Sexta, 10 de abril de 2020




Jamais troquei de lado.
Por quê? Eu não tenho lado.
Ou melhor, o meu lado sou eu
...
ANDO DEVAGAR
PORQUE JÁ TIVE PRESSA PRESSA





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especial

Nesta sexta, uma cesta
de Nizan Guanaes e Mario Vargas Llosa!



Nada a ver um com o outro?
Nizan é publicitário e um dos grandes empresários da comunicação.
Mario é escritor, Prêmio Nobel, e vive na Espanha.
Em comum?
Os dois escreveram sobre o bicho chinês.
Aproveitem!






Nizan Mansur de Carvalho Guanaes Gomes nasceu em Salvador, em 9 de maio de 1958. É sócio e fundador do Grupo ABC de Comunicação, holding que reúne 18 empresas nas áreas de publicidade, marketing, conteúdo e entretenimento. Ele comanda o maior conglomerado de comunicação da América Latina e o 18º maior grupo de comunicação do mundo.

Nizan foi eleito um dos cinco brasileiros mais influentes do mundo pelo Financial Times em 2010; foi eleito uma das 100 pessoas mais criativas do mundo pela Fast Company em 2011; e em 2014, foi eleito o Homem do Ano, na categoria Liderança pela GQ.


UMA GUERNICA VIRAL é o título que dou a este texto que não tem título.
(O texto foi publicado no Facebook pela Tania Carvalho)


Saí da quarentena. Tive o vírus, mas não tive sintomas. Teoricamente, estou imune. Mas te digo: não é uma gripezinha. Foram 14 dias de insônia. Como será que eu vou acordar amanhã?

Quero mudar radicalmente a minha vida quando tudo voltar ao normal. Porque tudo não vai voltar ao normal. Posso estar imune ao vírus, mas meu filho mora em Nova York. Não estou imune ao vírus.

O mundo vai mudar depois dessa pandemia, como mudou nas antecedentes. As mudanças de comportamento e de consumo serão duradouras. Será que vamos frequentar lugares públicos e eventos da mesma forma? Acho que não.

Os dados são tão novos e não param de mudar. Ainda não temos software para decifrá-los, mas eles já estão rodando no sistema. Se fosse uma empresa, chamaria antropólogos, filósofos, cientistas sociais, engenheiros de comportamento para entender o que aconteceu e acontecerá.

Depois que fiquei doente, decidi mudar o padrão de consumo. Vou doar ou descartar metade das minhas coisas. Quero comprar saúde, conhecimento.

Já estou perdendo dois amigos para o vírus. E sei que vou perder mais. Meus três médicos foram infectados. Não tem mimimi. Estamos em guerra. Chega de divisão. Vamos deixar pra brigar em outubro. Tá marcado?

Mas, agora, eu torço pelo ministro Mandetta, eu torço pelo Paulo Guedes, eu torço pelo João Doria. E acho importante o bumbo que eles estão tocando: fique em casa!

Já estou perdendo dois amigos, ou será que a esta altura do texto serão três? A Covid-19 fica cada vez mais dramática no Brasil porque ela está ganhando rostos e números, que crescem rapidamente.

Brigar ideologicamente neste momento é um crime contra a humanidade. O Brasil nunca passou por uma guerra como esta. Eu não vou torcer contra. Eu torço para dar certo.

Quando você está com o vírus, a perspectiva é pragmática: cura. Eu posso estar imune ao vírus. Mas meu filho mora em Nova York. Eu não estou imune. Você acha que eu assisto ao jornal como? Com o coração na mão.

Não tive sintomas, mas tive insônia, medo, costas travadas. É óbvio que a preocupação de as empresas quebrarem é muito legítima. Não existe essa dicotomia. Estamos vivendo uma pandemia econômica também. Vamos tratar das duas.

O medo será um bom conselheiro. Ele vai dizer aos homens: chega! Chega de querer ter razão. As UTIs estão cheias, os médicos começam a ficar doentes como seus pacientes, as ruas estão vazias, pessoas e empresas estão quebrando. Isso não é hora de fazer política.

Na Primeira Guerra Mundial, numa noite de Natal, alemães e ingleses pararam a luta insana e jogaram bola para celebrar a data. O medo, as mortes e as falências vão chamar a gente à razão. Você acha que Churchill e Roosevelt eram amigos de Stálin? Não. Mas foram aliados contra um inimigo comum e devastador para estarmos aqui hoje.

