OS TAIS
Lucio Carvalho*
Nos últimos dias tenho pensado muito nos meus conterrâneos
gaúchos. Melhor, em seus ancestrais. Penso que não é digno - se houver um plano
além - que eles possam ver seus descendentes borrados de medo. Dizendo que não
aguentam mais a baderna, que durou não mais que 4 dias em duas semanas e rendeu
até agora algum dano e prejuízo material endereçado quase que exclusivamente ao
Estado e a algumas instituições financeiras, tirando-se outros deslizes
lamentáveis, mas não insuportáveis, vamos com calma... Estou falando daquelas
pessoas que, defendendo interesses que nãos os seus próprios, encararam coisas
tremendas no passado, como a degola criolla, cargas de cavalaria, ditadores
científicos como Julio de Castilhos, imperialistas aristocratas como Silveira
Martins e uma série interminável de caudilhos e revoltas locais.
Essas coisas
não aconteceram num prazo menor do que meses a fio, anos a fio, através das
gerações em muitos casos. Isso para a riqueza de alguns poucos e a desgraça de
muitos.
Essas coisas aconteceram em 1835, 1893, 1923 e 1930. Nesse meio
tempo, uma guerra mundial e, desde lá, outra guerra mundial e um golpe de
estado. E também um episódio chamado a "legalidade", um foco de resistência
isolado ao golpe contra o presidente João Goulart, liderado pelo ex-governador
Leonel Brizola.
Esses antepassados suportaram receber notícias por
chasque (um tipo de mensageiro a cavalo), rádio e por jornais dominados sempre
por grupos nitidamente econômico-políticos: trata-se de uma característica bem
antiga do que hoje denominamos grande mídia, ou PIG. Havia também algumas
pessoas que, respeitosamente, passaram a debochar do poder. O mais célebre foi o
Sr. Apparicio Torelly, o famoso Barão de Itararé, mas parece que ele não foi o
único. O barão morou em muitos lugares e, aparentemente, sempre meio "fora da
casinha", para usar um termo local. Foi ele que organizou uma passeata com
rolhas à boca, na época em que era chamado de anarquista e em que as pessoas
sabiam reconhecer o ridículo do irreverente. Mais sábio e mais velho, dedicou-se
à astronomia. Os assuntos terrenos haviam exaurido sua energia.
Esses
antepassados, assim como os antepassados de todos os povos que privaram-se de
coisas mais sérias que tolices e vaidades pessoais, devem neste momento estar
corando por nós. Sim, corando. Não confundir com orando. Nós estamos hoje
abdicando do poder pela ordem, cerceando uns aos outros, duvidando uns das
intenções dos outros, parece até que há gás lacrimogêneo entre nós, mesmo quando
não estamos nas ruas. Embora não faltem candidatos, será mesmo que precisamos de
novos caudilhos? Uma renovação "nos quadros" partidários, pelo menos? Não basta
que o povo se apresente como tal e desenrole suas queixas?
Nem vou tentar
o absurdo de pensar em respostas numa hora dessas. "Os verdadeiros patriotas
fazem perguntas", escreveu o astrônomo norte-americano Carl Sagan certa vez.
Ele, mesmo sendo um cético, não era cético porque tinha respostas prontas para
tudo, apenas se recusava a abrir mão da dúvida. Para quem acha que o ceticismo é
fácil, tente por um momento duvidar de si mesmo, contrabalançar suas crenças e
seus interesses individuais. Olhar para o cosmos talvez possa ser difícil para a
maioria, mas quem sabe pelo menos o cruzeiro do sul possa nos fazer lembrar de
que lado do hemisfério estamos, apesar de farejarmos insistentemente uma vida
escandinava. Estamos ao sul do hemisfério e, no caso dos gaúchos, ao sul do
Brasil. Tivemos nosso momento na história do Brasil com Getúlio e com Jango, mas
ao invés de lamentarmos não tê-la tanto hoje, talvez fosse importante olharmos
mais e melhor para os próprios problemas, para o próprio povo, os tais
gaúchos.
Se parece que o termo exorta ao centauro dos pampas ou ao
depenado gaúcho a pé, semi-extintos pelo capitalismo galopante (que desgraça
usar esses adjetivos), vejam só que gente estranha é essa que está enfrentando o
inverno que chega na rua. Lá em Pelotas, Rio Grande, Santa Maria, Bagé,
Alvorada, Erechim, Caxias do Sul, etc etc etc. Olhando bem, até que eles lembram
mesmo um pouco aqueles que levaram a efeito um orgulho do qual dizemos nunca
abrir mão. Pois então.
* Coordenador-geral da revista digital Inclusive - Inclusão e Cidadania (www.inclusive.org.br) e autor de
Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com).
Nenhum comentário:
Postar um comentário