido, sem parar para pensar ou formular frases. Foram 7 anos de rejeição até ser publicado. Jack escreveu vários romances, que ia guardando em sua mochila, enquanto vagava de um lado a outro do país.


Escreveu "Tristessa", obra sobre uma viciada em morfina que vivia na Cidade do Mexico. É um romance triste, com  ensinamentos budistas, repleto de compaixão pelo sofrimento humano.



A relação do escritor com Neal foi determinante para despertar em Jack sua vontade de botar o pé na estrada e desfrutar de uma liberdade ainda não experimentada. Os dois viajaram por sete anos percorrendo a rota 66, que cruza os EUA na direção leste-oeste, com idas frequentes ao México. Saíram de Nova York e cruzaram o país em direção a São Francisco. Nessa jornada baseou-se a obra On the Road, cujos protagonistas, Dean Moriarty e Sal Paradise, lembram Cassady e Kerouac.



No verão de 1953 Jack Kerouac envolveu-se com uma moça negra, experiência que usou para escrever em 1958 "Os Subterrâneos". Foi escrito em três dias e três noites. Em 1955 Kerouac apaixonou-se por uma prostituta indígena chamada Esperanza. Foi publicado pela primeira vez em 1960 e baseado em fatos biográficos.


Jack escreveu sua obra-prima “On The Road”, livro que seria consagrado mais tarde como a “Bíblia Hippie”, em apenas três semanas. O fôlego narrativo alucinante do escritor impressionou bastante seus editores. Jack usava uma máquina de escrever e uma série de grandes folhas de papel manteiga, que cortou para servirem na máquina e juntou com fita para não ter de trocar de folha a todo momento. Redigia de forma ininterrupta, invariavelmente sem a preocupação de cadenciar o fluxo de palavras com parágrafos.



O material que chegou às mãos de Malcom Cowley, da editora "Viking Press", em 1957, deu trabalho. Os rolos quilométricos de texto tiveram de ser revisados, foram inseridos pontos e vírgulas e praticamente 120 páginas do original foram eliminadas. Ao contrário às idéias correntes, segundo as quais trabalhou em cima do livro sob o efeito de benzedrina, uma droga estimulante; Kerouac, em admissão própria, abasteceu seu trabalho com nada mais que café.

O uso de drogas era comum entre Jack Kerouac e seus amigos. Sobre o assunto, o amigo Allen Ginsberg comentou:
“Começamos a experimentar benzedrina e anestésicos. Eu pensava que não poderia escrever porque minha mente ficava confusa, mas Jack sentia que podia escrever romances usando isso. E acho que alguns dos seus romances do início dos anos 50 foram escritos sob efeito desses e outros tóxicos. Jack praticamente se sentava e datilografava por várias semanas, fazia correções, escrevia continuamente 5, 6 ou 7 horas por dia, às vezes até o dia inteiro”.


Carolyn Cassady, mulher de Neal, conta:
“Jack sempre foi muito tímido, ainda que parecesse durão, era doce, sensível, passional. Neal era mais espontâneo, machão sem fazer esforço, mas também se interessava muito pelas palavras. Ele esperava Jack ensiná-lo a ser do seu jeito. Eles eram opostos e muita gente pensava que se pareciam. Neal era rude, Jack era mais introvertido e queria ter a mesma iniciativa com as mulheres. Ele gostava de ver Neal fazer isso”.


O sucesso e o prestígio conquistados após a publicação de "On the Road", em 1957, deixaram Jack atormentado. Apesar de críticas positivas que realçavam o caráter inovador da obra, muitos o tacharam de subliterato e imoral. A primeira resenha escrita por Gilbert Millstein no "The New York Times" foi satisfatória. Ele recorda no documentário “O Rei dos Beats” qual foi sua sensação ao ler o livro:
“Eu li o livro e fiquei simplesmente estupefato. Eu disse ali que acreditava naquilo como a expressão perfeita de uma geração, assim como Hemingway em "The Sun Also Rises" também foi uma expressão da sua geração naquela época”.


O efeito imediato da fama causou apreensão e relutância em Jack. Joyce Johnson, a jovem namorada com quem o escritor morava na época, relembra a reação dele diante da celebração instantânea:
“Ele estava agitado e com medo. Ele também sentia que teria de viver para sua imagem pública, pois todos esperariam que ele fosse como Dean Moriarty ou Neal Cassady, mas ele era só Jack Kerouac. Era bastante tímido, preferia ficar num canto olhando, refletindo”.


