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Histórias de Verão - 2
O BACHAREL TRANSFORMADOR
É sério.
Sempre brinquei com meu avô, meu pai e meus tios dizendo que a primeira palavra que falei, com pouco mais de um ano, foi data venia. Era do contra. Discordava da minha mãe quando ela vinha com aquelas papinhas insossas – e eu dramatizava, já bem crescido, tentando imitar um bebê: “Data venia, não quelo!”. Eles davam muita risada, o que não era comum.
Nada habitual essa reação, fingida até, porque cresci convivendo com todos muito sérios. Meu avô sempre foi o desembargador, com um ar taciturno. Meu pai, o juiz federal, tentou me ensinar a ser sisudo. A imperfeita imitação de meu avô. E os meus tios eram homens seriíssimos, à semelhança da tradição da família. Nada pior do que um almoço de final de semana, com a reunião de todas essas personagens de livros de Direito. Ficção pura.
Vivi neste ambiente asséptico. Sempre que podia me soltava. No colégio, então, era outro. Era o mais galinha das salas de aula em que passei e disputava ser o mais folgazão do único colégio que freqüentei em toda a minha vida escolar.
Não preciso dizer que fiz vestibular para Direito. Na mesma universidade que meu avô, meu pai e tios cursaram. A Federal. Se não fizesse esse vestibular acredito que minha família me deserdaria. Com toda razão – o neto mais velho, o único filho. Não fiz nem cursinho, porque tinha certeza de que seria aprovado.
Fui.
Nas primeiras semanas do primeiro semestre descobri que os cinco anos seriam insuportáveis naquela faculdade formal ao extremo. Era impressionante. Início de curso e vários colegas só faltavam se tratar de doutor, muitos usavam até gravata em pleno verão. Sentia muita falta dos tempos de colégio onde podia brincar à vontade.
Ficava naquelas aulas chatíssimas lembrando das bobagens que fazia, principalmente no segundo grau. Como tinha muita facilidade de decorar, nas provas ajudava muito os meus amigos. Inventava as mais variadas formas de colaborar com eles. Inventava palhaçadas, como assoar o nariz, fazendo o típico barulho com a boca. Atirava aqueles estalinhos no quadro negro quando o professor se virava para escrever. Ou então puxava um “parabéns pra você” quando o último colega entrava na sala para o primeiro período do dia.
Na maior parte do tempo fingia que prestava atenção nas aulas, mas me dedicava mesmo quando sentia que o assunto era importante. No final do primeiro semestre, meu pai sugeriu que fosse estagiar no poderoso escritório de direito tributário do seu irmão. A desculpa para não encarar a empreitada era simples: não havia escolhido ainda a minha área.
O tempo foi passando e durante o quarto semestre meus pais entraram no meu quarto quando estava na frente do game, querendo ter uma conversa séria. Desliguei os aparelhos e tentei descobrir qual seria o tema. Meu pai ainda estava de terno e gravata; mamãe estava como sempre – vestida como se fosse jantar fora. Uma mulher finíssima. Jamais consegui imaginar como ela sentaria no vaso sanitário. Como fazia amor com meu pai. Situações que toda mulher comum faz, mas minha mãe não era simples. Sempre admirei muito a minha mãe.
Começaram com uma conversa de que já tinha me tornado um homem e que estava na hora de namorar uma moça visando a um casamento para depois da formatura. Era por aí. Ao final, meu pai chegou no ponto: havia a filha de um casal amigo, do clube, que também estudava Direito, e as famílias queriam a nossa aproximação. “Nossa?”, perguntei. “É, de você com a menina”, respondeu mamãe.
Não iria contrariá-los.
Para resumir: depois de sair quatro vezes com ela – duas para jantar e duas para jogar tênis no clube – começamos a namorar. Não me entusiasmava, não tinha jeito. Mas era uma mulher bonita, conversava sobre tudo, uma pessoa agradável. Quando sugeria que devíamos fazer amor puxava o meu lado católico, dizendo que deveríamos nos guardar castos para depois do casamento. Ela, coitada, resignava-se.