Perdi dois amigos, ou à altura deste texto serão quatro? Esta hora pede de nós grandeza, compaixão. Reze pelo meu filho. Eu rezo pelo seu.

Falar de política virou terreno pantanoso. Este texto não é sobre política. Ele é sobre doença, dor, morte, desespero — uma Guernica viral.

Então o que eu proponho é trégua ideológica e união nesta luta. Este é o único desejo da filha de um senhor de 75 anos sentindo muita falta de ar, mas que não consegue quarto para interná-lo.

Porque, enquanto você lia este texto, eu e você já perdemos amigos. E a morte, minha cara leitora, meu caro leitor, é suprapartidária.



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Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, marquês de Vargas Llosa, nasceu no Peru, em Arequipa, no dia 28 de março de 1936. É jornalista, escritor e político que ganhou todos os principais prêmios para escritores:
Príncipe das Astúrias de Literatura (1986)
Prêmio Miguel de Cervantes (1994)
Prêmio Nobel de Literatura (2010)



A LEITURA E OS DEMÔNIOS DA PESTE é o título que daria para esta bela crônica do Mestre. Mas isso não importa.
(O texto foi enviado por Guilherme Socias Villela)



O IRMÃO JUSTINIANO - Mario Vargas Llosa  

Jornal El País, 5 de abril de 2020

Lembro com exatidão as dez quadras que existiam entre a casa dos Llosa, na rua Ladislao Cabrera, e o colégio La Salle. Eu tinha cinco anos e, sem dúvida, estava muito nervoso. Naquele dia, o meu primeiro no colégio, eu as percorri com minha mãe, que até me acompanhou à classe e me deixou aos cuidados do irmão Justiniano. Ele me apresentou aos que seriam meus amigos cochabambinos a partir de então: Artero, Román, Gumucio, Ballivián. O mais querido deles, Mario Zapata, o filho do fotógrafo que havia documentado todos os casamentos e primeiras comunhões da cidade, seria morto com uma facada, anos depois, em um bar de Cala-Cala. Como era o garoto mais pacífico do mundo, sempre pensei que sua horrível morte foi por defender a honra de uma jovem.

O Irmão Justiniano era um anjo na terra. Tinha cabelos brancos e olhos doces e afetuosos. Dávamos as mãos e com ele cantávamos e dançávamos rodas repetindo o abecedário e as conjugações e assim, brincando, seis meses depois sabíamos ler. O carteiro entregava a cada semana quatro revistas na casa, três argentinas e uma chilena: Leoplán, para o avô Pedro, Para Ti, lida pela avozinha Carmen, Mamaé, minha mãe e a tia Lala, e, para mim, Billiken e El Peneca. Esperava essas revistas como um maná do céu e as lia do começo ao fim, incluindo as propagandas.

Minha mãe tinha um professor de violão e era uma leitora empedernida. Ela me emprestou O Sheik e O Filho do Sheik, mas me proibiu de ler Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada, de Pablo Neruda, um livro azul de letras amarelas que escondia em sua cabeceira e relia de noite: entre bocejos, eu a ouvia. Claro que eu o li, às escondidas, e lá havia versos que, eu tinha certeza (“Meu corpo de lavrador selvagem te enfraquecia / e faz saltar o filho do fundo da terra”), eram pecado mortal.

Aprender a ler é o que de mais importante me aconteceu na vida e, por isso, sempre lembro com gratidão do Irmão Justiniano e das cantigas de roda entre as carteiras, cantando e dançando enquanto decorávamos as conjugações. Pela leitura, esse mundo pequenino de Cochabamba se tornou o universo. Graças aos sinais que transformava em palavras e ideias, viajava pelo planeta e até podia voltar no tempo e me transformar em mosqueteiro, cruzado, explorador e viajar pelo espaço até o futuro em naves silenciosas. Minha mãe disse que a primeira manifestação do que, com os anos, seria uma vocação literária, foi que, quando eu não gostava dos finais dos contos e romances que lia, modificava-os com minha letra ruim da época. Eu não me lembro, mas sim das horas que passava lendo todos os dias, após voltar do La Salle e tomar meu copo de leite gelado com canela, meu alimento preferido. O avozinho Pedro brincava comigo: “Para o poeta a comida é prosa”. Mas eu ainda não escrevia versos em Cochabamba; isso viria depois, em Piura.