Logo após a publicação, Jack trabalhou intensamente em outros projetos. Os Vagabundos Iluminados ou Os Vagabundos da Verdade, lançado em 1958, foi a tentativa do escritor de estabelecer afinidades com o Budismo. É o relato de uma escalada com o amigo poeta Gary Snyder em busca de realizações espirituais.


Nesta época, Jack resolveu se isolar do convívio humano. Subiu até o alto de uma colina e passou longos dias sozinho confinado em uma cabana sem eletricidade e sem vidros nas janelas. Tomava quase uma garrafa de bebida por dia e sofreu com alucinações e paranoias. A experiência foi registrada no livro "c", de 1962. Anos antes, a procura de respostas para a vida, aceitou um emprego como guarda florestal no Desolation Peak no verão de 1956. Experiência relatada na obra "Anjos da desolação".


O problema do alcoolismo piorou com o tempo. Derrotado e solitário, vai morar com a sua mãe em Long Island. Seus últimos trabalhos exibiam uma alma desconectada de um homem perdido em ilusões. Apesar do estereótipo de beat - ou "beatnik", alcunha que Kerouac detestava e rejeitava - o escritor era um conservador, especialmente sob a influência de sua mãe católica. O vigor deu lugar ao cansaço, e o escritor resignou-se a uma vida simples.
Frequentemente apaixonado, ele chegou a casar duas vezes ao longo da vida, mas acabaram em poucos meses. Na metade dos anos 60, Jack casa novamente, agora com uma conhecida de infância. Ele, a esposa e a mãe se mudam para St. Petersburg, na Flórida.

Em 21 de outubro de 1969, Jack Kerouac, 47 anos, morreu de hemorragia, consequência de uma cirrose, num hospital em St. Petesburg, na Flórida. O amigo e agente literário Allen Ginsberg reverencia seu talento:
“Eu não conheço outro escritor que teve influência tão produtiva quanto Kerouac, que abriu o coração como escritor para contar o máximo dos segredos da sua própria mente”.


Foi sepultado no Edson Cemetery, Lowell, Massachusetts nos Estados Unidos.


Toda a terra dourada está à sua frente e todos os tipos de eventos imprevistos esperam de tocaia para te surpreender e fazer você feliz por estar vivo para ver


Toda vida é um país estrangeiro

OS HAICAI DE JACK KEROUAC
(ele chamava os haicais de poemas pop)

uma flor
na ribanceira
acenando para o desfiladeiro
 
***
 
segurando meu gato
que ronrona sob a lua,
eu suspirei

***
 
tarde de verão –
mastigando impacientemente
a folha de jasmim



Eu não tenho nada para oferecer a ninguém.
Exceto minha própria confusão



Brindemos pelas loucas, pelas desajustadas, pelas rebeldes e arruaceiras,
pelas que não se encaixam,
pelas que vêm as coisas de um modo diferente,
pelas que não gostam de regras e não respeitam o status quo.
Podem denunciá-las, não estar de acordo,
glorificá-las ou vilipendiá-las,
mas o que não podem fazer é ignorá-las.
Porque elas mudam as coisas,
empurram para frente a condição humana.
Enquanto alguns as veem como loucas,
Nós vemos o gênio delas,
porque as mulheres que se acreditam tão loucas
como para pensar que podem mudar o mundo são as que o fazem.