Sério, não tinha vontade de namorar mais profundamente com ela.
Os semestres na faculdade foram avançando e o namoro também. Éramos praticamente irmãos. Tinha quase certeza de que ela andava com outros sujeitos, mas não me importava. Quando estava comigo me respeitava – era o que bastava. E sempre que precisava de sua companhia ela estava disponível.
No final do último semestre, quatro colegas de formatura me convidaram para passar um feriadão na praia. Haveria um carnaval fora de época. Falei com a minha namorada e ela incentivou a minha ida. Mamãe não gostou muito.
Ficamos os cinco na mesma casa. Era uma esculhambação danada. Entrava e saía gente o dia inteiro, muita bebida, churrasco em todas as refeições, um ambiente muito agradável. Na segunda noite, nos avisaram, haveria um baile a fantasia no clube. Cada um poderia ir como bem entendesse. Fantasiado, bem-entendido.
Combinamos que iríamos com roupas de mulher. Mas onde conseguir os vestidos, a maquiagem, perucas? Dei uma sugestão simples que todos aceitaram: vamos na cidade mais próxima e compramos.
Fomos. Comandei as compras e eles se surpreenderam com a minha desenvoltura nas escolhas e no bom gosto. Eu também. Depois de jantarmos fomos nos arrumar e mais uma vez eu dirigi os trabalhos. Essa blusa não, coloca essa aqui; esse batom vai ficar melhor em ti; esse sutiã tem que ter enchimento; coloca uma meia; troca de peruca.
Eles se divertiam muito, mas eu levei a sério.
Depois dos quatro prontos fui me arrumar no quarto em que dormia. Demorei muito. Me chamaram várias vezes para irmos logo. Quando desci a escada para o salão, os quatro pararam de falar. Havia me olhado demoradamente no espelho do corredor e sabia que estava deslumbrante. Assobiaram, me chamaram de gostosa, tesão, essas coisas. Eu ria, como uma virgem tímida.
No baile não foram três nem quatro rapazes que deram em cima de mim. Dois me passaram a mão na bunda. Tive que tomar alguns drinques para suportar todo aquele assédio. Enquanto percorria o salão dançando, timidamente e sozinho, fazia trejeitos – nada femininos, é verdade, e uma menina chegou a gritar: “Aí, drag queen!!”.
Drag queen.
Na volta para a vida normal, recolhi em sacolas todas as roupas, perucas e maquiagem. Disse aos meus amigos que iria doar a uma instituição de caridade. No final de semana seguinte, meus pais foram viajar. Dispensei as empregadas e dei uma desculpa para a namorada para não vê-la. Ela adorou.
Pude ficar em casa, os dois dias, fazendo experimentos com as roupas e as perucas. Me maquiei. Improvisei rebolados, abanos, sorrisos, tudo dentro daquele meu ar tímido que tanto sucesso fez no baile da praia.
Descobri no jornal que no domingo seguinte haveria um grande baile de transformistas, numa casa noturna. Prometi para mim: se fizesse sucesso novamente estaria aí a minha profissão. Nada de data venia. Me formaria, é certo, mas teria que mudar de cidade para seguir a minha carreira.
Não preciso dizer que fui, mais uma vez, o maior sucesso no baile, onde estavam as mais experientes transformistas da cidade. Não gostava de todo aquele assédio. O que fazer?
Fui na formatura, de terno – e jurei que seria a última vez que usaria esta vestimenta. Fui na festa, com toda a família, e troquei até alguns beijos com a minha namorada. Quando chegamos em casa meu pai disse que amanhã iríamos conversar seriamente sobre trabalho.
As minhas malas já estavam prontas, dentro do carro.
Não dormi. Antes de clarear, já estava na estrada. Deixei uma carta para meus pais, dando desculpas evasivas para o meu sumiço.
Fui em busca do sucesso.
Da felicidade.
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