Agora que, por culpa do coronavírus e do isolamento forçado a que os madrilenhos estão submetidos, leio do amanhecer ao anoitecer, dez horas diárias em um estado de felicidade absoluta (moderada pelo medo à praga), aqueles dias cochabambinos voltam à minha memória com os fantasmas desvanecidos das primeiras leituras que o subconsciente me devolve: a orgulhosa Diana Mayo caía rendida nos braços de seu sequestrador Ahmed ben Hassan nos desertos da Argélia; o espadachim que nasceu em uma cela e, como os gatos, enxergava no escuro; o Judeu Errante e sua peregrinação pelo mundo. As crianças da época —pelo menos em Cochabamba— não liam quadrinhos e sim livros, e sem dúvida por isso jamais me viciei em Pato Donald, Mickey Mouse e Popeye, o marinheiro musculoso. Mas sim em Tarzan e Jane, com quem voei de árvore em árvore, pelas selvas da África.

Na biblioteca com teias de aranhas da Universidade de San Marcos li minha primeira obra-prima: Tirante o Branco, na edição de Martín de Riquer de 1948. Antes ainda, quando cadete do Leoncio Prado, devorei a série dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, e sonhava com d’Artagnan todas as noites.

Nada me deu tanto prazer e felicidade como os bons livros; nada me ajudou tanto como eles a passar pelos momentos difíceis. Sem a literatura teria me suicidado nesse período atroz em que soube que meu pai estava vivo, quando me levou para morar com ele e me fez descobrir a solidão e o medo. William Faulkner mudou minha vida em plena adolescência; eu o li com lápis e papel para identificar suas mudanças de narrador, os saltos temporais, os redemoinhos dessa prosa que misturava personagens, tempos e lugares e aparecia, de repente, no romance um reordenamento da história ainda melhor do que o cronológico.

Para ler Sartre, Camus, Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir e demais colaboradores da Les Temps Modernes, aprendi francês, e inglês para entender Hemingway, Dos Passos, Orwell e Virginia Woolf, e decifrar o Ulisses de Joyce (consegui na terceira vez). Em uma cabaninha de Perros-Guirec, na Bretanha, no verão de 1962 li o tomo de La Pléiade dedicado a Tolstói e desde então Guerra e Paz me parece o auge do romance, com Dom Quixote e Moby Dick. Entre os do século XX, nada supera no meu entender A Condição Humana, de Malraux, com exceção de A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em Paris, no primeiro dia em que cheguei, em agosto de 1959, descobri Flaubert e passei a noite inteira, no Wetter Hotel, lendo Madame Bovary. Foi para mim a mais frutífera das descobertas: graças a Flaubert, soube o escritor que queria ser e o que não queria ser.

As boas leituras não produzem somente felicidade; ensinam a falar bem, a pensar com audácia, a fantasiar, e criam cidadãos críticos, desconfiados das mentiras oficiais dessa arte suprema do mentir que é a política. A vida que não vivemos podemos sonhá-la, ler os bons livros é outra maneira de viver, mais livre, mais bela, mais autêntica. Essa vida alternativa tem, além disso, a sorte de estar fora do alcance das pragas demoníacas que sempre aterrorizaram os seres humanos porque viam nelas os diabos, que, ao contrário dos inimigos de carne e osso, eram difíceis de derrotar.

Um bom leitor é o cidadão ideal de uma sociedade democrática: nunca se conforma com aquilo que tem, sempre quer mais e coisas diferentes das que lhe oferecem. Sem essas insubmissões o progresso verdadeiro seria impossível, aquele que, além de enriquecer a vida material, aumenta a liberdade e o leque de escolhas para ajustar a própria vida a nossos sonhos, desejos e ilusões. Karl Popper tinha razão: nunca estivemos melhor do que agora (nos países livres, entende-se).

O coronavírus ressuscitou a barbárie no que acreditávamos ser a civilização e a modernidade. Vimos coisas horríveis em Madri, como nos asilos: idosos abandonados ao que parece por cuidadores que não tinham máscaras, remédios e qualquer ajuda. Os mortos convivendo com os vivos, dormindo nas mesmas camas. O horror sempre supera o horror, não importa o tempo histórico. Ainda assim, com toda a ruína econômica e social que essa inesperada praga trará ao país, se, após sobreviver a ela, existir na Espanha um milhão a mais de espanhóis, ou pelo menos cem mil, atraídos à boa leitura graças à quarentena forçada, os demônios da peste terão feito um bom trabalho.



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