TRECHO DE ON THE ROAD

Parte 1
Cap. 1

Encontrei Dean pela primeira vez não muito depois que minha mulher e eu nos separamos. Eu tinha acabado de me livrar de uma doença séria da qual nem vale a pena falar, a não ser que teve algo a ver com a separação terrivelmente desgastante e com a minha sensação de que tudo estava morto. Com a vinda de Dean Moriarty começa a parte da minha vida que se pode chamar de vida na estrada. Antes disso eu tinha sonhado muitas vezes em ir para o Oeste conhecer o país, mas não passavam de planos vagos e eu nunca dava a partida. Dean é o cara perfeito para a estrada simplesmente porque nasceu na estrada quando seus pais estavam passando por Salt Lake City em 1926, a caminho de Los Angeles, num calhambeque caindo aos pedaços. As primeiras notícias sobre ele chegaram através de Chad King, que havia me mostrado algumas cartas que ele escrevera num reformatório do Novo México. Fiquei ligadíssimo nas cartas por causa do jeito ingênuo e singelo com que elas pe-diam a Chad para lhe ensinar tudo sobre Nietzsche e todas aquelas maravilhas intelectuais que Chad conhecia. Certa vez Carlo e eu falamos a respeito das cartas e nos perguntamos se algum dia iríamos conhecer o estranho Dean Moriarty. Tudo isso foi há muito tempo, quando Dean não era do jeito que ele é hoje, quando era um delinqüente juvenil envolto em mistério. Então chegaram as notícias de que Dean havia se mandado do reformatório e estava vindo para Nova York pela primeira vez; falava-se também que ele tinha acabado de casar com uma garota chamada Marylou.

Um dia eu vagabundeava pelo campus quando Chad e Tim Gray me disseram que Dean estava hospedado numa daquelas espeluncas sem água quente no East Harlem, o Harlem espanhol. Tinha chegado na noite anterior, pela primeira vez em Nova York, com sua gostosa gata linda Marylou; eles saltaram do ônibus Greyhound na rua 50, dobraram a esquina procurando um lugar onde comer e deram de cara com a Hector's, e a partir de então a cafeteria Hector's se transformou para sempre num grande símbolo de Nova York para Dean. Eles gastaram dinheiro em belos bolos enormes com glacê e bombas de creme.

O tempo inteiro Dean estava dizendo para Marylou coisas do tipo: "Então, garota, cá estamos nós em Nova York, e embora eu não tenha te contado tudo que estava passando pela minha cabeça quando a gente atravessou o Missouri, especialmente na hora em que passamos pelo reformatório de Booneville, que me lembrou do meu problema na prisão, é absolutamente imprescindível dar um tempo em todos os detalhes pendentes do nosso caso e, de uma vez por todas, começar a pensar em planos específicos para nossa vida profissional...". E assim por diante, do jeito que ele falava naquele tempo.

Fui à tal espelunca sem água quente com a rapaziada e Dean abriu a porta de cueca. Marylou estava saltando do sofá, Dean tinha expulsado o inquilino do apartamento para a cozinha, provavelmente para que fizesse café, enquanto ele dava prosseguimento às questões amorosas, já que, para ele, sexo era a primeira e única coisa sagrada e realmente importante na vida, ainda que ele tivesse que suar e blasfemar para ganhar o pão e assim por diante. Dava para perceber isso pela maneira como ele parava curvando a cabeça, sempre olhando para baixo, assentindo como um boxeador novato ao receber instruções, fazendo você pensar que ele estava escutando cada palavra, cuspindo milhões de "sins" e "claros" o tempo inteiro. A primeira impressão que tive de Dean foi a de um Gene Autry mais moço - esperto, esguio, olhos azuis, com um genuíno sotaque de Oklahoma -, um herói de suíças do Oeste nevado. Na verdade ele tinha trabalhado num rancho, o de Ed Wall, no Colorado, antes de casar com Marylou e vir para o Leste. Marylou era uma loira linda, com enormes cachos de cabelos derramando-se num mar de ondas douradas. E ela ficava ali sentada, na beira do sofá, com as mãos pousadas no colo e os olhos caipiras azuis-esfumaçados fixos numa expressão assustada porque estava num pardieiro cinzento e maligno de Nova York do tipo que tinha ouvido falar lá no Oeste, e ela ficava ali pregada, longilínea e magricela como uma daquelas mulheres surrealistas das pinturas de Modigliani num quarto sem graça. Embora fosse uma gatinha, ela era terrivelmente estúpida e capaz de coisas horríveis. Aquela noite todos nós bebemos cerveja, jogamos queda-de-braço e conversamos até o amanhecer e, de manhã, enquanto fumávamos em silêncio baganas dos cinzeiros na luz opaca de um dia sombrio, Dean levantou-se nervosamente, andou em círculos, pensativo, e decidiu que a melhor coisa a fazer era mandar Marylou preparar o café e varrer o chão: "Em outras palavras, garota, o que estou dizendo é: temos mais é que entrar na dança rapidinho, do contrário, a gente fica aí numa flutuante, sem cair na real. e nossos planos jamais se cristalizarão". Aí, eu caí fora.



Não beba para ficar bêbado
Beba para aproveitar a vida





TRECHO DO LIVRO O MAR É MEU IRMÃO

Capítulo um
A garrafa quebrada

Um jovem, cigarro na boca e mãos nos bolsos das calças, desceu os degraus de uma pequena escada de tijolos na saída do saguão de um hotel na parte alta da Broadway e dobrou na direção da Riverside Drive, arrastando-se de modo curioso, com passos lentos.

Anoitecia. As ruas quentes do mês de julho, encobertas por uma neblina de mormaço que turvava os contornos nítidos da Broadway, fervilhavam com um cortejo de ambulantes, coloridas barracas de frutas, ônibus, táxis, automóveis lustrosos, lojas kosher, marquises de cinema e todos os inúmeros fenômenos que criam o brilhante espírito carnavalesco de uma via pública em meio ao verão de Nova York.

O jovem, vestindo casualmente uma camisa branca sem gravata, um surrado casaco de gabardine verde, calça preta e mocassins, parou diante de uma banca de frutas e examinou as mercadorias. Na mão delgada, contemplou o que restava de seu dinheiro – duas moedas de 25 centavos, uma de dez e uma de cinco. Comprou uma maçã e seguiu seu caminho, mastigando pensativamente. Gastara tudo em duas semanas; quando aprenderia a ser mais prudente? Oitocentos dólares em quinze dias – como? onde? e por quê?

Quando jogou para longe o miolo da maçã, sentia ainda a necessidade de satisfazer seus sentidos com alguma [ ] ociosidade ou outra, de modo que entrou numa loja de charutos e comprou um charuto. Somente o acendeu quando já estava sentado num banco na Drive, diante do rio Hudson.

Havia um frescor ao longo do rio. Atrás dele, a enérgica vibração de Nova York suspirava e pulsava como se a própria ilha de Manhattan fosse uma corda desarmoniosa tocada pela mão de algum demônio descarado e atarefado. O jovem se virou e percorreu com seus olhos escuros e curiosos os altos telhado da cidade e embaixo, na direção do ancoradouro, onde a corrente de luzes da ilha curvava-se num arco poderoso, contas ardentes enfileiravam-se em sucessão confusa na névoa do verão.

O charuto tinha o gosto amargo que ele queria sentir na boca; fornecia uma sensação plena e ampla entre os dentes. No rio, ele podia distinguir vagamente os cascos dos navios mercantes fundeados. Uma pequena lancha, invisível exceto por suas luzes, deslizava por um caminho costurado, passando pelos escuros cargueiros e navios-tanque. Com um assombro silencioso, inclinou-se para a frente e observou os flutuantes pontos de luz que se moviam lentamente rio abaixo em líquida graciosidade, seu quase mórbido interesse fascinado por algo que poderia parecer banal para outra pessoa.

Esse jovem, no entanto, não era uma pessoa comum. Tinha uma aparência normal, pouco mais alto do que a média, magro, um semblante côncavo marcado pela proeminência do queixo e pelos músculos do lábio superior, a boca expressiva com linhas delicadas, mas abundantes entre os cantos dos lábios e o nariz fino, e um par de olhos simétricos e simpáticos. Mas seu comportamento era estranho. Costumava manter a cabeça muito erguida, de maneira que observava tudo num escrutínio que vinha de cima, com certa atitude abstraída que continha uma curiosidade altiva e inescrutável.

Nessa postura, fumou o charuto e observou os passantes que seguiam pela Drive, em paz com o mundo segundo todas as aparências. Mas não tinha dinheiro e sabia disso; no dia seguinte, não teria sequer um tostão. Num arremedo de sorriso formado ao erguer um canto da boca, tentou lembrar-se de como gastara seus oitocentos dólares.

A noite anterior, ele sabia, custara-lhe seus últimos cento e cinquenta dólares. Bêbado por duas semanas consecutivas, reconquistara finalmente a sobriedade num hotel barato no Harlem; de lá, lembrou, tomara um táxi até um pequeno restaurante na Lenox Avenue que servia somente costeletas. Fora ali que conhecera aquela bonita garota de cor que fazia parte da Juventude Comunista. Lembrou que haviam tomado um táxi até Greenwich Village, onde ela queria ver certo filme…. não era Cidadão Kane? E depois, num bar na MacDougall Street, ele a perdeu de vista quando topou com seis marinheiros sem dinheiro; eram de um contratorpedeiro em dique seco. Desse ponto em diante, conseguia lembrar-se de pegar um táxi com eles e cantar músicas de todos os tipos e descer no Kelly’s Stables na 52nd Street e entrar para ouvir Roy Eldridge e Billie Holliday. Um dos marinheiros, um auxiliar de farmacêutico com traços vigorosos e cabelos escuros, falou o tempo inteiro sobre o trompete de Roy Eldridge e sobre como ele estava dez anos à frente de qualquer outro músico de jazz, com exceção, talvez, de dois outros que tocavam às segundas no Minton’s, no Harlem, Lester alguma coisa e Ben Webster; e sobre como Roy Eldridge era realmente um pensador fenomenal, com ideias musicais infinitas. E então foram todos para o Stork Club, que um outro marinheiro sempre quisera conhecer, mas estavam todos entorpecidos demais para que pudessem ser admitidos, de modo que recorreram a uma espelunca barata para dançar, onde ele comprara um maço de bilhetes para o grupo. De lá tinham partido para um lugar no East Side onde a madame lhes vendeu três litros de scotch, mas quando se deram por satisfeitos a madame se recusou a deixar que dormissem todos ali e os chutou para fora. De qualquer maneira, já não aguentavam mais o lugar e as garotas, e assim rumaram cidade acima na direção oeste até um hotel na Broadway onde ele pagou por uma suíte dupla e terminaram de beber o scotch e desabaram em cadeiras, no chão e nas camas. E então, no final da tarde seguinte, ele acordou e encontrou três dos marinheiros esparramados em meio a uma desordem de garrafas vazias, quepes de marinheiro, copos, sapatos e roupas. Os outros três tinham saído para algum lugar, talvez em busca de um antiácido ou suco de tomate.

Então ele se vestiu lentamente, depois de tomar um banho demorado, e foi dar uma volta, deixando a chave na recepção e pedindo ao recepcionista que não perturbasse seus companheiros adormecidos.

E aqui estava sentado agora, sem ter no bolso nada mais do que cinquenta centavos. A noite anterior custara mais ou menos $150, entre táxis, bebidas aqui e ali, contas de hotel, mulheres, bilhetes de entrada e tudo mais; os bons momentos estavam acabados naquele momento. Sorriu ao recordar como tinha sido engraçado quando acordou poucas horas antes, no chão, entre um marinheiro e uma garrafa de um litro vazia, e com um de seus mocassins no pé esquerdo e o outro no chão do banheiro.



3 comentários:

  1. Prévidi,
    On The Road, eu li quando lançado, aqui no Brasil, acho que por volta de 1985, em uma bela tradução do Eduardo Bueno, o Peninha.
    Fiquei absolutamente apaixonado pela maneira dele escrever, descrever seus personagens, suas viagens com o Neil Cassidy (que também acabou escrevendo livros malucos) absolutamente ao léu, à sorte, de carona, sem dinheiro, fazendo trabalhos temporário em colheitas...
    Recentemente, comprei uma reedição deste livro, LPM, com alguns acréscimos biográficos. Este não dou nem empresto!
    Um detalhe, não descrito na tua resenha, caro Prévidi, é quando ele compõe On The Road, no qual o editor mexeu muito, corrigiu muito, suprimiu muito, alterou muito e ele teve que aceitar. Lançado o livro, nada! Um sábado seu empresário liga e avisa: ‘mandei nosso livro para o editor de literatura do NYT, que me disse ter gostado muito e que iria resenhar na edição do sábado seguinte. Kerouac e sua namorada, saíram à noite à espera da edição que saía por volta da meia noite. Leram, ávidos, só elogios.
    Duas consequências, 1) foi o último (noite) dia em que foi ‘um anônimo’; 2) Nunca mais permitiu que mexessem em seus textos!

    Outro malucão que li praticamente todos os seus livros é o Charles Boukowski, underground ao limite! Merece uma cesta, numa sexta!

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  2. João Paulo, confere:
    Sexta, 14 de fevereiro de 2020 - O Blog do Prévidi

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